sexta-feira, 14 de dezembro de 2012


 
VISITA     GUIADA    A    S.  VICENTE          
 
Uma fotografia instantânea de S. Vicente, da autoria de Arsénio de Pina, tirada da sua última estadia  em Novembro de 2012. Ficamos com uma perspectiva realista da situação da ilha e do país.

De visita a S. Vicente após uma ausência de três anos, com uma rápida passagem no ano passado que não me permitiu observar o que queria nem auscultar a população e amigos, tive agora mais oportunidade de apreciar as realizações, de me informar e de visitar alguns serviços e locais da ilha.

Não há dúvida de que, não obstante a quarentena imposta pelo centralismo do poder e a ingratidão pelo que a Ilha do Porto Grande partilhou irmãmente com as outras ilhas no passado áureo do seu belo porto, no tempo em que o gato de Mané Jon era engordado com gemada, como diz a bela canção de um dos nossos adorados poetas populares, Sérgio Frusoni, constata-se algum progresso físico ordenhado a custo do suculento úbere praiense, bastante sovina, embora farto e luzidio de leite.

O alcatroamento de um bom número de ruas, o calcetamento com calçada portuguesa de bem poucas – acreditamos que o actual exemplo de calcetamento das ruas à volta da Câmara Municipal se estenderá às que ainda conservam a calçada de pedras irregulares do passado que parece ter sido feita para leito de faquir e a beneficiação de passeios à base de cimento -, a recolha regular de lixo doméstico e a arborização urbana – embora se teime na acácia americana, quando se deveria optar pela “acácia do Coxim” ou pelo tamarindeiro a nível urbano - dão um ar higiénico e cuidado da cidade do Mindelo.

Algumas construções de torres no meio de outras construções modestas destoam um tanto da harmonia arquitetónica tradicional e poderão vir a ter problemas no futuro devido à carência de água e às interrupções frequentes da corrente eléctrica, sem aviso prévio, isso pensando nos elevadores e no fornecimento intermitente de água que obriga à construção de tanques e cisternas de reserva do precioso líquido movimentado electricamente.

A construção Ponte d´Água feita no aterro à beira-mar da Rua da Praia por um casal de argentário belga casado com patrícia é um investimento que valoriza imenso a Baía do Porto Grande, e de risco para os donos, em tempo de crise, pelo que merecia protecção e apoio por parte da Câmara e do Estado.

O Parque do Lazareto, da iniciativa da empresa Copa com parceria da Câmara Municipal, é outra obra que favorece a cidade e o bairro periférico por ter valorizado a zona costeira com campos de ténis, de basquete, jardins infantis e criação de uma pequena baía protegida para banhistas. A obra está ainda em curso e será mais uma mais-valia para a cidade.

Já tinha visitado outra iniciativa notável, atrás das instalações da Enacol, a que o desaforado e humorado mindelense chama de Pic de Zau.

Finalmente, como tinha sugerido há anos mas a teimosia autárcica fez orelhas moucas, a Rua 9 de Setembro, além do alcatroamento, foi dotada de colector e sarjetas para o escoamento de águas pluviais, deixando de ser ribeira na época da chuva, desaguando na Praça Estrela que até se podia atravessar de bote. Tanto dinheiro desperdiçado, somente por teimosia (?) de autarcas surdos aos conselhos e opiniões de munícipes com experiência no assunto!

O Mindelhotel e o Eden Park, no centro da cidade, praticamente desactivados, e a Casa Mindelo, moderno café-restaurante acoplado a residencial no andar superior, encerrado, sem se saber o verdadeiro motivo. Explicações inçadas de suspeitas e boatos…

Outra realização notável são as Casas para Todos, na Ribeira de Julião, da cooperação/empréstimo de Portugal, com 20 blocos de edifícios de três pisos. Contêm 250 apartamentos, 90 de classe A (um quarto), 110 de classe B (2 quartos) e 45 de classe C (três quartos), estratégia de construção a prosseguir noutros locais da cidade com crédito de Portugal e da China. A construção parece ser de boa qualidade, incluindo espaços comerciais e comunitários, destinando-se a famílias da classe alta, média e de baixos recursos, o que poderá prevenir e guetização do bairro como os bairros periféricos das grandes cidades europeias destinados somente a pobres e imigrantes.

O Porto Grande tem tido algum movimento, sobretudo de paquetes de turismo de luxo que dão certa vida à cidade e se promete vir a intensificar-se – controlar o lançamento de lixo acondicionado em sacos desses paquetes na Lixeira da Ribeira de Julião com conteúdo diverso em defesa da sanidade da ilha -, e iates muito mal controlados, o que não elimina a possibilidade de tráfego de drogas e fuga de presos estrangeiros que subornam guardas, como já aconteceu. Claro que só esse movimento é bem pouco, aguardando-se investimentos mais consistentes prometidos criadores de emprego permanente e revitalização do porto.

O novo Parque Eólico, pertencente a uma entidade privada, constituído por sete transformadores eólicos de alta potência, é um ganho na priorização das energias renováveis. O que não se entende é a preferência dada pela Electra na compra dessa energia, quando os três transformadores ofertados pela Dinamarca, fornecendo energia gratuita, estejam mais vezes desactivados. O contrato com a empresa do novo parque eólico implica pagamento de energia mesmo a não utilizada, o que se assemelha ao antigo negócio chamado da China, denotando gestão defeituosa, irresponsável e danosa da Electra em prejuízo do Estado e consumidores. Falando de transformadores eólicos, vem-me à mente os tradicionais moinhos de vento para bombagem de água de poços, que técnicos mindelenses formados na Escola da Pontinha do Mestre Cunco sabiam reparar e até fabricar, que têm os dias contados por já só haver um técnico dos antigos capaz de os fabricar e reparar e nenhuma tentativa do Município no sentido de formar gente nessa arte e ofício. Actualmente, para mal dos nossos pecados, a prioridade reside na importação e não no desenvolvimento endógeno e valorização das nossas capacidades inventivas e laborais de outrora.

Prefiro não falar nas inúmeras promessas feitas para o desenvolvimento de S. Vicente porque a maioria não se concretizou e criaram espectativas seguidas de frustrações. Há que reanimar as actividades comerciais, turísticas e industriais da ilha, dada a inércia em que se vive e a elevada taxa de desemprego, mormente de jovens, a qual irá aumentar com a saída das universidades de licenciados em coisíssima nenhuma, quase da mula ruça, em profissões inexistentes no país, licenciaturas para o desemprego, teoricamente de quadros qualificados. Tratei do assunto em dois artigos recentes, Tempos Modernos e Mestre Cunco, que os interessados poderão consultar, que põem em causa a desmedida do número e qualidade das universidades privadas.

Os factos e coisas menos boas e más não cessam de aumentar porque vivemos longos anos em furor legiferante quando deveríamos ter procurado aplicar leis mais simples, revogando as não aplicáveis, não regulamentadas e cheias de alçapões criados pelos juristas que as fizeram e irão servir-se deles em proveito dos seus clientes em apuros. Fiscais e inspectores existem mais para benefício pessoal do que para vigilância do cumprimento de leis, normas e posturas camarárias. Mesmo as agências de regulação, recentemente criadas, não regulam coisíssima nenhuma por serem constituídas na base do amiguismo e compadrio. De resto, o mesmo acontece em Portugal, o que não é de admirar dada a nossa tendência mimética.

Entra-se no Mercado Municipal, bem fornecido de géneros alimentares de toda a espécie e higienicamente entretido, e os preços são em função da cara e vestimenta do cliente. A obrigatoriedade de afixação dos preços nos produtos não se pratica e os fiscais parecem familiares das vendedeiras. O argumento para explicar essas anomalias é, segundo dizem, vivermos em regime de economia de mercado em que os preços são livres. Os produtos nacionais são mais caros do que os similares importados da Europa e estes mais do que o dobro do preço de venda ao público em Portugal (já com os impostos e margem de lucro, quando para a exportação estes são eliminados) de onde são importados a maioria dos produtos. Realmente a economia de mercado é uma mina para os vendedores! Também não me alongo no assunto por o ter vindo a tratar sem nenhum efeito, em vários artigos: mercado livre, sinónimo de exploração libérrima do povo, do consumidor.

Das ruas e passeios ocupados com vendedeiras e produtos alimentares também já tratei e persiste intensificado, não obstante haver mercados para elas. Trata-se de prática importada de algures, não da nossa tradição, de puro populismo das autoridades municipais, com intensificação do mercado paralelo, que não paga impostos nem beneficia o consumidor.

Dos estrangeiros da Costa d´África que entraram no país clandestinamente, ou como turistas, que andam por aí a vender bugigangas e outros produtos que encontramos nas lojas chinesas, também já escrevi, e ainda aí estão. Não se pense que tenho alguma animosidade contra esses imigrantes. Há alguns com profissões úteis ao país e a eles próprios (alfaiates e costureiras, vendedores de panos africanos e outos produtos úteis importados dos respectivos países, operários e pedreiros que estão substituindo os nacionais que preferem outras profissões ou emigraram, cabeleireiros, etc.), mas grande número anda circulando com cartões onde fixam óculos escuros, acessórios de fogão, CD, DVD e telemóveis, custando a entender que consigam sobreviver vendendo somente isso, quase todos com os mesmos produtos. Parcê qu´ês fejon tem tucin… como diz o povo. Andam também comprando ouro e metais, incluindo os chineses, o que vem contribuindo para intensificação de furtos de ouro e joias, e até de fios eléctricos e vedações metálicas que os larápios convertem em dinheiro nesses compradores. Alguns desses imigrantes que se querem fixar no nosso país queixam-se da morosidade na resolução dos seus pedidos de autorização de residência, e, entrementes, nas rusgas policiais, pagam multas, o que não me parece curial.

Muitas dessas anomalias seriam de fácil resolução se a municipalidade e o governo aplicassem as normas, posturas e leis em vigor. Mas não; as posturas camarárias, normas e certas leis são simples produtos inoperantes do exercício jurídico de governantes, tão-somente para sinalizarem o sentido de omnisciência de que estão imbuídos, não de utilidade prática.

Quer-me parecer que se desenvolve no nosso país uma teologia do mercado de que se aproveitam os glutões predadores em prejuízo dos consumidores. É matéria que também já tratei e limito-me a assinalá-la.

Visitei duas aberrações maiores que nos dão uma medida da tal omnisciência do poder, também autárcico, assinalada acima: o Estaleiro do Carnaval para a feitura de andores, no fundo da Ribeira de Craquinha, uma construção pesada e enorme, da iniciativa de ex-presidente da Câmara contra a opinião dos animadores e organizadores dos desfiles carnavalescos, que deve ter custado uma pipa de massas. Estes não o utilizam e está servindo para produção de blocos de cimento do construtor. Ao lado do Estaleiro, um bairro de lata de pessoas deslocadas de outra localização da cidade vendida para construções privadas, com a promessa, diazá, de cedência de casas. Esse bairro não tinha água, nem luz, nem esgoto, e foi a Adeco que se empenhou em levar-lhes água e ligá-los ao sistema geral de esgoto, tendo sido impossível, por falta de colaboração da Electra, de lhes fazer chegar luz eléctrica. Porque não transformar esse Estaleiro em casas para essa gente do bairro de lata, até porque foi a Câmara que os escorraçou para aí prometendo-lhes alojamento?

No mesmo local, Ribeira de Craquinha, bairro que fica quase na desapic d´infern, outra obra majestosa, o Matadouro Municipal, com todos os requintes da modernidade. Por que nesse sítio, se o velho matadouro ainda lá está à frente do velho Caizim? Tentei saber o motivo mas não pude falar com o Presidente da Câmara (de férias), nem com o vereador que o substitui a que teria de marcar audiência e aguardar na bicha dos pedidos. Intrigante, realmente! Quem é que irá parar à Ribeira de Craquinha levar o seu tchuc, cabra ou vaca para matar e esquartejar?

            Visitei também a lixeira monstra da Ribeira de Julião. Lembro-me de que foi Nelson Atanásio, quando presidente da Câmara, quem fez algo de positivo nesta zona, mandando-a cercar e fazer valas profundas e longas onde se depositava lixo recoberto em seguida com terra, havendo trabalhadores para o efeito e guardas que controlavam o local e o vazamento de lixo. Certamente que nessa altura a população mindelense era muito menor e a sociedade de consumo incipiente. Há muito que não tem cerca nem controlo, vivendo adultos e crianças aí remexendo e triando o lixo para aproveitamento de algo utilizável e vendável; alguns imigrantes da costa d´África aparecem aí com balanças para pesar e comprar metais. Uma imensidão de lixo a céu aberto, fumegando certas zonas onde se queima lixo: pneus, garrafas, latas, vasilhames de plástico, partes de electrodomésticos, pilhas, baterias, peças de computadores, sacos de plástico que esvoaçam pelas redondezas e se fixam nas acácias, lixo séptico do hospital, pensos e preservativos que a criançada assopra como balões, peças de automóveis e tutti quanti num espectáculo dantesco. Ao fundo grandes tanques cheios de óleo queimado extravasando, com uma porta metálica onde se lê Garça Vermelha e Não Fazer Lume mas sem nenhuma cerca em redor, o que estranhei por ter conhecido outro tanque da Garça Vermelha devidamente protegido atrás dos depósitos da Shell. Soube que a cerca já foi roubada por duas vezes por ser metálica e os metais terem passado a ter cotação na bolsa de valores dos imigrantes das terras de pia-abaixo e chineses. Não temos legislação que contemple a transformação ou destino de óleos queimados, ao contrário de certos países que fazem incidir sobre o preço dos óleos minerais vendidos uma taxa utilizada para esse fim. Mais acima, uma lagoa fétida onde a empresa Pescamar vazava água de tratamento do peixe. Presumo que deve ainda servir de vazadouro de águas verdes e outros líquidos pestilentos por ter cruzado com camião depósito vindo de lá.

A Lixeira monstra da Ribeira de Julião é uma autêntica aberração, uma bomba relógio anti-ecológica e um atentado à sanidade da cidade pela multiplicidade de riscos sanitários. Há que resolver a anomalia com a máxima prioridade, procurar investimento, “custe o que custar”, parafraseando um conhecido político português. De resto, se for criada uma estação de tratamento de lixo, a venda do material triado que aí vai parar compensará parcialmente o investimento, além do benefício para a saúde pública, que não tem preço.

Tenho atacado, em escritos publicados, a corrupção por todos os lados, mas ela, visível a olho nu, tem a pele dura, dado que, quem de direito, não se importa muito em a prevenir nem atacar com firmeza e rudeza. Se não me engano, como aconteceu em Portugal, a lei permitindo a investigação sobre a suspeita de enriquecimento ilícito não passou na Assembleia Nacional, o que não abona nada a favor dos deputados. Quem não deve não deve temer. Por que não investigar essas fortunas nascidas do nada? Por que não investigar funcionários públicos que lidam com dinheiros do erário público, com vencimentos que mal dão para comprar uma bicicleta, e passeiam por aí em carros de alta gama, de cabine dupla ou descapotáveis e ainda possuem apartamentos e vivem à tripa forra na barba-cara de quem trabalha e vive honestamente do seu salário ou vencimento? A corrupção é uma forma de podridão da sociedade que contagia os ambiciosos e leva à destruição de um país. Temos alguns exemplos mais ou menos recentes disso no nosso continente, na América latina e até na Europa. A sua prevenção não remedeia o que se perdeu, mas conserva o que se pudera perder, que é o de que temos necessidade, como diria o Padre António Vieira. No Senegal, a justiça está investigando suposto enriquecimento ilícito dos barões do regime Wade…

A peste da governação e da lentidão da justiça são a irresolução e a impunidade. Está parado o que havia de correr, está suspenso o que havia de voar, porque não atam nem desatam. Benevolências e impunidades do Estado e da justiça levam à desmoralização dos cidadãos honestos, são maus exemplos para os jovens e poderão até comprometer a ajuda recebida da solidariedade internacional. Se não forem tomadas medidas radicais urgentes nesta matéria perderemos todo o crédito obtido com sacrifícios indescritíveis consentidos pelos mais velhos e nos transformaremos numa autêntica república das bananas. O que intriga é haver gente séria, honesta, competente e esforçada que ninguém valoriza nem é colocada em postos de tentação financeira em que se exige gente incorruptível.

Há que pôr a verdade e a justiça no lugar onde elas têm faltado, não com leis que são viciosamente elaboradas, desprezadas e mal interpretadas dada a complexidade deliberada e manhosamente metida nelas para os venais com dinheiro poderem safar-se da cadeia servindo-se de quem as elaborou – geralmente alguns escritórios privados de advogados bem caracterizados pelo jurista amigo Dr. Vieira Lopes. A demora nessa mudança radical de atitude do poder terá, seguramente, muito maus resultados, aliás, agravará os resultados que qualquer míope enxerga facilmente.

Lamento dizê-lo, mas já me custa identificar, sob o ponto de vista ético e moral, pela negativa, o país actual com o que conheci, a que dei patrioticamente o meu contributo e onde vivi nos anos iniciais da independência.

 

S. Vicente, Dezembro de 2012                                 Arsénio Fermino de Pina

                                                                Pediatra e sócio honorário da Adeco

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