VISITA
GUIADA A S. VICENTE
De visita a S.
Vicente após uma ausência de três anos, com uma rápida passagem no ano passado
que não me permitiu observar o que queria nem auscultar a população e amigos,
tive agora mais oportunidade de apreciar as realizações, de me informar e de
visitar alguns serviços e locais da ilha.
Não há dúvida de
que, não obstante a quarentena imposta pelo centralismo do poder e a ingratidão
pelo que a Ilha do Porto Grande
partilhou irmãmente com as outras ilhas no passado áureo do seu belo porto, no
tempo em que o gato de Mané Jon era engordado com gemada, como diz a bela
canção de um dos nossos adorados poetas populares, Sérgio Frusoni, constata-se
algum progresso físico ordenhado a custo do suculento úbere praiense, bastante
sovina, embora farto e luzidio de leite.
O alcatroamento
de um bom número de ruas, o calcetamento com calçada portuguesa de bem poucas –
acreditamos que o actual exemplo de calcetamento das ruas à volta da Câmara
Municipal se estenderá às que ainda conservam a calçada de pedras irregulares do
passado que parece ter sido feita para leito de faquir e a beneficiação de
passeios à base de cimento -, a recolha regular de lixo doméstico e a arborização
urbana – embora se teime na acácia americana, quando se deveria optar pela “acácia
do Coxim” ou pelo tamarindeiro a nível urbano - dão um ar higiénico e cuidado
da cidade do Mindelo.
Algumas
construções de torres no meio de outras construções modestas destoam um tanto
da harmonia arquitetónica tradicional e poderão vir a ter problemas no futuro
devido à carência de água e às interrupções frequentes da corrente eléctrica,
sem aviso prévio, isso pensando nos elevadores e no fornecimento intermitente
de água que obriga à construção de tanques e cisternas de reserva do precioso
líquido movimentado electricamente.
A construção Ponte d´Água feita no aterro à beira-mar
da Rua da Praia por um casal de argentário belga casado com patrícia é um
investimento que valoriza imenso a Baía do Porto Grande, e de risco para os
donos, em tempo de crise, pelo que merecia protecção e apoio por parte da
Câmara e do Estado.
O Parque do Lazareto, da iniciativa da
empresa Copa com parceria da Câmara
Municipal, é outra obra que favorece a cidade e o bairro periférico por ter
valorizado a zona costeira com campos de ténis, de basquete, jardins infantis e
criação de uma pequena baía protegida para banhistas. A obra está ainda em
curso e será mais uma mais-valia para a cidade.
Já tinha
visitado outra iniciativa notável, atrás das instalações da Enacol, a que o desaforado e humorado mindelense
chama de Pic de Zau.
Finalmente, como
tinha sugerido há anos mas a teimosia autárcica fez orelhas moucas, a Rua 9 de
Setembro, além do alcatroamento, foi dotada de colector e sarjetas para o
escoamento de águas pluviais, deixando de ser ribeira na época da chuva,
desaguando na Praça Estrela que até
se podia atravessar de bote. Tanto dinheiro desperdiçado, somente por teimosia
(?) de autarcas surdos aos conselhos e opiniões de munícipes com experiência no
assunto!
O Mindelhotel e o Eden Park, no centro da cidade, praticamente desactivados, e a Casa Mindelo, moderno café-restaurante acoplado
a residencial no andar superior, encerrado, sem se saber o verdadeiro motivo.
Explicações inçadas de suspeitas e boatos…
Outra realização
notável são as Casas para Todos, na
Ribeira de Julião, da cooperação/empréstimo de Portugal, com 20 blocos de
edifícios de três pisos. Contêm 250 apartamentos, 90 de classe A (um quarto),
110 de classe B (2 quartos) e 45 de classe C (três quartos), estratégia de
construção a prosseguir noutros locais da cidade com crédito de Portugal e da
China. A construção parece ser de boa qualidade, incluindo espaços comerciais e
comunitários, destinando-se a famílias da classe alta, média e de baixos
recursos, o que poderá prevenir e guetização do bairro como os bairros
periféricos das grandes cidades europeias destinados somente a pobres e imigrantes.
O Porto Grande tem tido algum movimento, sobretudo
de paquetes de turismo de luxo que dão certa vida à cidade e se promete vir a
intensificar-se – controlar o lançamento de lixo acondicionado em sacos desses
paquetes na Lixeira da Ribeira de Julião com conteúdo diverso em defesa da
sanidade da ilha -, e iates muito mal controlados, o que não elimina a
possibilidade de tráfego de drogas e fuga de presos estrangeiros que subornam
guardas, como já aconteceu. Claro que só esse movimento é bem pouco,
aguardando-se investimentos mais consistentes prometidos criadores de emprego
permanente e revitalização do porto.
O novo Parque Eólico, pertencente a uma
entidade privada, constituído por sete transformadores eólicos de alta potência,
é um ganho na priorização das energias renováveis. O que não se entende é a
preferência dada pela Electra na
compra dessa energia, quando os três transformadores ofertados pela Dinamarca,
fornecendo energia gratuita, estejam mais vezes desactivados. O contrato com a
empresa do novo parque eólico implica pagamento de energia mesmo a não
utilizada, o que se assemelha ao antigo negócio chamado da China, denotando
gestão defeituosa, irresponsável e danosa da Electra em prejuízo do Estado e
consumidores. Falando de transformadores eólicos, vem-me à mente os
tradicionais moinhos de vento para bombagem de água de poços, que técnicos
mindelenses formados na Escola da
Pontinha do Mestre Cunco sabiam reparar e até fabricar, que têm os dias
contados por já só haver um técnico dos antigos capaz de os fabricar e reparar
e nenhuma tentativa do Município no sentido de formar gente nessa arte e
ofício. Actualmente, para mal dos nossos pecados, a prioridade reside na
importação e não no desenvolvimento endógeno e valorização das nossas
capacidades inventivas e laborais de outrora.
Prefiro não falar
nas inúmeras promessas feitas para o desenvolvimento de S. Vicente porque a
maioria não se concretizou e criaram espectativas seguidas de frustrações. Há
que reanimar as actividades comerciais, turísticas e industriais da ilha, dada
a inércia em que se vive e a elevada taxa de desemprego, mormente de jovens, a
qual irá aumentar com a saída das universidades de licenciados em coisíssima
nenhuma, quase da mula ruça, em profissões inexistentes no país, licenciaturas
para o desemprego, teoricamente de quadros qualificados. Tratei do assunto em
dois artigos recentes, Tempos Modernos e
Mestre Cunco, que os interessados
poderão consultar, que põem em causa a desmedida do número e qualidade das universidades
privadas.
Os factos e
coisas menos boas e más não cessam de aumentar porque vivemos longos anos em
furor legiferante quando deveríamos ter procurado aplicar leis mais simples,
revogando as não aplicáveis, não regulamentadas e cheias de alçapões criados
pelos juristas que as fizeram e irão servir-se deles em proveito dos seus
clientes em apuros. Fiscais e inspectores existem mais para benefício pessoal
do que para vigilância do cumprimento de leis, normas e posturas camarárias.
Mesmo as agências de regulação, recentemente criadas, não regulam coisíssima
nenhuma por serem constituídas na base do amiguismo e compadrio. De resto, o
mesmo acontece em Portugal, o que não é de admirar dada a nossa tendência
mimética.
Entra-se no Mercado Municipal, bem fornecido de
géneros alimentares de toda a espécie e higienicamente entretido, e os preços
são em função da cara e vestimenta do cliente. A obrigatoriedade de afixação
dos preços nos produtos não se pratica e os fiscais parecem familiares das
vendedeiras. O argumento para explicar essas anomalias é, segundo dizem, vivermos
em regime de economia de mercado em que os preços são livres. Os produtos
nacionais são mais caros do que os similares importados da Europa e estes mais
do que o dobro do preço de venda ao público em Portugal (já com os impostos e
margem de lucro, quando para a exportação estes são eliminados) de onde são
importados a maioria dos produtos. Realmente a economia de mercado é uma mina
para os vendedores! Também não me alongo no assunto por o ter vindo a tratar
sem nenhum efeito, em vários artigos: mercado livre, sinónimo de exploração
libérrima do povo, do consumidor.
Das ruas e
passeios ocupados com vendedeiras e produtos alimentares também já tratei e
persiste intensificado, não obstante haver mercados para elas. Trata-se de
prática importada de algures, não da nossa tradição, de puro populismo das
autoridades municipais, com intensificação do mercado paralelo, que não paga
impostos nem beneficia o consumidor.
Dos estrangeiros
da Costa d´África que entraram no país clandestinamente, ou como turistas, que
andam por aí a vender bugigangas e outros produtos que encontramos nas lojas
chinesas, também já escrevi, e ainda aí estão. Não se pense que tenho alguma
animosidade contra esses imigrantes. Há alguns com profissões úteis ao país e a
eles próprios (alfaiates e costureiras, vendedores de panos africanos e outos
produtos úteis importados dos respectivos países, operários e pedreiros que
estão substituindo os nacionais que preferem outras profissões ou emigraram,
cabeleireiros, etc.), mas grande número anda circulando com cartões onde fixam
óculos escuros, acessórios de fogão, CD, DVD e telemóveis, custando a entender
que consigam sobreviver vendendo somente isso, quase todos com os mesmos
produtos. Parcê qu´ês fejon tem tucin…
como diz o povo. Andam também comprando ouro e metais, incluindo os chineses, o
que vem contribuindo para intensificação de furtos de ouro e joias, e até de fios
eléctricos e vedações metálicas que os larápios convertem em dinheiro nesses
compradores. Alguns desses imigrantes que se querem fixar no nosso país queixam-se
da morosidade na resolução dos seus pedidos de autorização de residência, e,
entrementes, nas rusgas policiais, pagam multas, o que não me parece curial.
Muitas dessas
anomalias seriam de fácil resolução se a municipalidade e o governo aplicassem
as normas, posturas e leis em vigor. Mas não; as posturas camarárias, normas e certas
leis são simples produtos inoperantes do exercício jurídico de governantes,
tão-somente para sinalizarem o sentido de omnisciência de que estão imbuídos,
não de utilidade prática.
Quer-me parecer
que se desenvolve no nosso país uma teologia do mercado de que se aproveitam os
glutões predadores em prejuízo dos consumidores. É matéria que também já tratei
e limito-me a assinalá-la.
Visitei duas
aberrações maiores que nos dão uma medida da tal omnisciência do poder, também
autárcico, assinalada acima: o Estaleiro
do Carnaval para a feitura de andores, no fundo da Ribeira de Craquinha, uma construção pesada e enorme, da iniciativa
de ex-presidente da Câmara contra a opinião dos animadores e organizadores dos
desfiles carnavalescos, que deve ter custado uma pipa de massas. Estes não o
utilizam e está servindo para produção de blocos de cimento do construtor. Ao
lado do Estaleiro, um bairro de lata de pessoas deslocadas de outra localização
da cidade vendida para construções privadas, com a promessa, diazá, de cedência de casas. Esse bairro
não tinha água, nem luz, nem esgoto, e foi a Adeco que se empenhou em
levar-lhes água e ligá-los ao sistema geral de esgoto, tendo sido impossível,
por falta de colaboração da Electra, de lhes fazer chegar luz eléctrica. Porque
não transformar esse Estaleiro em casas para essa gente do bairro de lata, até
porque foi a Câmara que os escorraçou para aí prometendo-lhes alojamento?
No mesmo local,
Ribeira de Craquinha, bairro que fica quase na desapic d´infern, outra obra majestosa, o Matadouro Municipal, com todos os requintes da modernidade. Por que
nesse sítio, se o velho matadouro ainda lá está à frente do velho Caizim? Tentei
saber o motivo mas não pude falar com o Presidente da Câmara (de férias), nem
com o vereador que o substitui a que teria de marcar audiência e aguardar na
bicha dos pedidos. Intrigante, realmente! Quem é que irá parar à Ribeira de
Craquinha levar o seu tchuc, cabra ou vaca para matar e esquartejar?
Visitei
também a lixeira monstra da Ribeira de
Julião. Lembro-me de que foi Nelson Atanásio, quando presidente da Câmara,
quem fez algo de positivo nesta zona, mandando-a cercar e fazer valas profundas
e longas onde se depositava lixo recoberto em seguida com terra, havendo
trabalhadores para o efeito e guardas que controlavam o local e o vazamento de
lixo. Certamente que nessa altura a população mindelense era muito menor e a
sociedade de consumo incipiente. Há muito que não tem cerca nem controlo,
vivendo adultos e crianças aí remexendo e triando o lixo para aproveitamento de
algo utilizável e vendável; alguns imigrantes da costa d´África aparecem aí com
balanças para pesar e comprar metais. Uma imensidão de lixo a céu aberto,
fumegando certas zonas onde se queima lixo: pneus, garrafas, latas, vasilhames
de plástico, partes de electrodomésticos, pilhas, baterias, peças de
computadores, sacos de plástico que esvoaçam pelas redondezas e se fixam nas
acácias, lixo séptico do hospital, pensos e preservativos que a criançada
assopra como balões, peças de automóveis e tutti
quanti num espectáculo dantesco. Ao fundo grandes tanques cheios de óleo
queimado extravasando, com uma porta metálica onde se lê Garça Vermelha e Não Fazer
Lume mas sem nenhuma cerca em redor, o que estranhei por ter conhecido
outro tanque da Garça Vermelha devidamente protegido atrás dos depósitos da
Shell. Soube que a cerca já foi roubada por duas vezes por ser metálica e os
metais terem passado a ter cotação na bolsa de valores dos imigrantes das
terras de pia-abaixo e chineses. Não temos legislação que contemple a
transformação ou destino de óleos queimados, ao contrário de certos países que
fazem incidir sobre o preço dos óleos minerais vendidos uma taxa utilizada para
esse fim. Mais acima, uma lagoa fétida onde a empresa Pescamar vazava água de tratamento do peixe. Presumo que deve ainda
servir de vazadouro de águas verdes e outros líquidos pestilentos por ter
cruzado com camião depósito vindo de lá.
A Lixeira
monstra da Ribeira de Julião é uma autêntica aberração, uma bomba relógio
anti-ecológica e um atentado à sanidade da cidade pela multiplicidade de riscos
sanitários. Há que resolver a anomalia com a máxima prioridade, procurar
investimento, “custe o que custar”, parafraseando um conhecido político
português. De resto, se for criada uma estação de tratamento de lixo, a venda
do material triado que aí vai parar compensará parcialmente o investimento,
além do benefício para a saúde pública, que não tem preço.
Tenho atacado,
em escritos publicados, a corrupção por todos os lados, mas ela, visível a olho
nu, tem a pele dura, dado que, quem de direito, não se importa muito em a
prevenir nem atacar com firmeza e rudeza. Se não me engano, como aconteceu em
Portugal, a lei permitindo a investigação sobre a suspeita de enriquecimento
ilícito não passou na Assembleia Nacional, o que não abona nada a favor dos
deputados. Quem não deve não deve temer. Por que não investigar essas fortunas
nascidas do nada? Por que não investigar funcionários públicos que lidam com
dinheiros do erário público, com vencimentos que mal dão para comprar uma
bicicleta, e passeiam por aí em carros de alta gama, de cabine dupla ou
descapotáveis e ainda possuem apartamentos e vivem à tripa forra na barba-cara
de quem trabalha e vive honestamente do seu salário ou vencimento? A corrupção
é uma forma de podridão da sociedade que contagia os ambiciosos e leva à
destruição de um país. Temos alguns exemplos mais ou menos recentes disso no
nosso continente, na América latina e até na Europa. A sua prevenção não
remedeia o que se perdeu, mas conserva o que se pudera perder, que é o de que
temos necessidade, como diria o Padre António Vieira. No Senegal, a justiça
está investigando suposto enriquecimento ilícito dos barões do regime Wade…
A peste da
governação e da lentidão da justiça são a irresolução e a impunidade. Está
parado o que havia de correr, está suspenso o que havia de voar, porque não
atam nem desatam. Benevolências e impunidades do Estado e da justiça levam à
desmoralização dos cidadãos honestos, são maus exemplos para os jovens e
poderão até comprometer a ajuda recebida da solidariedade internacional. Se não
forem tomadas medidas radicais urgentes nesta matéria perderemos todo o crédito
obtido com sacrifícios indescritíveis consentidos pelos mais velhos e nos
transformaremos numa autêntica república das bananas. O que intriga é haver
gente séria, honesta, competente e esforçada que ninguém valoriza nem é colocada
em postos de tentação financeira em que se exige gente incorruptível.
Há que pôr a
verdade e a justiça no lugar onde elas têm faltado, não com leis que são
viciosamente elaboradas, desprezadas e mal interpretadas dada a complexidade
deliberada e manhosamente metida nelas para os venais com dinheiro poderem
safar-se da cadeia servindo-se de quem as elaborou – geralmente alguns
escritórios privados de advogados bem caracterizados pelo jurista amigo Dr.
Vieira Lopes. A demora nessa mudança radical de atitude do poder terá, seguramente,
muito maus resultados, aliás, agravará os resultados que qualquer míope enxerga
facilmente.
Lamento dizê-lo,
mas já me custa identificar, sob o ponto de vista ético e moral, pela negativa,
o país actual com o que conheci, a que dei patrioticamente o meu contributo e
onde vivi nos anos iniciais da independência.
S. Vicente, Dezembro de 2012 Arsénio
Fermino de Pina
Pediatra
e sócio honorário da Adeco
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