Da regionalização/descentralização/autonomia
Texto da intervenção de Arsénio de Pina na Mesa Redonda
sobre a Regionalização que ocorreu em 28 de Novembro de 2012 no Mindelo,
organizada pelo Grupo de Dinamização do Debate sobre a
Regionalização.
Como um dos
meus amigos do peito da juventude, letrado de boa cepa, me falou, em tempos, de
um movimento ou grupo Sanvicentino que quase exige “independência já” para Soncente, ou teria o amigo interpretado
mal os objectivos do movimento ou ouvido algum despistado a falar do que não
entende, e por ter dado o meu apoio a um Movimento
de Cidadania Activa que nada tem a ver com tamanha estupidez, trepo para os
lombos pelados do meu burrito predilecto para uma pequena incursão pelo que
entendi e subscrevi relativamente ao Movimento
para a regionalização, descentralização e autonomia de Cabo Verde.
Quando, no
Manifesto sobre a criação deste Movimento se fala de autonomia, quer-se dizer,
como defendeu Mário Soares para os Açores, na década de oitenta, altura em que
havia alguns espíritos medrosos e mal informados, defendendo autonomia progressiva até à independência, pelas afinidades dos
açorianos com os EUA e o receio da evolução comunista do Movimento Revolucionário do 25 de Abril, dizia eu, Mário Soares
defendeu outro tipo de autonomia a que chamou de autonomia tranquila, a faculdade de tomar certas decisões sem
necessidade de recorrer ao poder central –
que veio a prevalecer -, sem nunca ter passado pela cabeça dos proponentes do
nosso Movimento pôr em causa, obviamente, a unidade nacional.
A regionalização do país, a descentralização administrativo-financeira
e política das regiões e a autonomia tranquila facilitariam e
promoveriam maior responsabilização dos quadros dirigentes, estimulando os
cidadãos a assumirem em pleno a cidadania e a participar activamente na gestão
da coisa pública, ganhando consciência e lucidez sobre os seus desígnios e
objectivos.
O movimento é
- não tenhamos medo das palavras - político, mas não adstrito a nenhum partido,
brotado da sociedade civil. Por mais que se espreite, não se encontrará nenhum
fumo partidário, nem rabo-de-gato politiqueiro. Nele podem participar todas as
pessoas de boa vontade, com ideias saudáveis, com iniciativas, corajosas e
determinadas, e mesmo políticos, desde que estes deixem a militância partidária
e a má política fetchode na casa. Na
nossa perspectiva, não é Movimento que possa ser recuperado por políticos como
arma, ou estratégia dos respectivos partidos. De resto, caros ouvintes, a
democracia não se esgota no voto; votar é uma maneira muito pobre de intervir e
de exercer a cidadania. Devemos agir politicamente, isto é, na gestão da coisa
pública, participar em debates políticos, tomar posições, defender os nossos
direitos e pontos de vista com argumentos, usando os meios que temos à nossa
disposição.
Herdámos da
administração portuguesa a centralização excessiva, sendo essa mais uma razão
para desenvolvermos municípios mais fortes e instituições regionais
descentralizadas nas quais o Poder Central deve delegar funções e poderes. O
exercício dos poderes delegados será, como não podia deixar de ser, sob
controlo e fiscalização do Poder Central, mas somente quanto ao rigoroso
cumprimento dos poderes delegados, isto é, poderes transferidos ao nível
regional e local.
No centralismo democrático em moda do
início da independência, explicável e até justificável no contexto da época, que
fez o seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de
cima, triadas “democraticamente” pelos elementos partidários de cúpula e
aceites disciplinadamente (como quem diz, obedientemente) pelos militantes, e
pelo povo (aqui, convenhamos, abusivamente, por o povo não estar sujeito à
disciplina partidária), não havendo meios oficiais nem oficiosos de recurso e os
protestos correrem o risco, quase assegurado, de penalização. Tal sistema só
poderá funcionar em sistema de partido único ou ditadura, que já não é o nosso
caso desde a abertura democrática do Paicv, abertura quiçá tardia que perdeu
originalidade e crédito por não ter sido em tempo útil, comprometidamente coincidente
com o colapso do sistema soviético e das chamadas democracias populares,
seguida – o que foi louvável e louvado - de mudança tranquila do regime, através
de eleições livres, para novo regime gerido pelo MpD.
A
regionalização tem demonstrado, nos países onde foi instituída, ser um
instrumento poderoso que favorece a democracia devido à participação activa dos
cidadãos. Essencial na democracia a liberdade e a igualdade perante a lei para
ser possível a participação da maioria, isto é, dos menos favorecidos, face a
minorias natural ou artificialmente privilegiadas (democracia, como sabemos,
vem do grego: demo=povo, cracia=poder - poder do povo). Ela, a regionalização,
aproxima os serviços públicos das populações, diminui a burocracia e a corrupção
que esta propicia, e legitima o poder através do voto, da escolha popular. É
facto que as possibilidades de participação são muito maiores quando existem
eleitos por mérito na competência do que quando se verifica a nomeação por
parte do Governo Central.
O próprio
facto de o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições
competitivas, pode promover o investimento público e privado. Além disso, tendo o desenvolvimento uma
dimensão não apenas económica, mas igualmente social, cultural e ambiental, o
poder regional democrático e as suas actividades delegadas pelo poder central
podem ser um factor benéfico e uma contribuição importante para o assegurar.
Já dizia, há
cerca de dois séculos, o famoso historiador que conhecemos dos bancos dos
liceus, Alexandre Herculano, que os partidos políticos, sejam quais forem os
seus ideais e interesses, ganham sempre com a centralização. A centralização do
poder é o grande meio de este o conservar e controlar de perto porque
concentrado num ponto ou local na sua omnipotência burocrática. Não
tenhamos dúvidas nem ilusões: esperar a descentralização, a regionalização e a
autonomia por iniciativa e opção de partidos políticos e governos é quase como
garantir chuva, em Cabo
Verde, no mês de Outubro. Deverá ser a sociedade civil a
lutar por ela com argumentos válidos até convencer os partidos políticos e
governos a adoptá-la. Nós estamos, por ora, na fase de ter proposto o seu
estudo…
A nossa
Constituição admite, segundo presumo, que possam ser estabelecidos regimes
diferenciados para as regiões, e competirá ao Governo propor à Assembleia
Nacional a sua adopção, a ser apresentada depois ao Presidente da República para
promulgação e aplicação na prática.
Cremos bem que
as regiões com descentralização política e administrativo-financeira podem ser
um instrumento de unidade e solidariedade nacionais, e não de divisão como
alguns temem, se for correctamente realizada, isto é, não sabotada ou
desvirtuada pelo poder central, e as populações se aperceberem de que as
regiões mais atrasadas ou negligenciadas passarão a ter autonomia e a dispor de
mais recursos do que até agora. Ninguém aceita que Santiago, embora albergue
cerca de metade da população do país, beneficie de dois terços dos
investimentos para o desenvolvimento destinado ao país, mormente por sermos
nove ilhas habitadas dispersas. Mesmo países continentais, sem descontinuidade,
optaram pela regionalização.
O nosso Movimento fez uma proposta para a
constituição de uma comissão de estudo, alinhando
algumas das questões que vimos ventilando em escritos, que inclua todos os
parceiros sociais, económicos e políticos a fim de se chegar a um consenso que
leve à regionalização, descentralização e autonomia após o estudo e debate de
diferentes experiências de descentralização no mundo (Marrocos, Áustria,
Bélgica, Holanda, Dinamarca, etc.). É bem de ver, pelas razões aduzidas, que a
divisão do país em regiões não deve jamais servir para o dividir, mas antes
para unir os municípios e as populações a partir da base, das suas escolhas e
afinidades.
O Estatuto
Especial para Praia, no contexto geral de debate que me pareceu defender
recentemente o Presidente da República, e até o autarca da Praia, Ulisses
Correia e Silva, julgava eu, na minha inocência e boa-fé, por tudo levar a
concluir isso, que era proposta e ambição para estudo e debate alargado a
ser feito, muito embora tenha havido legislação do Governo do PAICV sobre a
ideia de Região Administrativa-Ilha,
e mesmo lei que define as atribuições e competências dos municípios – estatuto
- (Lei 134/IV/95 de 3 de Julho?), de que, de resto, ninguém fala, a qual
referia a criação de um Observatório das
Finanças Locais e da Descentralização, conforme vem citado no trabalho do
Professor universitário, Luís Filipe Tavares, apresentado na Praia, em Maio de
2009, como Contribuição e desafios do
municipalismo para o desenvolvimento de Cabo Verde.
Mas, não! Não
era proposta para estudo aturado e debate como presumia. A coisa já vinha sendo
cozinhada em segredo dos deuses e pecadores, à socapa, diazá na munde, gatchode, cma
cosa de ladroagem, e foi subitamente proposta, e provavelmente será, dada a
maioria parlamentar do partido governamental, aprovada, sem que os directamente
afectados, aqueles que irão suportar as suas consequências e os que poderiam e
se ofereceram a contribuir com o seu know
how, se tenham pronunciado. Será, portanto, aprovado de modo discricionário
e somente para a cidade da Praia.
Afinal, o cozinhado da Praia já
estava quase pronto a sair do lume para ser servido ao povo, sem que tenha
deixado escapar nenhum cheirinho do pitéu. Até financiamento pelo Governo
Brasileiro já tem! Francamente! Fort
desafore, diria o nosso inolvidável filósofo mindelense do povo, como lhe
chamou o Mestre Roque Gonçalves, Djunga Fotógrafo.
E quando se diz e se escreve que eles – os da Praia e Santiago – “comem
tudo e não deixam nada”, embatucam, barafustam, há vivos protestos, garantindo
que não, que isso é bairrismo, como se nós outros fossemos cegos, surdos e fidje de fora sem outros direitos que
não migalhas da lauta mesa praiense dos filhos legítimos. Já o disse e repito,
ser sempre mau sinal do estado de democracia, quando se diz eles, referindo-se aos governantes, por
tal significar que os cidadãos já não se identificam com os governantes, que
lhes parecem estranhos.
Que haja um Estatuto Especial para a Praia, como capital
do país, ninguém de boa-fé pode, nem deve ser contra, mas dentro de um contexto
geral de descentralização, regionalização autonómica politico-legislativa e
financeira. Somente limitada à Praia e Santiago é que não, por o país ser uno e
indivisível. A Praia, como cabeça do país, poderá merecer, por isso, um penteado
particular, mas se o corpo, isto é, as outras ilhas, as suas povoações, vilas e
cidades estiverem doentes, cheias de sarna, coceira, tinha e postema (apostema), ela, a capital,
cairia em decadência, não sobreviveria.
Haja sensatez!
Que se oiçam todas as vozes válidas do país, que se oiçam os cidadãos! Que não
se façam caixinhas com assuntos tão
sérios como este! O concurso de todos é absolutamente necessário e
imprescindível. Foi Salgado Zenha que disse ao Primeiro-Ministro, Pinheiro de
Azevedo, numa ocasião crítica do país em que ele e Spínola queriam ludibriar o
povo, e se recusava a ouvir a voz da razão, que quem não sabe ouvir, não sabe
governar. Governe-se com o povo e para o povo, porque os dirigentes são, ou
devem ser, como eleitos, os representantes do povo, aqueles que ele escolheu,
em quem delegou os seus poderes e espera que os defendam. O nosso Djunga
Fotógrafo (João Cleofas Martins), deverá estar retorcendo-se na cova com o
comportamento dos nossos governantes, e mais com a passividade do mindelense,
que ele tanto amava, por este parecer estar, como diz numa das suas
inolvidáveis cartas que fixei em livro, “intepide
de mede”, sem ânimo nem liberdade para dar um berro de vivo protesto, como um
dos personagens do romance de Jorge Amado, a quem deram água a beber em vez de
cachaça, que ficou com a alcunha de Quincas Berro-d´Água. Até parece que se
vive em S. Vicente em dia de mormaço que faz emudecer o mindelense. Home, cred!
Um dos
problemas actuais dos governos, como nos diz o filósofo e amigo de juventude,
José Gil, é tempo, um outro tempo, mas é o tempo. Eles, os governantes, não
param para pensar, têm muita pressa de tomar iniciativas, têm de, têm de…
Talvez não tenham de. Podem talvez parar … para ouvir os outros, para meditar
nas propostas dos outros a fim de agirem melhor e a contento da maioria dos
cidadãos. Há que entender a cultura de modo diferente. De uma maneira antropológica
a cultura implica relação com todo o território, com toda uma maneira de ser,
de viver e de formar uma colectividade.
Escrevi, há
tempos, como remate a um artigo sobre o comportamento de certos governantes, o
seguinte: Caros governantes! Há que respeitar um povo que sofreu carências
imensas, fome e contornou precipícios terríveis, sinuosos e escorregadios, onde
só transita, sem risco de cair, o pé bifurcado da cabra. E ele – o povo - aí
está, mirando aqueles que prometeram melhorar a sua vida e os seus caminhos.
Queremos, nós das outras ilhas, caminhar convosco de mãos dadas, em confiança,
sem receio que nos pinchem pela ribanceira abaixo.
Depois dessa
minha tirada aos governantes, o nosso Primeiro-Ministro fez uma declaração em
Torres Vedras e vi-me na obrigação de não me calar e também expressar-me, mais
uma vez, sobre o assunto, na tentativa de esclarecer mal-entendidos e ideias
preconcebidas defeituosas, sem muito entrar, no entanto, no âmago da questão
que só poderá ser levado a cabo por uma comissão escolhida para o efeito,
conforme propusemos.
Os meios
actuais de comunicação social, particularmente, a TV e Internet, vêm criando
nos cidadãos uma certa ânsia de participação política, e até um sentimento de
rebelião que contrapõe a sociedade civil à classe política e os eleitores aos
eleitos, o que é bem salutar e deve ser tido em conta pelo poder, isso por
haver um crescendo de mal-estar social. Infelizmente alguns governantes,
enfeudados aos partidos e a interesses pouco curiais fazem parte do problema e
não da solução.
Mas, para já,
precisamos de sair da espuma da politiquice e reafirmar que ninguém favorável à
regionalização propôs a execução imediata da mesma, mas sim a sua discussão
alargada de modo a encontrar-se um consenso que leve à sua adopção à nossa
realidade insular arquipelágica, ou, até, sua rejeição. Sem a sua discussão
e conhecimento aprofundado, ninguém estará em condições de afirmar categoricamente
que nos convém ou não. As verdades apodícticas – isto é, que não admitem
discussão e têm de ser aceites -, existem somente em religião, tanto nos dogmas
como na palavra do Papa com respeito à sua infalibilidade, limitada até somente
a assuntos de fé. A ciência – a Política e a Administração são ciências –
contenta-se com aproximações da verdade após estudo, discussão aturada e
experimentação antes da aplicação.
Afirmar a inexistência de meios, como fez o nosso
Primeiro-Ministro, para a regionalização, parece-nos um tanto arriscado, talvez
um lapsus linguae, ou, pelo menos,
imprudente. À pergunta do nosso Primeiro-Ministro de “quem irá pagar isso?”,
para negar a sua viabilidade, a única resposta será uma série de outras
perguntas: quem tem pago a pesada estrutura estatal que vai gerindo o nosso
país? Será que acha impossível tornar mais eficiente a Administração Pública? Não
será possível diminuir o peso paquidérmico do Estado, diminuindo, ou associando
ministérios, reduzindo o número de deputados e eliminando agências e
instituições criadas, embora supostamente na melhor das boas intenções, cujas
funções parecem ter-se convertido mais em favorecedores de amigos,
correligionários e do mercado do que, como se dizia e se prometeu, em benefício
dos cidadãos? Por que se tem adiado a reforma tão necessária e prometida
milhentas de vezes, da Administração Pública? Por que, para se privatizarem as
empresas públicas entupidas de funcionários e deficitárias por isso,
tornando-as mais eficientes, rentáveis e apetecíveis ao privado, se despede
pessoal supérfluo aí metido por amigos do poder central, e não antes em
benefício de todos? Onde se vai arranjar dinheiro para o Estatuto Especial para a Praia quando acabar o apoio brasileiro?
Os municípios
também fazem despesas; também implicam instalações, funcionários e a detestável
burocracia e não empobrecem o país. As regiões também não irão fazê-lo, como
explicarei mais adiante. É preciso reter que as regiões não serão dotadas de
nenhum poder político extraordinário, nem de governo próprio. As competências
que para elas se prevêem situam-se predominantemente na área da planificação e
da coordenação de realizações e actividades a nível supra municipal, ficando
mais próximas das populações para poderem ouvir as suas queixas, sugestões e
até beneficiar com as suas ajudas, sem necessidade de passar meses e anos à
espera de decisões centrais de quem desconhece as realidades regionais e locais.
O Estado deve
exercer as competências que as instâncias descentralizadas, as abaixo delas e
os cidadãos não possam exercer melhor do que ele, abandonando o autoritarismo
concentrado e pessoalizado do passado.
Dito somente
isso conclui-se ser possível diminuir bastante o peso da Administração do
Estado e torná-lo mais funcional e eficiente, isto é, capaz de produzir
melhores resultados com menos despesas e até menos gente que poderia ser
absorvida pelas actividades privadas desembaraçadas de peias burocráticas e da
morosidade da justiça. A descentralização seria uma mais-valia nesse processo
de reforma e racionalização da função pública.
É óbvio que a
regionalização, descentralização e autonomia podem manifestar-se numa
multiplicidade de formas, inclusive como um protesto e uma vitória dos
interesses e energias locais contra a média uniforme, impotente e artificial do
centralismo. Nelas se manifestam e afirmam iniciativas, o espírito inventivo,
democrático e autonómico das populações. As liberdades municipais, regionais e
respectivas iniciativas dão às populações fisionomia e vida próprias
impossíveis na centralização esterilizadora e monocórdica. Portanto, bom será
não alimentarmos ilusões, porque nem os governos, nem os partidos políticos
passíveis de chegar à governação morrem de amores por elas. A sociedade civil é
que tem de lutar por isso, numa atitude política não partidária,
integralmente civilista. Os militantes de partidos políticos poderão e deverão
também participar, mas despindo as vestes partidárias, não como militantes mas
como cidadãos e patriotas.
Ninguém
deve pedir por favor aquilo que lhe pertence por direito. É fundamental que
os governos aprendam a escutar as vozes dos cidadãos, da sociedade civil. Há
que combater e acabar com a tendência de as pessoas que deveriam ser ouvidas e
respeitadas pela sua competência, experiência, isenção e rectidão de carácter, não
sendo militantes do partido no poder, de serem marginalizadas pelo poder
político. Afinal, o Estado mais não é do que uma máquina que se destina a
fornecer-nos os serviços que nós, cidadãos não militantes e militantes,
reputamos essenciais. Se não funciona, ou funciona mal, é porque algo falhou
na forma como escolhemos os dirigentes e temos todo o direito de tentar modificar
essa forma de escolha.
Um país onde a
inteligência é um capital inútil e o único capital deveras produtivo e
utilizado é a falta de escrúpulos e de vergonha na pele da cara, não tem
grandes hipóteses de progredir. Não queiramos ser nem tolerar isso.
Há gente que
advoga, e muito bem, a desestatização
das nossas cabeças, isto é, que não se espere que tudo venha do Estado, dos
governos. Todavia esquecem-se de que a culpa tem sido dos governos, não das
pessoas, por ter havido o controlo e dependência total por parte dos governos
das iniciativas do privado, o que levou à criação de empresários parasitários,
tímidos e abúlicos, de um lado, e de oportunistas mafiosos, de outro, não
permitindo a formação, como expliquei algures, de uma classe empresarial forte,
independente e honesta capaz de investir na promoção e criação de indústrias no
país. Grande parte desta classe tem preferido viver da rabidância, sem correr nenhuns riscos, e de negócios obscuros que
seriam penalizados se a justiça funcionasse como devia. Por outro lado – isso
no campo da agricultura, assunto que tenho abordado várias vezes nos últimos
tempos - os governantes têm estado a isolar-se cada vez mais do campo e dos
camponeses, em várias ilhas, levando estes a abandonar o campo, migrando para
os meios urbanos, ou emigrando para o estrangeiro, por falta de apoios e de
meios para vencer as vicissitudes da vida rural.
Alguns
leitores que se manifestaram face às palavras de descrença do Primeiro-Ministro
na regionalização julgam que esta o iria prejudicar as ilhas de menor população, beneficiando as mais populosas, o que é
falso, por a distribuição de fundos não dever subordinar-se somente ao número
de habitantes mas fundamentalmente à necessidade de se criarem infraestruturas
que estimulem e garantam um desenvolvimento sustentável. A canalização da
maioria dos fundos para uma única ilha, mesmo que seja sede da capital do país,
é vício - isso sim, bairrista -, e não a defesa da distribuição equitativa e
reconhecimento de especificidades de certas ilhas com tradições respeitáveis a
serem acarinhadas e estimuladas.
Também se
falou do perigo da atomização política.
Qual atomização! Pretende-se, sim, descentralizar o poder levando-o para junto
das populações, delegado e praticado por pessoas que estas conhecem, a quem se
dirigem com facilidade, acessíveis, que respeitam e elegeram, em vez de ficar
na Praia, de cócoras, como ironizava Eça de Queiroz, nos diferentes ministérios
e noutras estruturas do poder central. Que sabe o Palácio da Várzea, na Praia, do que se passa em Lombo Pelode, em S. Nicolau, ou no
Tantum e Campo das Fontes, na Brava? Ouvem, acaso, o coro dos seus queixumes e
protestos? Um poder local descentralizado, sim: testemunharia o drama das suas
vidas e bater-se-ia por melhoramentos que, sem ele, encontrariam obstáculos nos
clássicos ouvidos moucos da Praia.
Um país onde
por todo o lado, o que conta são as normas e a burocracia emperradora, não a
substância dos problemas, prefere que os funcionários públicos sejam autómatos,
obedientes e resignados a conferir assinaturas, regulamentos e a praticar
infinitas burocracias, em vez da delegação neles de um mínimo de autonomia e
capacidade de decisão. É sabido que o poder não aprecia muito, nem tem
tradição de delegar poderes e responsabilidades, mais pelo gosto pelo poder
do que por razões racionais; porém, se meditasse no assunto, sem egoísmos nem
desvios condenáveis, concluiria que isso até seria vantajoso por lhe
proporcionar mais disponibilidade de tempo para meditar, dialogar com os
cidadãos e tomar decisões mais bem pensadas, digeridas e até partilhadas.
Todo o mundo
elogia a Civilização Grega Antiga,
mãe da Civilização Ocidental. E isso
começou a sério com os jónios. A Jónia
era um reino insular, com muitas ilhas. Não havia concentração de poder que
pudesse impor uniformidade social e intelectual em todas as ilhas. Tornou-se
possível a investigação, livre de peias do peso gongónico das instâncias estatais centrais.
Eles estavam na
encruzilhada de civilizações, portanto, em ilhas, como nós em Cabo Verde, não
num dos centros. O poder político estava nas mãos de mercadores que promoviam,
activamente, a tecnologia de que dependia a prosperidade. Foi no Mediterrâneo
Oriental onde as civilizações africanas, asiáticas e europeias, incluindo as
grandes culturas do Egipto e da Mesopotâmia, se encontraram e mutuamente se
fertilizaram num vigoroso e inebriante confronto de conceitos, línguas, ideias
e até de deuses, isso por volta de 600 a 400 anos antes de Cristo. Por que não
nós?
A grande revolução no pensamento humano
começou, pois, em ilhas, nas Ilhas
Jónicas. A chave dessa revolução foram as mãos, como referiu o saudoso
Mário Fonseca no seu excelente artigo publicado em A Semana, As Mãos Cegas. Alguns dos brilhantes pensadores jónicos
eram filhos de marinheiros, mercadores, agricultores, oleiros e tecelões.
Estavam habituados a mexer em coisas, a construí-las e repará-las, ao contrário
dos nobres, sacerdotes e escribas de outras nações que, criados no luxo, tinham
relutância em sujar as mãos.
Afinal – já
vou terminar - o que é que queremos com a nossa proposta, que aqueles que
pretendem baralhar as consciências e manter a sabura na inércia quiseram transformar em reola? Tão simplesmente que se abra uma vasto debate nacional,
com espírito não partidário, no qual participem todos quantos têm alguma
experiência na matéria ou contributo a dar, sobre a questão da regionalização,
descentralização e autonomia política, administrativa e financeira, a ver se
será, como julgamos, útil e aplicável a Cabo Verde. Será contraproducente
partidarizar esta questão e tomar posições condenatórias sem a estudar.
Outrossim, ninguém tem o direito de decidir em nome do povo sem o escutar, sem
o ouvir em ambiente de plena liberdade. Não estamos pedindo a adopção da
regionalização por decreto, à semelhança da criação de estruturas e
instituições como cidades, concelhos e freguesias sem se ouvirem as populações
e sem avaliar a sua viabilidade económica ou interesse para as populações.
A
descentralização é um instrumento fundamental da estratégia de racionalização
da administração pública. Há necessidade urgente entre nós de vencer as assimetrias insulares e regionais
para que Cabo Verde seja um país economicamente viável, mais desenvolvido,
capaz de utilizar os seus parcos recursos e de mobilizar todos os cabo-verdianos,
residentes e da mal aproveitada diáspora, de forma sustentada, de todas as
ilhas, reforçando e adubando as suas raízes, a unidade das diversidades entre
as cidades e as vilas, entre o campo e o litoral. Sem isso, continuaremos a
viver enganados, iludidos na convicção da nossa sustentabilidade como país
independente, mas somente enquanto beneficiarmos da solidariedade e ajuda
internacionais. Não nos iludamos com a categoria de país de desenvolvimento
médio dependente da ajuda exterior, por essa condição não ser sustentável, até por
já estar a diminuir a ajuda internacional. Temos de ser capazes, com
iniciativas viáveis, de ser inventivos e solidários para poder progredir.
No artigo “A ignorância da multidisciplinaridade e da
intersectorialidade”, referia-me a esta falha grave, a que o actual
Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Dr. António Costa, parente do
grande médico Dr. Sócrates da Costa, que bem conhecemos em S. Vicente e Cabo
Verde, apelida de chaga da administração
pública a nível regional, que é a
impossibilidade de pôr dois organismos da administração a trabalharem em
conjunto. Citei o caso da construção da estrada para o Calhau em S. Vicente
e podia ter citado muitos outros por, infelizmente abundarem. Há que resolver
essa pecha maior da colaboração entre serviços com determinação, tornando-a
obrigatória, para poupar dinheiro e evitar realizações coxas de nascença.
Havendo trabalho conjunto - que seria facilitado se as decisões dependessem de
organizações loco-regionais que conhecem melhor as suas realidades e carências
-, de uma só cajadada se matavam dois ou mais coelhos, quando, partindo a
decisão do poder central à distância, uma cajadada, semelhante a tiro de
canhão, mata mal, com enorme desperdício, um único coelho que mal se aproveita.
A regionalização é mais uma forma de
descentralização, como o são o reforço do poder dos municípios e das
freguesias, ou a transferência de poder para as associações públicas, como as
ordens profissionais, ou para instituições particulares, não-governamentais, da
sociedade civil, do tipo da Adeco, da
ONDS, Amigos da Natureza e outras do
género de solidariedade e defesa do cidadão trabalhador, contribuinte e
consumidor.
Opor-se, ou
apresentar empecilhos à regionalização por poder ser uma ameaça à unidade nacional é uma grande patranha
que não tem pés para marchar, que se assemelha a uma das figuras do quotidiano utilitário do malogrado Prof. João Manuel Varela
– os matadores do burrinho do bispo -
pessoas que se empenham em matar estruturas que não fazem mal a ninguém, nem à
sociedade civil, nem às instituições do Estado, e, até são, pelo contrário
úteis.
A
regionalização poderia aproveitar-se das administrações
desconcentradas do Estado (a diferença entre organismo desconcentrado e
descentralizado é que naquele os dirigentes são nomeados pelo governo, ao passo
que no descentralizado, são eleitos pelos cidadãos da região ou município), o
que facilitaria também a reforma administrativa, ainda emperrada com alguns
cascalhos na engrenagem burocrática. As regiões podem ser criadas, na opinião
do Dr. António Costa, numa lógica de racionalização das repartições
desconcentradas, traduzindo-se em poupanças e eficiência.
As regiões
devem ocupar-se de decisões que ultrapassam os municípios, isto é, que não
podem ser resolvidos a esse nível sem egoísmo dos respectivos municípios:
questões de planeamento regional, gestão de incentivos, definição de
prioridades de investimento público. A regionalização não deixa também de ter
desvantagens, mas não há dúvidas de que as vantagens superam os inconvenientes,
até por estes serem mais facilmente detectáveis por estarem dispersos e não em
bloco a nível central. Se se começar, por exemplo, por uma região piloto a
título de ensaio, isso permitiria medir no terreno as vantagens e desvantagens
da regionalização.
A
regionalização poderá ser mesmo uma oportunidade de fazer a reforma
administrativa, bastas vezes anunciada e iguais vezes adiada, com efeito
racionalizador da despesa pública ao nível regional e de maior eficiência, quer
nas políticas públicas quer nos incentivos ao desenvolvimento regional. O poder
tem de se convencer haver somente boas razões e vantagens em abrir mãos de poderes
que não consegue utilizar adequadamente, delegando-os a instâncias mais
próximas das populações, geridas por eleitos que estas conhecem, em quem
confiam, que escolheram em liberdade, a bem de todos e da boa governação.
Embora a
regionalização proposta por um dos partidos políticos para Portugal, com os
seus diplomas de aplicação e controlo, não tenha ainda sido concretizada, creio
de interesse e útil para Cabo Verde o seu estudo. O Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa, que está aplicando com sucesso algumas fases da descentralização
e regionalização no seu concelho, seria, obviamente, um óptimo conselheiro.
Mais
recentemente o nosso Primeiro-Ministro aceitou finalmente nomear uma comissão,
conforme propusemos, para estudo da regionalização, descentralização e
autonomia. Acreditamos que não irão falsear os nossos propósitos nomeando
arbitrariamente uma comissão favorável somente à descentralização
administrativa, que nada adiantaria, por já a termos sob a denominação de repartições desconcentradas, que
cultivam a passividade burocrática, a obediência, quando não ao deferimento dos
senhores do poder central e dos excessos do centralismo político e
administrativo camuflado.
Posta mais
esta pequena semente na terra, praza ao bom Deus de todas as religiões que
germine e dê frutos em benefício de todos, gregos e troianos, como dizia o
nosso adorado João Cleofas Martins. Ámen, e mãos à obra.
S. Vicente, Novembro de 2012 Arsénio Fermino de Pina
Pediatra e sócio honorário da Adeco