ILHAS,
SOCIEDADES E LÍNGUAS MATERNAS
As crenças, as ideias, as normas e as tradições, numa palavra, a cultura, dão significação própria e específica à vida política e social de cada uma das nossas ilhas. Logo, a cultura constitui a marca de individualização de cada ilha, elemento caracterizador ao qual devemos associar a língua materna, isto é, o crioulo, que varia de ilha para ilha.
As nossas ilhas apontam, cada uma, para uma plasmação histórica diferenciada e uma personalidade social bem caracterizada e identificada. Por outras palavras: as ilhas são, por sua natureza e sua história, entidades fortemente regionais.
Foi sobre esta realidade histórica feita de ilhas, com sociedades próprias e uma língua individualizada, que acabaríamos por fincar os alicerces da nossa independência, que fez de nós cidadãos e homens livres na república soberana.
Todavia, apesar da força dos argumentos históricos que os factos sublinham e que apontam todos para uma forte identidade regional, a nossa Constituição, paradoxalmente, acabou dando asilo a um conceito de unidade nacional inspirado pela escola jurídico-constitucionalista do regime português do Estado Novo, em detrimento da unidade da nação cabo-verdiana, já realizada e encarnada pela ilha-região, uma entidade geográfica social e cultural forjada longe do poder central, com plena autonomia de iniciativas, que assinalava conquistas importantes nos domínios da liberdade de pensamento e da criação intelectual. Foi neste ambiente de autonomia que despontaram as primeiras manifestações de orgulho nacionalista.
É nosso entendimento que foi graças a essa unidade centrada na ilha-região que iniciámos o nosso percurso como estado independente, sem crises de identidade e sem conflitos promovidos por ideias separatistas como é o caso em vários países africanos imediatamente após a independência.
Ao ser adoptado o principio maioritário, como eixo do governo democrático, introduzíamos, talvez inadvertidamente ou por mera falta de sofisticação político-jurídica, um elemento perturbador no nosso sistema de governo, que afectaria gradual mas progressivamente o nosso processo político: a distribuição de poderes entre o Estado e as ilhas. Hoje, a relação entre o todo e as partes está na origem de graves desequilíbrios funcionais e atinge proporções que impõem uma vigorosa tomada de posição cidadã.
Urge, pois, agir contra a omnipotência maioritária antes que ela nos abra caminho ao despotismo legal, que teria de ser atribuído a uma omissão constitucional que vem debilitando o nosso sistema de governo. Tenhamos, no entanto, em linha de conta que a definição da democracia não se esgota com a maioria e que a democracia constitucional, que foi nossa conquista, afasta qualquer ideia de ditadura mioritária, já que esta só poderia consubstanciar uma ameaça séria para a vida social. “Não, a lei não pode destruir o Estado” – ressaltava Aristóteles ao dissertar sobre a democracia. (Política, Livro III, capitulo VI.I.). Esta é uma visão rica de perenidade e de uma elevada dimensão política e filosófica. Enganados estão por isso todos aqueles que pensam terganhadoad aeternum a aposta da democracia. Esta requer, além de outros cuidados e tratos, incessante vigilância. Há direitos do homem e do cidadão que nenhuma maioria pode ab-rogar.
A transição política, em 1991, de um regime autoritário para um regime democrático, assinalou o fim de uma cultura política inspirada no monolitismo do partido único, abrindo caminho para a difusão de uma cultura política de tipo participante. Aquela incitava a não pensar e a limitar-se a acreditar; esta seria o arauto de uma liberdade de opinião que exige a não-limitação prévia das opiniões concorrentes ou contraditórias. Era, ao fim e ao cabo, o abandono de uma cultura política de sujeição a favor da adopção de uma cultura política de participação, que tonifica a cidadania e estimula a sociedade civil.
Não obstante tais pressupostos favoráveis, a acumulação de dados empíricos nos leva a detectar um elevado índice de incongruências entre cultura política e estrutura política. Com efeito, a participação política é uma figura que existe mais no domínio da teoria do que na chã realidade, contribuindo muito para isso a legitimação que os deputados emprestam ao sistema de governo, em nome da nação, quando, na realidade, são deputados dos partidos. Eis, pois, um logro conceitual, que não deixa de revelar sua natureza mistificadora.
Passado o período dos grandes entusiasmos trazidos pela abertura política, em 1991, torna-se hoje evidente uma fraca vinculação e identificação com o regime democrático, motivadas, em parte, por escassa difusão de conhecimentos e uma mui restrita aceitação do dever cívico de participação na vida política, fora dos períodos eleitorais. Como factores impeditivos dessa mitigada participação poderíamos ainda elencar: um baixo nível da informação, um pobre conhecimento dos assuntos políticos e um generalizado sentimento de impotência nos cidadãos quanto à possibilidade real de que dispõem para influenciar as decisões políticas, quer a nível local quer a nível nacional.
A participação política exige, por outro lado, uma cultura política que nas nossas ilhas é normalmente arquitectada a partir de sub-culturas, isto é, de um conjunto de atitudes, normas e valores diversos, nem sempre em sintonia uns com os outros.
Após a inauguração da segunda república, os partidos com assento parlamentar entregaram-se imediatamente à consolidação das suas “máquinas” respectivas. O governo saído das primeiras eleições livres organizadas no país empenha-se esforçadamente numa profunda reforma do regime político e do sistema do governo, alavancado pelo constitucionalismo democrático. Os seus membros desdobram-se em diligências para modernizar o país e prometem barrar para sempre o regresso ao poder aos representantes do monolitismo e seus simpatizantes; o partido derrotado enceta por sua vez uma campanha extremamente hábil para a reconquista do poder, pondo em destaque o seu imenso prestígio como libertador da pátria, criador e infraestruturador do Estado, e levanta em todas as ocasiões propícias a bandeira do seu imenso prestigio internacional. Com um argumentário em que se faziam cada vez mais combativos e sofisticados, esses partidos depressa alcançam uma situação de equilíbrio político sociológico que facilitou a alternância. Nenhum deles se separou, em nenhum momento, da sua ala clientelar, facto que lhes conferiria adesignação de “partido de barões”, segundo a terminologia de muitos cientistas políticos. Ambos tinham como objectivo a conservação e consolidação do poder, sem qualquer preocupação imediata com a questão essencial da natureza do poder, sobretudo no que diz respeito à questão histórica e estruturante da unidade nacional baseada na ilha-região. O governo do Movimento para a Democracia “assumiu, no âmbito do planeamento, o desenvolvimento de planos regionais, por referencia à ilha-região e à dinamização do Conselho para os Assuntos Regionais”, previsto na constituição ora em vigor, mas que acabaria por ser suprimido na primeira revisão constitucional promovida e orientada pelo mesmo governo.
A consolidação dos aparelhos partidários revelou um fenómeno totalmente inesperado que, entre os seus múltiplos efeitos, adulterou a essência constitucional do nosso parlamentarismo remetendo as questões fulcrais do poder da Assembleia Nacional para o sinódio do sistema partidário. Deste modo, a nossa democracia parlamentar passou a ser tributária, ainda que indirectamente, de formas plebiscitárias em que a liderança passa a pertencer àqueles que são apoiados pelos “aparelhos”.
Em meados dos anos noventa, ao desempenharmos funções públicas na Câmara Municipal de São Vicente, nos apercebemos, a dada altura, da existência de pulsões centrípetas que chegavam da sede do governo ao município, quando este procurava dar conteúdo ao princípio de autonomia, através de iniciativas que pareciam demasiado ousadas aos representantes do governo. Considerávamos então o Estado de Cabo Verde economicamente pobre, intelectualmente medíocre e tecnicamente muito fraco. Por isso, nos empenhávamos para dar, a nível do poder local, a nossa modesta contribuição para o desenvolvimento do país, bem como para a sua credibilidade no mundo, a começar por Portugal, ao qual nos ligam laços de cumplicidades históricas e culturais imperecíveis.
Com o apoio de um punhado de autarcas interessados e esclarecidos, nos entregámos à promoção da regionalização que nos parecia a resposta mais adequada à descentralização inscrita na Constituição. Fundámos um partido político, o PTS, cuja bandeira era a regionalização. Demonstrávamosempírica e racionalmente o bem fundado das soluções que propúnhamos, evitando no processo toda a argumentação falaciosa e posturas demagógicas. Apesar de tudo termos feito para que a razão tranquila, bem fundada e transparente viesse à tona sem proclamações de fé, a nossa procissão nunca saiu do adro: não foi preciso sofrer qualquer desvirtuamento, porque nem sequer foi seriamente iniciado.
A hegemonia foi crescendo na capital, onde no entanto surgiriam associações para anatematizar São Vicente como centro de bairristas e terra feita pela prostituição. “São Vicente nasceu no Lombo”- pontifica um filósofo fundamentalista. Compreende-se assim que tenham jogado fora tanto a mensagem de regionalização como o seu portador. É a lógica do Estado-espectáculo, em que o cidadão é substituído pelo telespectador.
Porque a tirania da maioria legal assim o permite, o poder se tornou autista perante a regionalização, porque não aceita nenhum limite nem nenhum freio para a satisfação das vontades da maioria, uma maioria de Santiago que nos querem impor como sendo cabo-verdiana. É a confusão deliberada do poder de sentido jurídico com o poder de sentido sociológico. Mas neste preciso domínio nos encontramos felizmente resguardados pelo constitucionalismo democrático que garante um sistema eficaz de freios à acção do governo. Seria boa política se lembrasse aos fundamentalistas que todo o poder imposto é um poder de índole colonial.
É esta maioria sociológica atrás referida que acabou por inspirar os fundamentalismos que hoje enfrentamos: o da cultura, que seleccionou São Vicente como palco para destruir, na maior impunidade, a morna, que considera um pecado dos crioulos bastardos; o do linguista da Electra, que parece esquecer que a língua materna é somatório de todos os crioulos, que, na expressão ricamente simbólica de Baltasar Lopes da Silva, serve de metáfora à “primeira grande experiência românica nos trópicos”; o da elite fundamentalista que nega qualquer protagonismo à cidade do Mindelo, que dentro de dez anos, profetizam, deixará de ser a segunda cidade de Cabo Verde para ser um quintal da Assomada. Eles, que não sabem subtrair e somar em assembleias de voto, são deveras mestres na arte de confundir…., é a macrocefalia no seu zénite, programando actividades que dificilmente conciliam eficácia, direito e ética.
Aos florilégios de arrogância e testemunhos de autoridade, vem juntar-se recentemente uma triste forma de neopaternalismo que nos choca particularmente, uma vez que procede das bandas do governo: “os pretinhos devem dar graças a Deus porque vão ficar mais ricos e mais esclarecidos ao andarem de avião pela primeira vez”. Quem irá musicar uma tal preciosidade agora que Manuel de Novas e Pantera nos deixaram?
O fundamentalismo aparece hoje na trajetória política do nosso país como uma forma assanhada de hegemonia, protagonizado por aqueles puristas étnicos – os africanos – que se sentem frustrados por terem deixado escapulir-se-lhes a utópica república africana de Santiago.
Para eles, não há ilhas, mas sim uma ilha-continente; não há sociedades cabo-verdianas, mas sim a sociedade da sua ilha; não há crioulos, mas sim um crioulo, o seu, que a “língua materna” tem de impor às ilhas periféricas.
Não surpreende que os sentimentos em relação ao nosso sistema de governo se tenham degradado, na medida em que são cada vez menos valorativos. Na realidade, o nosso sistema de governo vem gerando manifestações de passividade e de indiferença, que normalmente só têm cabimento quando os governos governam para si, em vez de governarem para todos.
Na década de noventa, a regionalização não foi solução; mas hoje, com o evoluir da sociedade e o despontar dos fundamentalismos, ela apresenta-se como a solução, a única solução que nos possa evitar fracturas sociais, profundas assimetrias económicas e desequilíbrios políticos acentuados, capazes de causar estragos irreparáveis à unidade nacional materializada na ilha-região, essa realidade geográfica, social e cultural, criada longe do poder central com plena autonomia de iniciativas, que é testemunho vibrante da tenacidade dos homens e mulheres das ilhas.
A regionalização parece-nos também como a única forma de esconjurar o despotismo para longe do nosso país.
Por isso, há um sentido evidente de urgência na necessidade de actuar para definir o tipo de regionalização que sirva melhor os superiores interesses de Cabo Verde.
Post Scriptum: A regionalização é um processo descendente, isto é, conduzido do topo para base, o que implica necessariamente que é ao governo, em nome do Estado, que deve pertencer a iniciativa, bem como o comando do processo. Nos regozijamos por isso com a cimeira alargada sobrea regionalizaçãodo país, que o chefe do governo acaba de anunciar para breve. Aguardamos com moderada ansiedade.
Onésimo Silveira.
14 de Agosto de 2012.
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