terça-feira, 11 de dezembro de 2012

 

Da regionalização/descentralização/autonomia


 Texto da intervenção de Arsénio de Pina na Mesa Redonda sobre a Regionalização que ocorreu em 28 de Novembro de 2012 no Mindelo, organizada pelo Grupo de Dinamização do Debate sobre a Regionalização.

Como um dos meus amigos do peito da juventude, letrado de boa cepa, me falou, em tempos, de um movimento ou grupo Sanvicentino que quase exige “independência já” para Soncente, ou teria o amigo interpretado mal os objectivos do movimento ou ouvido algum despistado a falar do que não entende, e por ter dado o meu apoio a um Movimento de Cidadania Activa que nada tem a ver com tamanha estupidez, trepo para os lombos pelados do meu burrito predilecto para uma pequena incursão pelo que entendi e subscrevi relativamente ao Movimento para a regionalização, descentralização e autonomia de Cabo Verde.

Quando, no Manifesto sobre a criação deste Movimento se fala de autonomia, quer-se dizer, como defendeu Mário Soares para os Açores, na década de oitenta, altura em que havia alguns espíritos medrosos e mal informados, defendendo autonomia progressiva até à independência, pelas afinidades dos açorianos com os EUA e o receio da evolução comunista do Movimento Revolucionário do 25 de Abril, dizia eu, Mário Soares defendeu outro tipo de autonomia a que chamou de autonomia tranquila, a faculdade de tomar certas decisões sem necessidade de recorrer ao poder central que veio a prevalecer -, sem nunca ter passado pela cabeça dos proponentes do nosso Movimento pôr em causa, obviamente, a unidade nacional.

A regionalização do país, a descentralização administrativo-financeira e política das regiões e a autonomia tranquila facilitariam e promoveriam maior responsabilização dos quadros dirigentes, estimulando os cidadãos a assumirem em pleno a cidadania e a participar activamente na gestão da coisa pública, ganhando consciência e lucidez sobre os seus desígnios e objectivos.

O movimento é - não tenhamos medo das palavras - político, mas não adstrito a nenhum partido, brotado da sociedade civil. Por mais que se espreite, não se encontrará nenhum fumo partidário, nem rabo-de-gato politiqueiro. Nele podem participar todas as pessoas de boa vontade, com ideias saudáveis, com iniciativas, corajosas e determinadas, e mesmo políticos, desde que estes deixem a militância partidária e a má política fetchode na casa. Na nossa perspectiva, não é Movimento que possa ser recuperado por políticos como arma, ou estratégia dos respectivos partidos. De resto, caros ouvintes, a democracia não se esgota no voto; votar é uma maneira muito pobre de intervir e de exercer a cidadania. Devemos agir politicamente, isto é, na gestão da coisa pública, participar em debates políticos, tomar posições, defender os nossos direitos e pontos de vista com argumentos, usando os meios que temos à nossa disposição.

 

Herdámos da administração portuguesa a centralização excessiva, sendo essa mais uma razão para desenvolvermos municípios mais fortes e instituições regionais descentralizadas nas quais o Poder Central deve delegar funções e poderes. O exercício dos poderes delegados será, como não podia deixar de ser, sob controlo e fiscalização do Poder Central, mas somente quanto ao rigoroso cumprimento dos poderes delegados, isto é, poderes transferidos ao nível regional e local.

 

No centralismo democrático em moda do início da independência, explicável e até justificável no contexto da época, que fez o seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de cima, triadas “democraticamente” pelos elementos partidários de cúpula e aceites disciplinadamente (como quem diz, obedientemente) pelos militantes, e pelo povo (aqui, convenhamos, abusivamente, por o povo não estar sujeito à disciplina partidária), não havendo meios oficiais nem oficiosos de recurso e os protestos correrem o risco, quase assegurado, de penalização. Tal sistema só poderá funcionar em sistema de partido único ou ditadura, que já não é o nosso caso desde a abertura democrática do Paicv, abertura quiçá tardia que perdeu originalidade e crédito por não ter sido em tempo útil, comprometidamente coincidente com o colapso do sistema soviético e das chamadas democracias populares, seguida – o que foi louvável e louvado - de mudança tranquila do regime, através de eleições livres, para novo regime gerido pelo MpD.

 

A regionalização tem demonstrado, nos países onde foi instituída, ser um instrumento poderoso que favorece a democracia devido à participação activa dos cidadãos. Essencial na democracia a liberdade e a igualdade perante a lei para ser possível a participação da maioria, isto é, dos menos favorecidos, face a minorias natural ou artificialmente privilegiadas (democracia, como sabemos, vem do grego: demo=povo, cracia=poder - poder do povo). Ela, a regionalização, aproxima os serviços públicos das populações, diminui a burocracia e a corrupção que esta propicia, e legitima o poder através do voto, da escolha popular. É facto que as possibilidades de participação são muito maiores quando existem eleitos por mérito na competência do que quando se verifica a nomeação por parte do Governo Central.

 

O próprio facto de o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições competitivas, pode promover o investimento público e privado.  Além disso, tendo o desenvolvimento uma dimensão não apenas económica, mas igualmente social, cultural e ambiental, o poder regional democrático e as suas actividades delegadas pelo poder central podem ser um factor benéfico e uma contribuição importante para o assegurar.

Já dizia, há cerca de dois séculos, o famoso historiador que conhecemos dos bancos dos liceus, Alexandre Herculano, que os partidos políticos, sejam quais forem os seus ideais e interesses, ganham sempre com a centralização. A centralização do poder é o grande meio de este o conservar e controlar de perto porque concentrado num ponto ou local na sua omnipotência burocrática. Não tenhamos dúvidas nem ilusões: esperar a descentralização, a regionalização e a autonomia por iniciativa e opção de partidos políticos e governos é quase como garantir chuva, em Cabo Verde, no mês de Outubro. Deverá ser a sociedade civil a lutar por ela com argumentos válidos até convencer os partidos políticos e governos a adoptá-la. Nós estamos, por ora, na fase de ter proposto o seu estudo…

A nossa Constituição admite, segundo presumo, que possam ser estabelecidos regimes diferenciados para as regiões, e competirá ao Governo propor à Assembleia Nacional a sua adopção, a ser apresentada depois ao Presidente da República para promulgação e aplicação na prática.

Cremos bem que as regiões com descentralização política e administrativo-financeira podem ser um instrumento de unidade e solidariedade nacionais, e não de divisão como alguns temem, se for correctamente realizada, isto é, não sabotada ou desvirtuada pelo poder central, e as populações se aperceberem de que as regiões mais atrasadas ou negligenciadas passarão a ter autonomia e a dispor de mais recursos do que até agora. Ninguém aceita que Santiago, embora albergue cerca de metade da população do país, beneficie de dois terços dos investimentos para o desenvolvimento destinado ao país, mormente por sermos nove ilhas habitadas dispersas. Mesmo países continentais, sem descontinuidade, optaram pela regionalização.

O nosso Movimento fez uma proposta para a constituição de uma comissão de estudo, alinhando algumas das questões que vimos ventilando em escritos, que inclua todos os parceiros sociais, económicos e políticos a fim de se chegar a um consenso que leve à regionalização, descentralização e autonomia após o estudo e debate de diferentes experiências de descentralização no mundo (Marrocos, Áustria, Bélgica, Holanda, Dinamarca, etc.). É bem de ver, pelas razões aduzidas, que a divisão do país em regiões não deve jamais servir para o dividir, mas antes para unir os municípios e as populações a partir da base, das suas escolhas e afinidades.

 

  O Estatuto Especial para Praia, no contexto geral de debate que me pareceu defender recentemente o Presidente da República, e até o autarca da Praia, Ulisses Correia e Silva, julgava eu, na minha inocência e boa-fé, por tudo levar a concluir isso, que era proposta e ambição para estudo e debate alargado a ser feito, muito embora tenha havido legislação do Governo do PAICV sobre a ideia de Região Administrativa-Ilha, e mesmo lei que define as atribuições e competências dos municípios – estatuto - (Lei 134/IV/95 de 3 de Julho?), de que, de resto, ninguém fala, a qual referia a criação de um Observatório das Finanças Locais e da Descentralização, conforme vem citado no trabalho do Professor universitário, Luís Filipe Tavares, apresentado na Praia, em Maio de 2009, como Contribuição e desafios do municipalismo para o desenvolvimento de Cabo Verde.

Mas, não! Não era proposta para estudo aturado e debate como presumia. A coisa já vinha sendo cozinhada em segredo dos deuses e pecadores, à socapa, diazá na munde, gatchode, cma cosa de ladroagem, e foi subitamente proposta, e provavelmente será, dada a maioria parlamentar do partido governamental, aprovada, sem que os directamente afectados, aqueles que irão suportar as suas consequências e os que poderiam e se ofereceram a contribuir com o seu know how, se tenham pronunciado. Será, portanto, aprovado de modo discricionário e somente para a cidade da Praia.

          Afinal, o cozinhado da Praia já estava quase pronto a sair do lume para ser servido ao povo, sem que tenha deixado escapar nenhum cheirinho do pitéu. Até financiamento pelo Governo Brasileiro já tem! Francamente! Fort desafore, diria o nosso inolvidável filósofo mindelense do povo, como lhe chamou o Mestre Roque Gonçalves, Djunga Fotógrafo.

 

           E quando se diz e se escreve que eles – os da Praia e Santiago – “comem tudo e não deixam nada”, embatucam, barafustam, há vivos protestos, garantindo que não, que isso é bairrismo, como se nós outros fossemos cegos, surdos e fidje de fora sem outros direitos que não migalhas da lauta mesa praiense dos filhos legítimos. Já o disse e repito, ser sempre mau sinal do estado de democracia, quando se diz eles, referindo-se aos governantes, por tal significar que os cidadãos já não se identificam com os governantes, que lhes parecem estranhos.

Que haja um Estatuto Especial para a Praia, como capital do país, ninguém de boa-fé pode, nem deve ser contra, mas dentro de um contexto geral de descentralização, regionalização autonómica politico-legislativa e financeira. Somente limitada à Praia e Santiago é que não, por o país ser uno e indivisível. A Praia, como cabeça do país, poderá merecer, por isso, um penteado particular, mas se o corpo, isto é, as outras ilhas, as suas povoações, vilas e cidades estiverem doentes, cheias de sarna, coceira, tinha e postema (apostema), ela, a capital, cairia em decadência, não sobreviveria.

Haja sensatez! Que se oiçam todas as vozes válidas do país, que se oiçam os cidadãos! Que não se façam caixinhas com assuntos tão sérios como este! O concurso de todos é absolutamente necessário e imprescindível. Foi Salgado Zenha que disse ao Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo, numa ocasião crítica do país em que ele e Spínola queriam ludibriar o povo, e se recusava a ouvir a voz da razão, que quem não sabe ouvir, não sabe governar. Governe-se com o povo e para o povo, porque os dirigentes são, ou devem ser, como eleitos, os representantes do povo, aqueles que ele escolheu, em quem delegou os seus poderes e espera que os defendam. O nosso Djunga Fotógrafo (João Cleofas Martins), deverá estar retorcendo-se na cova com o comportamento dos nossos governantes, e mais com a passividade do mindelense, que ele tanto amava, por este parecer estar, como diz numa das suas inolvidáveis cartas que fixei em livro,  “intepide de mede”, sem ânimo nem liberdade para dar um berro de vivo protesto, como um dos personagens do romance de Jorge Amado, a quem deram água a beber em vez de cachaça, que ficou com a alcunha de Quincas Berro-d´Água. Até parece que se vive em S. Vicente em dia de mormaço que faz emudecer o mindelense. Home, cred!

 

Um dos problemas actuais dos governos, como nos diz o filósofo e amigo de juventude, José Gil, é tempo, um outro tempo, mas é o tempo. Eles, os governantes, não param para pensar, têm muita pressa de tomar iniciativas, têm de, têm de… Talvez não tenham de. Podem talvez parar … para ouvir os outros, para meditar nas propostas dos outros a fim de agirem melhor e a contento da maioria dos cidadãos. Há que entender a cultura de modo diferente. De uma maneira antropológica a cultura implica relação com todo o território, com toda uma maneira de ser, de viver e de formar uma colectividade.

 

Escrevi, há tempos, como remate a um artigo sobre o comportamento de certos governantes, o seguinte: Caros governantes! Há que respeitar um povo que sofreu carências imensas, fome e contornou precipícios terríveis, sinuosos e escorregadios, onde só transita, sem risco de cair, o pé bifurcado da cabra. E ele – o povo - aí está, mirando aqueles que prometeram melhorar a sua vida e os seus caminhos. Queremos, nós das outras ilhas, caminhar convosco de mãos dadas, em confiança, sem receio que nos pinchem pela ribanceira abaixo.

                                            

Depois dessa minha tirada aos governantes, o nosso Primeiro-Ministro fez uma declaração em Torres Vedras e vi-me na obrigação de não me calar e também expressar-me, mais uma vez, sobre o assunto, na tentativa de esclarecer mal-entendidos e ideias preconcebidas defeituosas, sem muito entrar, no entanto, no âmago da questão que só poderá ser levado a cabo por uma comissão escolhida para o efeito, conforme propusemos.

 

Os meios actuais de comunicação social, particularmente, a TV e Internet, vêm criando nos cidadãos uma certa ânsia de participação política, e até um sentimento de rebelião que contrapõe a sociedade civil à classe política e os eleitores aos eleitos, o que é bem salutar e deve ser tido em conta pelo poder, isso por haver um crescendo de mal-estar social. Infelizmente alguns governantes, enfeudados aos partidos e a interesses pouco curiais fazem parte do problema e não da solução.

 

Mas, para já, precisamos de sair da espuma da politiquice e reafirmar que ninguém favorável à regionalização propôs a execução imediata da mesma, mas sim a sua discussão alargada de modo a encontrar-se um consenso que leve à sua adopção à nossa realidade insular arquipelágica, ou, até, sua rejeição. Sem a sua discussão e conhecimento aprofundado, ninguém estará em condições de afirmar categoricamente que nos convém ou não. As verdades apodícticas – isto é, que não admitem discussão e têm de ser aceites -, existem somente em religião, tanto nos dogmas como na palavra do Papa com respeito à sua infalibilidade, limitada até somente a assuntos de fé. A ciência – a Política e a Administração são ciências – contenta-se com aproximações da verdade após estudo, discussão aturada e experimentação antes da aplicação.

 

Afirmar a inexistência de meios, como fez o nosso Primeiro-Ministro, para a regionalização, parece-nos um tanto arriscado, talvez um lapsus linguae, ou, pelo menos, imprudente. À pergunta do nosso Primeiro-Ministro de “quem irá pagar isso?”, para negar a sua viabilidade, a única resposta será uma série de outras perguntas: quem tem pago a pesada estrutura estatal que vai gerindo o nosso país? Será que acha impossível tornar mais eficiente a Administração Pública? Não será possível diminuir o peso paquidérmico do Estado, diminuindo, ou associando ministérios, reduzindo o número de deputados e eliminando agências e instituições criadas, embora supostamente na melhor das boas intenções, cujas funções parecem ter-se convertido mais em favorecedores de amigos, correligionários e do mercado do que, como se dizia e se prometeu, em benefício dos cidadãos? Por que se tem adiado a reforma tão necessária e prometida milhentas de vezes, da Administração Pública? Por que, para se privatizarem as empresas públicas entupidas de funcionários e deficitárias por isso, tornando-as mais eficientes, rentáveis e apetecíveis ao privado, se despede pessoal supérfluo aí metido por amigos do poder central, e não antes em benefício de todos? Onde se vai arranjar dinheiro para o Estatuto Especial para a Praia quando acabar o apoio brasileiro?

Os municípios também fazem despesas; também implicam instalações, funcionários e a detestável burocracia e não empobrecem o país. As regiões também não irão fazê-lo, como explicarei mais adiante. É preciso reter que as regiões não serão dotadas de nenhum poder político extraordinário, nem de governo próprio. As competências que para elas se prevêem situam-se predominantemente na área da planificação e da coordenação de realizações e actividades a nível supra municipal, ficando mais próximas das populações para poderem ouvir as suas queixas, sugestões e até beneficiar com as suas ajudas, sem necessidade de passar meses e anos à espera de decisões centrais de quem desconhece as realidades regionais e locais.

 

O Estado deve exercer as competências que as instâncias descentralizadas, as abaixo delas e os cidadãos não possam exercer melhor do que ele, abandonando o autoritarismo concentrado e pessoalizado do passado.

 

Dito somente isso conclui-se ser possível diminuir bastante o peso da Administração do Estado e torná-lo mais funcional e eficiente, isto é, capaz de produzir melhores resultados com menos despesas e até menos gente que poderia ser absorvida pelas actividades privadas desembaraçadas de peias burocráticas e da morosidade da justiça. A descentralização seria uma mais-valia nesse processo de reforma e racionalização da função pública.

É óbvio que a regionalização, descentralização e autonomia podem manifestar-se numa multiplicidade de formas, inclusive como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais contra a média uniforme, impotente e artificial do centralismo. Nelas se manifestam e afirmam iniciativas, o espírito inventivo, democrático e autonómico das populações. As liberdades municipais, regionais e respectivas iniciativas dão às populações fisionomia e vida próprias impossíveis na centralização esterilizadora e monocórdica. Portanto, bom será não alimentarmos ilusões, porque nem os governos, nem os partidos políticos passíveis de chegar à governação morrem de amores por elas. A sociedade civil é que tem de lutar por isso, numa atitude política não partidária, integralmente civilista. Os militantes de partidos políticos poderão e deverão também participar, mas despindo as vestes partidárias, não como militantes mas como cidadãos e patriotas.

 

Ninguém deve pedir por favor aquilo que lhe pertence por direito. É fundamental que os governos aprendam a escutar as vozes dos cidadãos, da sociedade civil. Há que combater e acabar com a tendência de as pessoas que deveriam ser ouvidas e respeitadas pela sua competência, experiência, isenção e rectidão de carácter, não sendo militantes do partido no poder, de serem marginalizadas pelo poder político. Afinal, o Estado mais não é do que uma máquina que se destina a fornecer-nos os serviços que nós, cidadãos não militantes e militantes, reputamos essenciais. Se não funciona, ou funciona mal, é porque algo falhou na forma como escolhemos os dirigentes e temos todo o direito de tentar modificar essa forma de escolha.

 

Um país onde a inteligência é um capital inútil e o único capital deveras produtivo e utilizado é a falta de escrúpulos e de vergonha na pele da cara, não tem grandes hipóteses de progredir. Não queiramos ser nem tolerar isso.

 

Há gente que advoga, e muito bem, a desestatização das nossas cabeças, isto é, que não se espere que tudo venha do Estado, dos governos. Todavia esquecem-se de que a culpa tem sido dos governos, não das pessoas, por ter havido o controlo e dependência total por parte dos governos das iniciativas do privado, o que levou à criação de empresários parasitários, tímidos e abúlicos, de um lado, e de oportunistas mafiosos, de outro, não permitindo a formação, como expliquei algures, de uma classe empresarial forte, independente e honesta capaz de investir na promoção e criação de indústrias no país. Grande parte desta classe tem preferido viver da rabidância, sem correr nenhuns riscos, e de negócios obscuros que seriam penalizados se a justiça funcionasse como devia. Por outro lado – isso no campo da agricultura, assunto que tenho abordado várias vezes nos últimos tempos - os governantes têm estado a isolar-se cada vez mais do campo e dos camponeses, em várias ilhas, levando estes a abandonar o campo, migrando para os meios urbanos, ou emigrando para o estrangeiro, por falta de apoios e de meios para vencer as vicissitudes da vida rural.

Alguns leitores que se manifestaram face às palavras de descrença do Primeiro-Ministro na regionalização julgam que esta o iria prejudicar as ilhas de menor população, beneficiando as mais populosas, o que é falso, por a distribuição de fundos não dever subordinar-se somente ao número de habitantes mas fundamentalmente à necessidade de se criarem infraestruturas que estimulem e garantam um desenvolvimento sustentável. A canalização da maioria dos fundos para uma única ilha, mesmo que seja sede da capital do país, é vício - isso sim, bairrista -, e não a defesa da distribuição equitativa e reconhecimento de especificidades de certas ilhas com tradições respeitáveis a serem acarinhadas e estimuladas.

Também se falou do perigo da atomização política. Qual atomização! Pretende-se, sim, descentralizar o poder levando-o para junto das populações, delegado e praticado por pessoas que estas conhecem, a quem se dirigem com facilidade, acessíveis, que respeitam e elegeram, em vez de ficar na Praia, de cócoras, como ironizava Eça de Queiroz, nos diferentes ministérios e noutras estruturas do poder central. Que sabe o Palácio da Várzea, na Praia, do que se passa em Lombo Pelode, em S. Nicolau, ou no Tantum e Campo das Fontes, na Brava? Ouvem, acaso, o coro dos seus queixumes e protestos? Um poder local descentralizado, sim: testemunharia o drama das suas vidas e bater-se-ia por melhoramentos que, sem ele, encontrariam obstáculos nos clássicos ouvidos moucos da Praia.

 

Um país onde por todo o lado, o que conta são as normas e a burocracia emperradora, não a substância dos problemas, prefere que os funcionários públicos sejam autómatos, obedientes e resignados a conferir assinaturas, regulamentos e a praticar infinitas burocracias, em vez da delegação neles de um mínimo de autonomia e capacidade de decisão. É sabido que o poder não aprecia muito, nem tem tradição de delegar poderes e responsabilidades, mais pelo gosto pelo poder do que por razões racionais; porém, se meditasse no assunto, sem egoísmos nem desvios condenáveis, concluiria que isso até seria vantajoso por lhe proporcionar mais disponibilidade de tempo para meditar, dialogar com os cidadãos e tomar decisões mais bem pensadas, digeridas e até partilhadas.

                              

Todo o mundo elogia a Civilização Grega Antiga, mãe da Civilização Ocidental. E isso começou a sério com os jónios. A Jónia era um reino insular, com muitas ilhas. Não havia concentração de poder que pudesse impor uniformidade social e intelectual em todas as ilhas. Tornou-se possível a investigação, livre de peias do peso gongónico das instâncias estatais centrais.

Eles estavam na encruzilhada de civilizações, portanto, em ilhas, como nós em Cabo Verde, não num dos centros. O poder político estava nas mãos de mercadores que promoviam, activamente, a tecnologia de que dependia a prosperidade. Foi no Mediterrâneo Oriental onde as civilizações africanas, asiáticas e europeias, incluindo as grandes culturas do Egipto e da Mesopotâmia, se encontraram e mutuamente se fertilizaram num vigoroso e inebriante confronto de conceitos, línguas, ideias e até de deuses, isso por volta de 600 a 400 anos antes de Cristo. Por que não nós?

A grande revolução no pensamento humano começou, pois, em ilhas, nas Ilhas Jónicas. A chave dessa revolução foram as mãos, como referiu o saudoso Mário Fonseca no seu excelente artigo publicado em A Semana, As Mãos Cegas. Alguns dos brilhantes pensadores jónicos eram filhos de marinheiros, mercadores, agricultores, oleiros e tecelões. Estavam habituados a mexer em coisas, a construí-las e repará-las, ao contrário dos nobres, sacerdotes e escribas de outras nações que, criados no luxo, tinham relutância em sujar as mãos.

 

Afinal – já vou terminar - o que é que queremos com a nossa proposta, que aqueles que pretendem baralhar as consciências e manter a sabura na inércia quiseram transformar em reola? Tão simplesmente que se abra uma vasto debate nacional, com espírito não partidário, no qual participem todos quantos têm alguma experiência na matéria ou contributo a dar, sobre a questão da regionalização, descentralização e autonomia política, administrativa e financeira, a ver se será, como julgamos, útil e aplicável a Cabo Verde. Será contraproducente partidarizar esta questão e tomar posições condenatórias sem a estudar. Outrossim, ninguém tem o direito de decidir em nome do povo sem o escutar, sem o ouvir em ambiente de plena liberdade. Não estamos pedindo a adopção da regionalização por decreto, à semelhança da criação de estruturas e instituições como cidades, concelhos e freguesias sem se ouvirem as populações e sem avaliar a sua viabilidade económica ou interesse para as populações.

 

A descentralização é um instrumento fundamental da estratégia de racionalização da administração pública. Há necessidade urgente entre nós de vencer as assimetrias insulares e regionais para que Cabo Verde seja um país economicamente viável, mais desenvolvido, capaz de utilizar os seus parcos recursos e de mobilizar todos os cabo-verdianos, residentes e da mal aproveitada diáspora, de forma sustentada, de todas as ilhas, reforçando e adubando as suas raízes, a unidade das diversidades entre as cidades e as vilas, entre o campo e o litoral. Sem isso, continuaremos a viver enganados, iludidos na convicção da nossa sustentabilidade como país independente, mas somente enquanto beneficiarmos da solidariedade e ajuda internacionais. Não nos iludamos com a categoria de país de desenvolvimento médio dependente da ajuda exterior, por essa condição não ser sustentável, até por já estar a diminuir a ajuda internacional. Temos de ser capazes, com iniciativas viáveis, de ser inventivos e solidários para poder progredir.

No artigo “A ignorância da multidisciplinaridade e da intersectorialidade”, referia-me a esta falha grave, a que o actual Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Dr. António Costa, parente do grande médico Dr. Sócrates da Costa, que bem conhecemos em S. Vicente e Cabo Verde, apelida de chaga da administração pública a nível regional, que é a impossibilidade de pôr dois organismos da administração a trabalharem em conjunto. Citei o caso da construção da estrada para o Calhau em S. Vicente e podia ter citado muitos outros por, infelizmente abundarem. Há que resolver essa pecha maior da colaboração entre serviços com determinação, tornando-a obrigatória, para poupar dinheiro e evitar realizações coxas de nascença. Havendo trabalho conjunto - que seria facilitado se as decisões dependessem de organizações loco-regionais que conhecem melhor as suas realidades e carências -, de uma só cajadada se matavam dois ou mais coelhos, quando, partindo a decisão do poder central à distância, uma cajadada, semelhante a tiro de canhão, mata mal, com enorme desperdício, um único coelho que mal se aproveita.

 

A regionalização é mais uma forma de descentralização, como o são o reforço do poder dos municípios e das freguesias, ou a transferência de poder para as associações públicas, como as ordens profissionais, ou para instituições particulares, não-governamentais, da sociedade civil, do tipo da Adeco, da ONDS, Amigos da Natureza e outras do género de solidariedade e defesa do cidadão trabalhador, contribuinte e consumidor.

 

Opor-se, ou apresentar empecilhos à regionalização por poder ser uma ameaça à unidade nacional é uma grande patranha que não tem pés para marchar, que se assemelha a uma das figuras do quotidiano utilitário do malogrado Prof. João Manuel Varela – os matadores do burrinho do bispo - pessoas que se empenham em matar estruturas que não fazem mal a ninguém, nem à sociedade civil, nem às instituições do Estado, e, até são, pelo contrário úteis.

A regionalização poderia aproveitar-se das administrações desconcentradas do Estado (a diferença entre organismo desconcentrado e descentralizado é que naquele os dirigentes são nomeados pelo governo, ao passo que no descentralizado, são eleitos pelos cidadãos da região ou município), o que facilitaria também a reforma administrativa, ainda emperrada com alguns cascalhos na engrenagem burocrática. As regiões podem ser criadas, na opinião do Dr. António Costa, numa lógica de racionalização das repartições desconcentradas, traduzindo-se em poupanças e eficiência.

As regiões devem ocupar-se de decisões que ultrapassam os municípios, isto é, que não podem ser resolvidos a esse nível sem egoísmo dos respectivos municípios: questões de planeamento regional, gestão de incentivos, definição de prioridades de investimento público. A regionalização não deixa também de ter desvantagens, mas não há dúvidas de que as vantagens superam os inconvenientes, até por estes serem mais facilmente detectáveis por estarem dispersos e não em bloco a nível central. Se se começar, por exemplo, por uma região piloto a título de ensaio, isso permitiria medir no terreno as vantagens e desvantagens da regionalização.

 

A regionalização poderá ser mesmo uma oportunidade de fazer a reforma administrativa, bastas vezes anunciada e iguais vezes adiada, com efeito racionalizador da despesa pública ao nível regional e de maior eficiência, quer nas políticas públicas quer nos incentivos ao desenvolvimento regional. O poder tem de se convencer haver somente boas razões e vantagens em abrir mãos de poderes que não consegue utilizar adequadamente, delegando-os a instâncias mais próximas das populações, geridas por eleitos que estas conhecem, em quem confiam, que escolheram em liberdade, a bem de todos e da boa governação.

 

Embora a regionalização proposta por um dos partidos políticos para Portugal, com os seus diplomas de aplicação e controlo, não tenha ainda sido concretizada, creio de interesse e útil para Cabo Verde o seu estudo. O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que está aplicando com sucesso algumas fases da descentralização e regionalização no seu concelho, seria, obviamente, um óptimo conselheiro.

 

Mais recentemente o nosso Primeiro-Ministro aceitou finalmente nomear uma comissão, conforme propusemos, para estudo da regionalização, descentralização e autonomia. Acreditamos que não irão falsear os nossos propósitos nomeando arbitrariamente uma comissão favorável somente à descentralização administrativa, que nada adiantaria, por já a termos sob a denominação de repartições desconcentradas, que cultivam a passividade burocrática, a obediência, quando não ao deferimento dos senhores do poder central e dos excessos do centralismo político e administrativo camuflado.

 

Posta mais esta pequena semente na terra, praza ao bom Deus de todas as religiões que germine e dê frutos em benefício de todos, gregos e troianos, como dizia o nosso adorado João Cleofas Martins. Ámen, e mãos à obra.

 

S. Vicente, Novembro de 2012                                  Arsénio Fermino de Pina

                                                                           Pediatra e sócio honorário da Adeco

 

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