O nativismo crioulo é um poema humanista
Como
nação, vivemos alguns séculos em Cabo Verde unidos por uma sólida vontade
comunitária, de índole e perfil sociocultural. Durante uma parte expressiva
dessa longa e dolorosa caminhada histórica, nunca nos prescindimos de nos
tratarmos a nós próprios como cidadãos, sem nunca o termos sido, de jure e de facto, uma vez que nos
estavam vedados os caminhos e o acesso aos mecanismos legais para participar,
directa ou indirectamente, nas decisões e no governo da “Cidade”. Os direitos
políticos de voto e de elegibilidade nos eram mui cautelosamente
“administrados” e, no domínio dos direitos cívicos (de associação, de reunião,
de expressão, de manifestação) que são indispensáveis ao exercício da
soberania, estávamos totalmente excluídos. Podíamos, no entanto, trabalhar na
função pública, que representa o Estado, e prestar serviço militar, em defesa
da nação, mas o Estado nos era imposto e a nação não era a nossa.
Apesar
de tantos desencontros doutrinários e de tantas disfuncionalidades orgânicas,
apreciávamos ser tratados como cidadãos. Nisso consistia mais uma página da
nossa atípica história como povo e como nação. Estivemos sempre determinados a
exorcismar o “domínio” que nos vinha de fora e cedo aprendemos a acenar a
cultura como identidade e trincheira da liberdade. Estas são as traves mestres
de um pensamento social esclarecido e de uma práxis política que dominaram os
intelectuais cabo-verdianos – poetas, articulistas e destacados homens de
negócio – no período que vai dos anos que antecedem a proclamação da República
Portuguesa, em 1910, até cerca de 1923, ano que marca a publicação do Acto
Colonial, já sobre o regime do Estado Novo de Salazar.
Esse
período marca a época de ouro do nativismo cabo-verdiano, uma manifestação da
autonomia do pensamento. Em momentos de alguma tensão entre Cabo Verde e
Portugal, esse pensamento, impregnado de humanismo, nunca deixou, porém, de
produzir uma oposição, firme mas moderada, a qualquer tipo de arrogância e
excessos de natureza colonial. Os nossos nativistas são criadores literários de
primeiro plano e pelejadores inspirados que nunca dão costas à luta e deixam
sempre transparecer uma quase que religiosa adesão aos princípios éticos os
mais elementares. Eles não representam uma ideologia política definida, nem se
sentem obrigados a formar partidos políticos para a defesa das suas causas. São
arautos de uma revolução que esperam pelo seu tempo e activistas de uma causa
que amadurece com o desfolhar dos dias.
Neste
quadro de posicionamento, mais apolítico do que propriamente político, a sua
hostilidade para com a monarquia não surpreende. Esta é considerada como uma “engrenagem governativa, sombria e estática”,
em contraposição com os valores da República, “o grande ideal da liberdade e da fraternidade – liberdade pela qual
lutamos sempre, igualdade perante a lei, fraternidade pois que todos os homens
são irmãos, filhos da mesma mãe – a terra!”
Apesar
das suas atitudes em relação a Portugal, mais fraternais do que críticas, os
nativistas cabo-verdianos foram algumas vezes alvos de ataques violentos na
imprensa portuguesa. Um caso paradigmático é constituído pelas acusações do
jornal “Progresso” que, em 1912, isto
é, dois anos após a proclamação da República, condenava vigorosamente a
existência de “um nativismo rubro” no
nosso país, em que sobressaía “o ódio ao
branco”. É muito provavelmente da autoria do poeta Eugénio Tavares a
resposta endereçada ao jornal “Progresso”:
sim, existe o nativismo, o amor à nesga
da terra onde se ergueu a choupana que abrigou os passos da infância: existe o
orgulho de vermos um conterrâneo subindo às culminâncias de um lugar de
destaque; existe também a mágoa de nos sentirmos desprezados, como filhos
espúrios, a quem se aplicam leis de excepção, em plena República, mas acima de
tudo isto, mas muito acima, um acrisolado amor pela pátria, um interesse, que
os factos confirmam, por tudo quanto é português, predomina na alma dos
cabo-verdianos”, nesta resposta em que o autor das mornas que envolvem a
mulher num doce manto de lirismo, os portugueses, mesmo aqueles que atacam o
nosso nativismo, são interpelados a olhar em profundidade e na sua real
dimensão humana, as cumplicidades que unem os nossos povos e que vão muito para
além das querelas políticas ou politiqueiras que são por natureza circunstanciais.
O
poeta folclorista Pedro Monteiro Cardoso, que usa Afro como seu pseudónimo,
representa um caso singular de nativismo. Senhor de uma poesia mais telúrica do
que lírica, ele afirma o seu amor a Portugal sem, todavia, deixar de
estigmatizar, sem sombra de ódio ou rancor, o tratamento não-cidadão dado ao
homem africano, cuja dimensão histórica e humana ele exalta em Egipto”, um
soneto que é talvez o poema mais saliente de toda a sua produção literária. A
sua resposta à acusação do jornal “Progresso”
atrás referida revela uma faceta do nativismo, em que a contundência da
argumentação política não se sobrepõe, porém, à fraternidade e aos valores
sociais e morais partilhados: “limito-me,
pois, a afirmar que sobre os lombos dos indígenas de qualquer possessão, pesa
sempre a albarda imposta pelo possuidor; que o sentimento nativista existiu,
existe e existirá sempre em Cabo Verde, como na Madeira e nos Açores, enquanto
houver um cabo-verdiano digno deste nome, enquanto as desigualdades, injustiças
e preconceitos, actualmente legalizados, se não derrogarem, desaparecendo por
completo das relações sociais”.
“Este dulcíssimo
sentimento de amor à terra em que nascemos” é assinatura poética do nativismo,
que a vai buscar à natureza morabo do povo e dos seus brandos costumes. A
política pode seduzir, mas nunca mais do que a poesia, que canta e valoriza o
homem. Há documentação que aponta para uma adesão de Pedro Cardoso ao partido
socialista português. Tratar-se-ia, caso isso se confirmasse, de mais uma
maneira de ele manifestar o seu interesse por Portugal, e nunca um passo no
sentido do divórcio com as realidades portuguesas, incluindo aquelas que
constituíam objecto da sua oposição crítica.
É
importante realçar que esses dois nativistas atrás referidos eram exímios
cultores da língua crioula, que deu particular destaque e sabor à sua poética.
O crioulo de Eugénio Tavares, da Brava, confere doçura incomparável ao seu
lirismo pontuado de momentos de alta inspiração e imagens que os cabo-verdianos
guardam na memória individual e colectiva. O crioulo de Pedro Monteiro Cardoso
é mais telúrico, mais terra a terra, fazendo entrever, por momentos a força da
cultura da sua ilha do Fogo que impõe a ocultação, no quadro geral da
mestiçagem, dos elementos negróides do seu estoque genético. Daí a grande
dimensão simbólica e a coragem intelectual implícita na sua decisão de escrever
Afro como pseudónimo. É um desafio que ele a si próprio lança.
Como
propósito de reduzir os conflitos entre os republicanos de Portugal e os de
Cabo Verde, apoiados pelo ex-governador Artur Marinha de Campos, o nativista
Luiz Loff de Vasconcelos, o mais intelectual de todos, passou a editar em
Lisboa a Revista de Cabo Verde, de
cor fortemente republicana, a primeira revista cabo-verdiana que se publicava
na capital portuguesa. Loff de Vasconcelos, como sagaz estratega político e
pensador, dominou tanto as realidades das Ilhas como as de Portugal. Abraçou a
causa republicana, mas em nenhum momento traiu o nativismo no qual via, além de
uma afirmação da personalidade cultural e específica de Cabo Verde, uma saída
do domínio da metrópole, que se recusava a auscultar os anseios do povo
martirizado do nosso país.
O
Estado-nação nascido a 5 de Julho de 1975 ligou claramente a nacionalidade à
cidadania, dando assim continuidade e fazendo jus à obra dos nativistas, que
escreveram uma página fundamental no processo evolutivo de Cabo Verde, em que o
sofrimento predominou mas a violência nunca chegou a entrar na roda. Cada um
deles legou-nos um poema humanista que devemos guardar como tesouro
patrimonial.
Onésimo Silveira
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