sexta-feira, 7 de dezembro de 2012


 

RECADO PARA A “REPÚBLICA DE SANTIAGO”

Este é um recado para os fundamentalistas de uma utópica “República de Santiago”, que não ganhou corpo nos dias de luta pela independência e que tendo então falhado, vive hoje o seu sonho fundamentalista de alma penada: sonham como tribo maioritária, detentora de maior superfície territorial e, também, de uma maior população, facto que apregoam ao voltar de cada esquina, urbi et orbi.

Não surpreende, pois, que actuem nos nossos dias, com pompa e galhardia, como senhores de um continente bordado de ilhas periféricas.

Tratar-se-ia, porém, de um sonho inócuo, se os fundamentalistas não insistissem em tentar, à margem da letra e do espírito de lei, sobrepor os seus sonhos à realidade deste país de ilhas, onde o Estado é uma associação criada pelos próprios indivíduos, através de um consenso comum (contrato social) para proteger os seus direitos fundamentais e assegurar a sua livre e pacifica convivência. De tanto pensar na “quantidade”, os fundamentalistas acabam por minimizar a igualdade, um valor supremo, o sangue que percorre todo o corpo da república e marca com o seu DNA todas as instituições que dão razão de ser ao estado republicano.

No plano político, os fundamentalistas utópicos contrapõem a hegemonia à ortodoxia republicana e, nos planos histórico e socioculturais, contrapõem o africanismo irredutível ao crioulo, trave mestra e definidor da nossa cultura nacional. Por outras palavras: os fundamentalistas pensam no continente, os crioulos pensam nas ilhas, na igualdade, nas especificidades culturais de cada ilha, na dignidade de cada uma delas, enquanto entidade sócio-cultural.

Este recado tem, portanto, um destinatário facilmente identificável: os promotores de uma política fundamentalista que, embora não resulte de preceitos constitucionalmente consagrados ou de programas de governo aprovados pela Assembleia da República, atravessam e afecta perigosamente os nossos dirigentes, desde a governação à presidência da república.

Apesar de Cabo Verde constituir um duplo milagre, na sua génese bem como na sua configuração e estruturação regional, é algo que os fundamentalistas utópicos se recusam a apreender: para eles Cabo Verde é a África traída e não a criação dos cabo-verdianos.

Assim sendo, é no quadro dessa lógica redutora e míope que se deve situar o contraste brutal entre a esperança africana dos fundamentalistas utópicos e a realidade vivida no chão da crioulidade. A defesa da identidade regional, que implica necessariamente a autonomia política e administrativa como corolários de uma situação geográfica e cultural específicas, tem sido apontada pelos fundamentalistas como “expressão de bairrismo”, uma qualificação, pobre de autenticidade e objectividade, para promover o seu proselitismo. A defesa da regionalização política e administrativa não é um acto vergonhoso como pretendem os fundamentalistas utópicos mas sim, pura e simplesmente, um acto dotado das mais fortes legitimidades – a histórica e a cultural. Devotar afeição especial e particular à sua cidade não pode ser confundido com bairrismo, como pretendem os fundamentalistas crer e aceitar.

Não é, por acaso, que os fundamentalistas utópicos da “República de Santiago” confundem deliberadamente a razão estrutural, que leva à libertação da África, com a razão conjuntural que esteve na origem da libertação de Cabo Verde. Esta confusão é injustificadamente entretida, uma vez que ela remete para um plano periférico a questão, portanto essencial, de saber porque é que os “crioulos” que lutaram, em número esmagador, pela libertação de Cabo Verde, nunca se converteram em apóstolos do fundamentalismo utópico. Estes fundamentalistas utópicos lêem na adesão da totalidade dos cabo-verdianos à causa da independência uma afirmação de africanidade e não uma porta aberta para a emancipação e universalização da crioulidade, uma causa muitas vezes mal definida mas profundamente ansiada pela população de todas as ilhas.

Os ataques, as atitudes de desrespeito e de indignificação por parte dos fundamentalistas contra os paradigmas culturais, que resistem a alinhamentos e submissões, não constituem actos gratuitos, mas expressões de uma política anti-republicana, que defende a horizontalização, em nome de uma maioria numérica e territorial, em detrimento das especificidades regionais, que dão corpo e alma à existência de Cabo Verde como nação.

Por representar, a um nível elevado, valores paradigmáticos da crioulidade, São Vicente transformou-se em alvo preferido da sanha fundamentalista. O homem crioulo é, de forma desabusada e redutora, transfigurado em “mulato”, uma simbolização daquilo que no seu entender representa o menosprezo da raça negra pelos intrusos colonialistas. A morna, espelho da alma do homem crioulo cabo-verdiano é, por implicação lógica, um pecado cultural dos alienados. Está, pois, na linha lógica do fundamentalismo, a recusa de perdoar um tal crime de lesa-cultura. Rejeitam, por isso,  a força dos factos e os ensinamentos de história que fazem recuar as fronteiras do obscurantismo e da ignorância. Essa é a marca definidora de todos os fundamentalismos.

Os nossos fundamentalistas utópicos militaram, antes e depois da independência, pela instauração de uma república negro-africana em Cabo Verde, cujo baluarte seria a Ilha de Santiago que, no seu entender, dispõe de uma legitimidade histórica e cultural particular. A divisa “unidade e luta” do PAIGC, por um lado, e a necessidade imperiosa de utilizar, em número expressivo, os quadros de barlavento para a infra-estruturação do Estado em formação, gorou, porém, os seus intentos, sem, contudo, lhes amainar o sonho de grandeza africana e de subalternização de expressões da crioulidade como, por exemplo, a morna.

É dentro deste quadro que os factos que iremos assinalar ganham uma dimensão política, cultural e sociológica que permite contextualizá-los, ao invés de os acomodar na prateleira de “perdidos e achados”, como actos insignificantes do nosso quotidiano.

O bar da Ofélia, na Avenida da Holanda em Chã de Monte Sossego era, nos tempos agitados da independência, um cantinho que oferecia boa música e bons petiscos servidos por mocinhas mindelenses, que não deixavam sossegar os olhos da clientela. Os músicos mais inspirados da ilha cantavam e tocavam pela noite adentro. Tchuf escancarava sua boca enorme e deixava escapar, em cascata, músicas de outrora, que sua voz rouca e esfarrapada emprestava notas fortes de autenticidade. Muitas das composições que interpretava, eram da lavra do seu pai, um barbeiro compositor que nos anos 30, em plena ascensão do Fascismo e do Nazismo na Europa, condenou, numa morna que ganharia celebridade, a invasão da “Abissínia Coitada” pelas tropas de Mussolini. Manuel de Novas, inspirado pela liberdade recém-conquistada, erguia o cálice da música e brindava os presentes com mornas e coladeiras de sua autoria, que eram pinceladas fortes e animadas do Mindelo e suas gentes. Frank Cavaquim, pequenino e discreto como o seu instrumento, era pai da morna que ele cantava, como um hino à sua terra: “Cabo Verde ê rotcha nua cima minino ta nascê”, e Canhota nunca se esquecia de arrancar às tripas do seu violão, solos do Luis Rendall, que evocavam o roncar das ondas nas imensas praias da Boavista. Cada bordão era uma onda que monologava atormentado pela saudade dos que partiam.

Em noite de tocatina, apareceu na Ofélia um jovem ministro da cultura que se encontrava de visita à ilha. Manuel de Novas, militante do PAIGC, reconheceu-o logo e, em gesto de morabeza muito mindelense, anunciou que iria dedicar uma morna ao Camarada Ministro da Cultura. Deu o tom aos companheiros e arrancou: “esse ê qu’ê Mindelo coração de Cabo Verde…” Foi a flecha que ele, inadvertidamente, atirou ao coração do fundamentalista. Sem hesitar, o Camarada Ministro ordenou que acabassem imediatamente com aquela música, “porque Mindelo não é nenhum coração de Cabo Verde”.

Quando Manuel de Novas nos contou esse caso, em Cascais/Portugal, onde se encontrava em tratamento, já tínhamos tido notícias desse ataque brutal de um fundamentalista contra a morna e contra Mindelo ao mesmo tempo. “Se eu não estivesse envolvido pessoalmente, nunca acreditaria numa coisa dessas. À primeira vista parece ignorância mas não é. Sinto sempre um nó na garganta quando falo nisso.” – Rematou o Manuel de Novas para pôr um ponto final em história tão triste, vinda da parte de um Ministro da Cultura.

Um outro fundamentalista, intelectual celebrado no Plateau, animador da Pró-Praia e autor de artigos de opinião, num grande jornal do país, parece intuído de um desejo mórbido e incontrolável de humilhar, sempre que escreve sobre São Vicente. Inspirado pelas mesmas fontes do camarada Ministro da Cultura, este intelectual não teve escrúpulos em escrever que Mindelo nasceu no “Lombo”, isto é, que a nossa cidade é fruto da prostituição. Argumentou autorititivamente. E o intelectual disse “…”.

Há poucos meses, esse mesmo autor decidiu dedicar aos mindelences uma lição de civilização… Vestido de sociólogo e economista, subiu à cátedra para nos lembrar que somos um bando de indolentes (preguiçosos), destituídos de espírito de iniciativa empresarial, em contraste com a classe empresarial da capital, que acumula capital, constrói arranha-céus, dispõe de carros de luxo para mulher e amantes e importa peixe congelado do Japão para restaurantes da capital. Transpirando de autoridade, enumerou empresas e empresários de sucesso que os são-vicentinos deviam tomar por referências, tendo-se, porém, esquecido de assinalar que as águias de São Vicente voam menos alto e as lanchas voadoras do Porto Grande são menos velozes que as da capital. Esta lição de civilização, remete-nos para a “Seroantropologia do Homem Cabo-Verdiano”, uma obra editada nos anos 50 pela antiga Junta de Investigações do Ultramar, sob a orientação do falecido Professor Almerindo Lessa. Num colóquio realizado em Mindelo, reunindo escritores, intelectuais e homens de negócio, os cabo-verdianos foram confrontados com a etiqueta da indolência “preguiça” que apresentava como característica marcante da nossa sociedade. A parte cabo-verdiana insurgiu-se, em bloco, contra o que considerava uma infâmia, um acto destituído de toda a razoabilidade. O próprio Jorge Barbosa, pouco propício como era em argumentar contra o pensamento oficial, utilizou a arma da poesia para defender os cabo-verdianos de uma etiqueta civilizacional, que além de injusta os estigmatizava desnecessariamente.

Não deixa, deste modo, de constituir matéria para reflexão o facto de decorridos cerca de quatro décadas depois da nossa independência, um intelectual fundamentalista, sediado na capital, surja a dar-nos lições de civilização, como se São Vicente fosse um apêndice da utópica República de Santiago e não uma parte assinalável da República de Cabo Verde… A divisa deste intelectual parece ser “incivilizar” com a prostituição e “civilizar” com o empreendedorismo – uma receita que tem de ser liminarmente rejeitada.

Na esteira dos factos políticos que trazem a chancela do fundamentalismo utópico, apareceu ultimamente um Ministro da Cultura que se socorre do tartufismo para quebrantar a morna. Segundo ele, “a morna só poderia ter nascido em Santiago”. Ao atribuir voluntariosamente à morna esta paternidade, o Ministro vai de encontro ao óbvio e à carga de investigação que desautoriza a sua afirmação. Este súbito interesse do senhor Ministro da Cultura em chamar a morna para junto de si, outra coisa não é senão uma estratégia para a meter no colete de força da burocracia e condicionar, desse modo, a sua expansão e difusão. Há sinais premonitores que não enganam. De viola às costas, macaqueando o brasileiro Gilberto Gil e de uniforme branco e impoluto, ele percorre as ilhas a erguer “Casas da Cultura” e a promover a sua sociolinguística. Está sempre rodeado de técnicos e tocadores, com ambição de ensinar os tocadores das outras ilhas, que têm de afinar pelo diapasão da capital. Reconhecemos que se trata de uma forma muito original de nacionalizar os músicos.

As actividades propriamente culturais sofrem, todavia, de uma insuficiência e de uma acentuada mediocridade que as colocam ao nível de tosco artesanato. Nesta área, copiar e macaquear é uma regra, criar é uma excepção, que se remete para as calendas gregas. É por isso que os debates sobre cultura, que se realizam preferencialmente com pessoas da mesma área política, são transformados em processo encantatório para fazer sonhar, em detrimento de iniciativas da sociedade civil que estiolam, por falta de sensibilidade dos directores gerais e representantes transformados em correias de transmissão da burocracia.

Os cavaleiros e os bem-nascidos da utópica República de Santiago são muitas vezes descendentes de morgados, que tiveram de pôr de parte a aristocratização através da posse da terra. Processam hoje essa aristocratização por via do “doutoramento” e da promoção política nas grandes avenidas partidárias e da governação, que lhes assegura status e recompensa financeira simultaneamente. Dentro deste grupo podemos destacar uma nova versão do fundamentalismo, que procura, após um “demorado olhar” sobre Cabo Verde, criar um “index”, onde regista, de forma pormenorizada, todos os crioulos que ousaram intervir, por iniciativa pessoal, na criação de obras temáticas sobre Cabo Verde. Este “demorado olhar” fundamentalista é, porém, um olhar desfocado e estrábico que mal disfarça a ignorância e os preconceitos que fazem correr o autor. Para ele, os crioulos de São Vicente e das outras ilhas do Barlavento foram sempre cúmplices da “colonização”, que deles se serviu, como meio de facilitar a manutenção de Santiago sob o jugo de ignorância. O “olhar” é totalmente desfocado quando o autor atribui aos crioulos a co-autoria de uma política de educação, que ele utilizou em benefício próprio, e sabe bem que só pertencia ao governo de Lisboa. Ele não poupa ninguém, porque o estrabismo matou-lhe a sensibilidade e lhe atrofiou a memória. Por isso, montado no seu cavalo da sagacidade, ele percorre as cearas da ignorância a semear o evangélio do ódio e do preconceito, como bom fundamentalista que é.

Compreende-se que os alienados, criadores da morna e de uma literatura de cunho marcadamente Barlaventista, se transformaram em alvo da incompreensão e das humilhações e descriminações dos fundamentalistas da utópica República de Santiago, onde o delírio de grandeza africana cedo se apoderou dos jovens cedentes de libertação. A frustração, com marcadas incidências psicológicas, sociais e políticas por eles vivida, foi até muito recentemente agravada pela proibição, por via administrativa, do exercício pleno da cidadania cultural.

O recente discurso do Primeiro-Ministro na Assembleia Geral das Nações Unidas, vazado em “Krioulo de Santiago”, deixou eufóricos os fundamentalistas, que o louvaram com hossanas. A intervenção do Primeiro-Ministro, com carácter mais político do que linguístico, cauciona o crioulo da maioria para-africana e relega para espaços periféricos outros crioulos, com destaque para o de São Vicente.

 

O funeral de Cesária Évora fornece um momento particular de humilhação e descriminação de São Vicente que não deixará de provocar algum alívio aos fundamentalistas utópicos, mas que a história futura, estamos certos, não deixará de registar como um lamentável acto de insensibilidade da parte dos governantes, ao mais alto nível.

Assinalamos que Cesária Évora viajou com um passaporte diplomático cabo-verdiano, que lhe fora atribuído, como reconhecimento do serviço prestado a Cabo Verde, como rainha do blue cabo-verdiano que é a morna. Actuava em festivais à volta do mundo, mas durante mais vinte anos de carreira nunca recebeu um convite para actuar na Gamboa. Foi uma única vez actuar na capital por iniciativa do seu manager, o Djô da silva. Através dessa discriminação, que é um acto intolerável, os fundamentalistas fizeram um cerco à morna e a São Vicente, que Cesária Évora tão bem representava. A notícia da sua morte, numa manhã de Dezembro de 2011 fez emergir um tsunami de solidariedade e homenagens, de todos os cantos do mundo, do povo de pés descalços a altos dignitários, que a sua maneira de transmitir a morna, com voz e presença inconfundíveis, tinha acabado por conquistar. Com ela, a morna tinha galgado a lugar cimeiro nos areópagos culturais de todo o mundo, como sinónimo da crioulidade e da cabo-verdianidade. Perante essa reacção, a presidência da república ordenou que o funeral da diva se fizesse com honras do Estado, anulando dessa maneira o funeral municipal, que já tinha sido anunciado. O povo de São Vicente aderiu em massa mas o Protocolo do Estado não encontrou um são-vicentino, dentre os milhares que a Cesária visitava e recebia em casa dela, para dizer uma palavrinha de despedida. Fomos surpreendidos, todavia, por um “dizeur” de poesia, um cliente do partido do Governo, que se pôs no bico dos pés, para maltratar um poema seleccionado à pressa e sem nenhum vínculo com a defunta. A maior surpresa estava, no entanto, reservada para o cortejo da igreja ao cemitério. Músicos transportados da capital para o efeito, assumiram a direcção musical da cerimónia, pondo de rastos os músicos mindelences que compareceram, transportando cada um o seu instrumento. Foi uma demonstração de hegemonia e prepotência que os governantes poderiam ter evitado, se se lembrassem que os mindelenses são gente sensível e vulnerável a ofensas desse tipo e não indolentes e pobres de iniciativa como dizia o intelectual fundamentalista atrás referido. O povo humilhado e descriminado reagiu imediatamente, já fora do colete de força e de humilhação que lhe impunha o protocolo hegemónico do Estado. Terminado o cortejo, milhares de pessoas juntaram-se na rua Fernando Ferreira Fortes, tendo em frente à casa da Cesária Évora e, por detrás, um monumento de betão cinzento erguido onde fora a casa do doutor Adriano Duarte Silva, um património mindelense que os homens do PAIGC (Engenheiro Manuel Inocêncio de Sousa, dr. Armindo Maurício e dra. Filomena Vieria/Martins), com o aval do Governo e com alguma negligência do nosso município, foram incapazes de impedir a consumação desse crime de lesa-património que ficará registado na história como uma ofensa deliberada do Governo da República. O quadro em frente à casa da Cesária Évora, com o povo de São Vicente a entoar as músicas que a diva imortalizou, configurava uma demonstração de desagravo e de protesto, prenhe de simbolismos. Era um recado colectivo do povo de São Vicente para todos os fundamentalistas utópicos, inimigos da morna e estigmatiza dores da crioulidade. Um recado, também, para o Presidente da Republica, o seu Protocolo e todos os Dirigentes que estiveram presentes.

Os são-vicentinos, é verdade, não escapam às suas próprias ambiguidades, quando se sentem vítimas de injustiças, de atentados à sua dignidade ou à sua liberdade. Impotentes para fazer prevalecer os seus direitos, refugiam-se nas mais das vezes no silêncio ou protestam, sem grande convicção, porque se encontram desinformados. Ante os obstáculos que se lhes deparam, mostram-se mais resignados que indignados. Mas a sua resignação nada tem de tranquilizador uma vez que ela mora paredes-meias com o desespero, que recorrentemente preludia a revolta. Os males inerentes ao nosso regime e ao próprio sistema levaram já ao bloqueamento da sociedade mindelense. O Governo, porém, não contesta e as forças da oposição fazem coro. Com efeito, a estrutura centralizadora do poder já deu provas mais do que suficientes que ela não serve a heterogeneidade cultural e linguística de Cabo Verde, vazada em moldes regionais, marcados estes pelo selo geo-político da descontinuidade territorial.

A centralização do poder foi historicamente necessária para lançar os alicerces do Estado e viabilizar a Republica; mas, hoje, a descentralização política e administrativa tornou-se um imperativo de governação, porque a centralização tornou-se asfixiante, depois de ter cumprido o seu tempo dialéctico.

A democracia representativa esgota-se a um ritmo acelerado, o que resulta do facto de serem os partidos e não o povo a gozar da representação na Assembleia da República. Para agravar esta situação, a falta de autonomia pessoal, está em vias de nos transformar em cidadãos social e civilmente mortos, a caminho de se transformarem em propriedade de outrem. Em todos os sectores da actividade social, os atrasos, as injustiças, os atritos, os maus humores provam que a máquina democrática já não funciona tão bem como desejaríamos e quereríamos. A desilusão e o descontentamento que nos sufoca não podem, todavia, ser totalmente da nossa inteira responsabilidade. Nestas circunstâncias, os são-vicentinos sentem-se legitimados para exigir do Governo que pense numa política para a ilha e ponha de lado a execução de políticas esfarrapadas, segundo um caderno de encargos burocrático e cheio de promessas sem amanhã.

Independentemente dos nossos pecados, não calaremos perante as humilhações dos fundamentalistas utópicos. Podem sonhar com leões, elefantes ou outras feras como o “Alupec”. Nós continuaremos a cultivar a morna a honrar a memória da Cesária Évora, que em mais de vinte anos de carreira nunca recebeu um convite para cantar na Gamboa. Para isso lutaremos sempre para evitar que a frustração nos venha impedir de fluir a liberdade e a igualdade, o poema republicano que todos nós escrevemos, para todos nós.

 

Onésimo Silveira, 25/04/2012

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