domingo, 23 de dezembro de 2012

Acentuar o debate para regionalizar

A problemática da regionalização nos últimos tempos, tem vindo a ser aflorada pelo "Grupo de Reflexão para a Regionalização", em diversos meios nomeadamente na comunicação social e na diáspora coboverdiana, em virtude da crise financeira e económica que se instalou há muito na Ilha de Monte Cara e no país em geral.

É sabido tratar-se de um tema complexo, pese embora nem todos parecem sentir-se, à-vontade para debater sobre o assunto. Pode-se abordar o tema de diversos modos, mas há duas dimensões que são centrais; a da devolução do poder aos cidadãos e do aprofundamento da democracia, trazendo o exercício do poder para mais próximo dos cidadãos e propiciando uma mais directa relação entre eleitores e eleitos.

Ao contrário dos radicalistas e beneficiários, defensores do centralismo do poder, a regionalização não tem por objectivo dividir o país em si, mas sim, é um processo de descentralização da Administração Pública e politica que se torna cada vez mais urgente na resolução de questões estruturantes. Acresce que não é por se implementar um processo de descentralização administrativa que o Estado terá que deixar de ser unitário.

O principal objectivo é fazer com que as principais decisões que dizem respeito às Ilhas, deixem de ser tomadas pela Administração Central e passem a ser tomadas por órgãos regionais democraticamente eleitos, aproximando-se assim as decisões públicas às popu-lações e respectivos governantes e que acreditamos que possa atenuar disparidades existentes como por exemplo, nos sectores da política fiscal, da educação e da saúde.

É sabido por todos que os governos centralizadores sufocam os poderes dos municípios. Na recente entrevista do novo Presidente eleito da Associação dos Municípios, ao jornal "Expresso", onde aponta o governo de não fazer a transferência dos FFM (Fundo Financeiro Municipal), que a taxa ecológica cobrada nos Municípios é retida pelo governo, obriga as Câmaras a pagar ao Estado, os 15% do IVA das obras construídas nos ses municípios enquanto o governo fica isento. Que isenta Empresas de capitais pública/privadas, como a ELECTRA e a CABO VERDE TELECOM, que deixa de fora os Municípios, retirando o poder de cobrança de taxas do seu subsolo e espaço aéreo, que isenta os imigrantes em detrimento dos residentes, do pagamento do IUP, (que não é da competência do governo) e sem nenhuma troca de compensação, que o Estado não transfere para as câmaras as receitas provenientes da venda das Zonas, ZTDI's", onde o "Estado fica com tudo". As Associações paralelas financiadas pelo governo que autenticam concorrência às Câmaras Municipais.

O Programa da Luta contra a Pobreza que deixa de fora os Municípios, quando são estas na prática que vivem de perto com os mais pobres minimizando os seus problemas.

O grupo de, "Reflexão para a Regionalização", que tem vindo a dar um contributo relevante para o debate e lançamento de propostas para a afirmação e da criação de verdadeiras regiões administrativas de desenvolvimento regional conjuntamente com a Rádio Morabeza, promoveram no passado dia 28 de Novembro, uma mesa redonda realizada no Centro Cultural do Mindelo, em S. Vicente, tendo como tema, "Que Modelo para Regionalizar Cabo Verde", onde estiveram presentes na mesa como conferencistas, os conterrâneos, o Dr. Arsénio de Pina e o Eng. José Lopes, académico na Universidade de Aveiro (Portugal), ambos pertencentes a diáspora caboverdiana e defensores da Regionalização.

Contudo, a questão da proximidade não é o único aspecto positivo que resulta de um processo de regionalização, se assim fosse temos a Associações dos Municípios que poderia dar resposta aos problemas que ultrapassam a escala Municipal.

Além de todos os aspectos mencionados, é de salientar que a regionalização emergiria um maior controlo das finanças públicas, maior equidade na distribuição dos dinheiros públicos, maior disciplina orçamental, criação de infra-estruturas públicas incentivando o desenvolvimento destas regiões que beneficiaria a camada mais jovem assistindo a um incremento nas suas qualidades de vida.

O debate de ideias e modelos pela instituição das regiões e pela descentralização administrativa faz parte do Grupo de Reflexão para a Regionalização, que tem vindo a dar a sociedade um contributo responsável para a afirmação constante da necessidade da adopção de verdadeiras políticas de desenvolvimento regional, baseadas em princípios de sustentabilidade e solidariedade.

Centralizar o poder tem sido o apanágio dos sucessivos governos para poder distribuir os recursos nacionais à sua maneira sem atender aos reais interesses das diversas regiões.

O resultado desta politica partilhada pelos governos dos dois maiores partidos nacionais, tem sido o acentuar das desigualdades regionais, das assimetrias, com a litoralização do País.

Damos de exemplo, da aplicação dos fundos financeiros e ajudas internacionais, nomeadamente da União Europeia e o Millénium Challenge Accoount, geridos de uma forma predominantemente centralizadora, não se traduzindo na diminuição das desigualdades das Ilhas.

A opção dos grandes investimentos não tem respeitado os reais interesses do desenvolvimento regional.
Sendo verdade que o desenvolvimento regional só pode ser assegurado por uma justa política nacional, não é menos verdade que esse mesmo desenvolvimento regional reclama a existência de um poder e uma capacidade de decisão regional, com legitimidade e força politica emanada da vontade popular, com meios e instrumentos adequados.

O sinónimo do centralismo do poder, foi o discurso do Sr. Primeiro-ministro, proferido na língua da Republica de Santiago, na Casa Parlamentar, no final da aprovação na globalidade do Orçamento Geral do Estado, instrumento fundamental para a gestão do país.

Mais uma vez o Primeiro-ministro falou só para alguns, (para dentro de Santiago), aliás, recentemente já o tinha feito na Assembleia das Nações Unidas. Um dia em que aparecer um deputado da região de Barlavento a discursar na língua de "Sintatantom", na Casa Parlamentar, de certeza o Sr. Primeiro - ministro e seus deputados da Republica de Santiago, iriam ficar gregos para entenderem o discurso deste deputado.

Vantagens da regionalização:
Um forte investimento na democracia e um instrumento capaz de trazer mais e melhor desenvolvimento ao país.
• Aumentar o bem-estar das populações, através de um melhor acesso e um maior cuidado na distribuição dos equipamentos e investimentos;
• Contribuir para a melhoria da qualidade dos serviços públicos e para a indispensável reforma da administração pública, aproximando o poder de decisão das pessoas;
• Permitir uma gestão mais eficaz dos recursos de cada região e um maior equilíbrio da ocupação do território;
• Reduzir as assimetrias, combater o desemprego e a pobreza e permitir a promoção do emprego e da economia regional;
• Aumentar a capacidade das regiões para decidir acerca do seu próprio futuro, tendo o direito de eleger os seus representantes aos órgãos políticos regionais;
A questão da regionalização continua a ser um assunto actual, e que enquanto não for resolvido não deixará de ser colocado na ordem do dia do debate das questões políticas e das questões associadas ao desenvolvimento regional. Sendo um imperativo constitucional, sendo o Poder Local que falta, a criação das Regiões implica a realização de um debate responsável a nível nacional com resposta positiva para a sua instituição em concreto. É bom que fique claro que quando estamos a falar de regionalização, estamos sobretudo a falar de descentralização com efectiva transferência de competências e meios, com autonomia política, administrativa e financeira e, não de mera desconcentração em que o poder de decisão se mantém no poder central ainda que os organismos deste mesmo poder, possam estar nas regiões. Sendo certo que não existe um modelo que encaixe, automaticamente, no caso de Cabo Verde, em razão das suas condicionantes histórias, culturais e geográficas, não será, por outro lado, difícil encontrar soluções noutros lugares que se aproximem da realidade nacional e possam, daí, ser fonte inspiradora do modelo a adoptar. Os que não querem a regionalização, dizem, também, que Cabo Verde, é demasiado pequeno para ser organizado em regiões, como se tratasse de coisa inquestionável.

Nas pesquisas que fizemos sobre a regionalização, constatamos que os casos das Ilhas Canárias, Madeira e Açores, da Suíça e da Áustria, que são também países pequenos estão regionalizados. Por outro lado, nomeadamente em Espanha, por exemplo, existe regiões que não ultrapassam 250 mil pessoas, na Dinamarca, a população das 14 regiões varia entre os 200 e 600 mil habitantes e no caso da Itália, a região menos populosa é de 115 mil habitantes. Por isso não é por o país ser pequenos que vamos escudar para não fazer a regionalização.

Nota: alguma informação de base usada neste texto foi extraída na Wikipedia

Bitu Melo

terça-feira, 18 de dezembro de 2012


O nativismo crioulo é um poema humanista


         Como nação, vivemos alguns séculos em Cabo Verde unidos por uma sólida vontade comunitária, de índole e perfil sociocultural. Durante uma parte expressiva dessa longa e dolorosa caminhada histórica, nunca nos prescindimos de nos tratarmos a nós próprios como cidadãos, sem nunca o termos sido, de jure e de facto, uma vez que nos estavam vedados os caminhos e o acesso aos mecanismos legais para participar, directa ou indirectamente, nas decisões e no governo da “Cidade”. Os direitos políticos de voto e de elegibilidade nos eram mui cautelosamente “administrados” e, no domínio dos direitos cívicos (de associação, de reunião, de expressão, de manifestação) que são indispensáveis ao exercício da soberania, estávamos totalmente excluídos. Podíamos, no entanto, trabalhar na função pública, que representa o Estado, e prestar serviço militar, em defesa da nação, mas o Estado nos era imposto e a nação não era a nossa.

         Apesar de tantos desencontros doutrinários e de tantas disfuncionalidades orgânicas, apreciávamos ser tratados como cidadãos. Nisso consistia mais uma página da nossa atípica história como povo e como nação. Estivemos sempre determinados a exorcismar o “domínio” que nos vinha de fora e cedo aprendemos a acenar a cultura como identidade e trincheira da liberdade. Estas são as traves mestres de um pensamento social esclarecido e de uma práxis política que dominaram os intelectuais cabo-verdianos – poetas, articulistas e destacados homens de negócio – no período que vai dos anos que antecedem a proclamação da República Portuguesa, em 1910, até cerca de 1923, ano que marca a publicação do Acto Colonial, já sobre o regime do Estado Novo de Salazar.

         Esse período marca a época de ouro do nativismo cabo-verdiano, uma manifestação da autonomia do pensamento. Em momentos de alguma tensão entre Cabo Verde e Portugal, esse pensamento, impregnado de humanismo, nunca deixou, porém, de produzir uma oposição, firme mas moderada, a qualquer tipo de arrogância e excessos de natureza colonial. Os nossos nativistas são criadores literários de primeiro plano e pelejadores inspirados que nunca dão costas à luta e deixam sempre transparecer uma quase que religiosa adesão aos princípios éticos os mais elementares. Eles não representam uma ideologia política definida, nem se sentem obrigados a formar partidos políticos para a defesa das suas causas. São arautos de uma revolução que esperam pelo seu tempo e activistas de uma causa que amadurece com o desfolhar dos dias.

         Neste quadro de posicionamento, mais apolítico do que propriamente político, a sua hostilidade para com a monarquia não surpreende. Esta é considerada como uma “engrenagem governativa, sombria e estática”, em contraposição com os valores da República, “o grande ideal da liberdade e da fraternidade – liberdade pela qual lutamos sempre, igualdade perante a lei, fraternidade pois que todos os homens são irmãos, filhos da mesma mãe – a terra!”

         Apesar das suas atitudes em relação a Portugal, mais fraternais do que críticas, os nativistas cabo-verdianos foram algumas vezes alvos de ataques violentos na imprensa portuguesa. Um caso paradigmático é constituído pelas acusações do jornal “Progresso” que, em 1912, isto é, dois anos após a proclamação da República, condenava vigorosamente a existência de “um nativismo rubro” no nosso país, em que sobressaía “o ódio ao branco”. É muito provavelmente da autoria do poeta Eugénio Tavares a resposta endereçada ao jornal “Progresso”: sim, existe o nativismo, o amor à nesga da terra onde se ergueu a choupana que abrigou os passos da infância: existe o orgulho de vermos um conterrâneo subindo às culminâncias de um lugar de destaque; existe também a mágoa de nos sentirmos desprezados, como filhos espúrios, a quem se aplicam leis de excepção, em plena República, mas acima de tudo isto, mas muito acima, um acrisolado amor pela pátria, um interesse, que os factos confirmam, por tudo quanto é português, predomina na alma dos cabo-verdianos”, nesta resposta em que o autor das mornas que envolvem a mulher num doce manto de lirismo, os portugueses, mesmo aqueles que atacam o nosso nativismo, são interpelados a olhar em profundidade e na sua real dimensão humana, as cumplicidades que unem os nossos povos e que vão muito para além das querelas políticas ou politiqueiras que são por natureza circunstanciais.

         O poeta folclorista Pedro Monteiro Cardoso, que usa Afro como seu pseudónimo, representa um caso singular de nativismo. Senhor de uma poesia mais telúrica do que lírica, ele afirma o seu amor a Portugal sem, todavia, deixar de estigmatizar, sem sombra de ódio ou rancor, o tratamento não-cidadão dado ao homem africano, cuja dimensão histórica e humana ele exalta em Egipto”, um soneto que é talvez o poema mais saliente de toda a sua produção literária. A sua resposta à acusação do jornal “Progresso” atrás referida revela uma faceta do nativismo, em que a contundência da argumentação política não se sobrepõe, porém, à fraternidade e aos valores sociais e morais partilhados: “limito-me, pois, a afirmar que sobre os lombos dos indígenas de qualquer possessão, pesa sempre a albarda imposta pelo possuidor; que o sentimento nativista existiu, existe e existirá sempre em Cabo Verde, como na Madeira e nos Açores, enquanto houver um cabo-verdiano digno deste nome, enquanto as desigualdades, injustiças e preconceitos, actualmente legalizados, se não derrogarem, desaparecendo por completo das relações sociais”.

         “Este dulcíssimo sentimento de amor à terra em que nascemos” é assinatura poética do nativismo, que a vai buscar à natureza morabo do povo e dos seus brandos costumes. A política pode seduzir, mas nunca mais do que a poesia, que canta e valoriza o homem. Há documentação que aponta para uma adesão de Pedro Cardoso ao partido socialista português. Tratar-se-ia, caso isso se confirmasse, de mais uma maneira de ele manifestar o seu interesse por Portugal, e nunca um passo no sentido do divórcio com as realidades portuguesas, incluindo aquelas que constituíam objecto da sua oposição crítica.

         É importante realçar que esses dois nativistas atrás referidos eram exímios cultores da língua crioula, que deu particular destaque e sabor à sua poética. O crioulo de Eugénio Tavares, da Brava, confere doçura incomparável ao seu lirismo pontuado de momentos de alta inspiração e imagens que os cabo-verdianos guardam na memória individual e colectiva. O crioulo de Pedro Monteiro Cardoso é mais telúrico, mais terra a terra, fazendo entrever, por momentos a força da cultura da sua ilha do Fogo que impõe a ocultação, no quadro geral da mestiçagem, dos elementos negróides do seu estoque genético. Daí a grande dimensão simbólica e a coragem intelectual implícita na sua decisão de escrever Afro como pseudónimo. É um desafio que ele a si próprio lança.

         Como propósito de reduzir os conflitos entre os republicanos de Portugal e os de Cabo Verde, apoiados pelo ex-governador Artur Marinha de Campos, o nativista Luiz Loff de Vasconcelos, o mais intelectual de todos, passou a editar em Lisboa a Revista de Cabo Verde, de cor fortemente republicana, a primeira revista cabo-verdiana que se publicava na capital portuguesa. Loff de Vasconcelos, como sagaz estratega político e pensador, dominou tanto as realidades das Ilhas como as de Portugal. Abraçou a causa republicana, mas em nenhum momento traiu o nativismo no qual via, além de uma afirmação da personalidade cultural e específica de Cabo Verde, uma saída do domínio da metrópole, que se recusava a auscultar os anseios do povo martirizado do nosso país.

         O Estado-nação nascido a 5 de Julho de 1975 ligou claramente a nacionalidade à cidadania, dando assim continuidade e fazendo jus à obra dos nativistas, que escreveram uma página fundamental no processo evolutivo de Cabo Verde, em que o sofrimento predominou mas a violência nunca chegou a entrar na roda. Cada um deles legou-nos um poema humanista que devemos guardar como tesouro patrimonial. 
                                    Onésimo Silveira  
 
 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012


 
VISITA     GUIADA    A    S.  VICENTE          
 
Uma fotografia instantânea de S. Vicente, da autoria de Arsénio de Pina, tirada da sua última estadia  em Novembro de 2012. Ficamos com uma perspectiva realista da situação da ilha e do país.

De visita a S. Vicente após uma ausência de três anos, com uma rápida passagem no ano passado que não me permitiu observar o que queria nem auscultar a população e amigos, tive agora mais oportunidade de apreciar as realizações, de me informar e de visitar alguns serviços e locais da ilha.

Não há dúvida de que, não obstante a quarentena imposta pelo centralismo do poder e a ingratidão pelo que a Ilha do Porto Grande partilhou irmãmente com as outras ilhas no passado áureo do seu belo porto, no tempo em que o gato de Mané Jon era engordado com gemada, como diz a bela canção de um dos nossos adorados poetas populares, Sérgio Frusoni, constata-se algum progresso físico ordenhado a custo do suculento úbere praiense, bastante sovina, embora farto e luzidio de leite.

O alcatroamento de um bom número de ruas, o calcetamento com calçada portuguesa de bem poucas – acreditamos que o actual exemplo de calcetamento das ruas à volta da Câmara Municipal se estenderá às que ainda conservam a calçada de pedras irregulares do passado que parece ter sido feita para leito de faquir e a beneficiação de passeios à base de cimento -, a recolha regular de lixo doméstico e a arborização urbana – embora se teime na acácia americana, quando se deveria optar pela “acácia do Coxim” ou pelo tamarindeiro a nível urbano - dão um ar higiénico e cuidado da cidade do Mindelo.

Algumas construções de torres no meio de outras construções modestas destoam um tanto da harmonia arquitetónica tradicional e poderão vir a ter problemas no futuro devido à carência de água e às interrupções frequentes da corrente eléctrica, sem aviso prévio, isso pensando nos elevadores e no fornecimento intermitente de água que obriga à construção de tanques e cisternas de reserva do precioso líquido movimentado electricamente.

A construção Ponte d´Água feita no aterro à beira-mar da Rua da Praia por um casal de argentário belga casado com patrícia é um investimento que valoriza imenso a Baía do Porto Grande, e de risco para os donos, em tempo de crise, pelo que merecia protecção e apoio por parte da Câmara e do Estado.

O Parque do Lazareto, da iniciativa da empresa Copa com parceria da Câmara Municipal, é outra obra que favorece a cidade e o bairro periférico por ter valorizado a zona costeira com campos de ténis, de basquete, jardins infantis e criação de uma pequena baía protegida para banhistas. A obra está ainda em curso e será mais uma mais-valia para a cidade.

Já tinha visitado outra iniciativa notável, atrás das instalações da Enacol, a que o desaforado e humorado mindelense chama de Pic de Zau.

Finalmente, como tinha sugerido há anos mas a teimosia autárcica fez orelhas moucas, a Rua 9 de Setembro, além do alcatroamento, foi dotada de colector e sarjetas para o escoamento de águas pluviais, deixando de ser ribeira na época da chuva, desaguando na Praça Estrela que até se podia atravessar de bote. Tanto dinheiro desperdiçado, somente por teimosia (?) de autarcas surdos aos conselhos e opiniões de munícipes com experiência no assunto!

O Mindelhotel e o Eden Park, no centro da cidade, praticamente desactivados, e a Casa Mindelo, moderno café-restaurante acoplado a residencial no andar superior, encerrado, sem se saber o verdadeiro motivo. Explicações inçadas de suspeitas e boatos…

Outra realização notável são as Casas para Todos, na Ribeira de Julião, da cooperação/empréstimo de Portugal, com 20 blocos de edifícios de três pisos. Contêm 250 apartamentos, 90 de classe A (um quarto), 110 de classe B (2 quartos) e 45 de classe C (três quartos), estratégia de construção a prosseguir noutros locais da cidade com crédito de Portugal e da China. A construção parece ser de boa qualidade, incluindo espaços comerciais e comunitários, destinando-se a famílias da classe alta, média e de baixos recursos, o que poderá prevenir e guetização do bairro como os bairros periféricos das grandes cidades europeias destinados somente a pobres e imigrantes.

O Porto Grande tem tido algum movimento, sobretudo de paquetes de turismo de luxo que dão certa vida à cidade e se promete vir a intensificar-se – controlar o lançamento de lixo acondicionado em sacos desses paquetes na Lixeira da Ribeira de Julião com conteúdo diverso em defesa da sanidade da ilha -, e iates muito mal controlados, o que não elimina a possibilidade de tráfego de drogas e fuga de presos estrangeiros que subornam guardas, como já aconteceu. Claro que só esse movimento é bem pouco, aguardando-se investimentos mais consistentes prometidos criadores de emprego permanente e revitalização do porto.

O novo Parque Eólico, pertencente a uma entidade privada, constituído por sete transformadores eólicos de alta potência, é um ganho na priorização das energias renováveis. O que não se entende é a preferência dada pela Electra na compra dessa energia, quando os três transformadores ofertados pela Dinamarca, fornecendo energia gratuita, estejam mais vezes desactivados. O contrato com a empresa do novo parque eólico implica pagamento de energia mesmo a não utilizada, o que se assemelha ao antigo negócio chamado da China, denotando gestão defeituosa, irresponsável e danosa da Electra em prejuízo do Estado e consumidores. Falando de transformadores eólicos, vem-me à mente os tradicionais moinhos de vento para bombagem de água de poços, que técnicos mindelenses formados na Escola da Pontinha do Mestre Cunco sabiam reparar e até fabricar, que têm os dias contados por já só haver um técnico dos antigos capaz de os fabricar e reparar e nenhuma tentativa do Município no sentido de formar gente nessa arte e ofício. Actualmente, para mal dos nossos pecados, a prioridade reside na importação e não no desenvolvimento endógeno e valorização das nossas capacidades inventivas e laborais de outrora.

Prefiro não falar nas inúmeras promessas feitas para o desenvolvimento de S. Vicente porque a maioria não se concretizou e criaram espectativas seguidas de frustrações. Há que reanimar as actividades comerciais, turísticas e industriais da ilha, dada a inércia em que se vive e a elevada taxa de desemprego, mormente de jovens, a qual irá aumentar com a saída das universidades de licenciados em coisíssima nenhuma, quase da mula ruça, em profissões inexistentes no país, licenciaturas para o desemprego, teoricamente de quadros qualificados. Tratei do assunto em dois artigos recentes, Tempos Modernos e Mestre Cunco, que os interessados poderão consultar, que põem em causa a desmedida do número e qualidade das universidades privadas.

Os factos e coisas menos boas e más não cessam de aumentar porque vivemos longos anos em furor legiferante quando deveríamos ter procurado aplicar leis mais simples, revogando as não aplicáveis, não regulamentadas e cheias de alçapões criados pelos juristas que as fizeram e irão servir-se deles em proveito dos seus clientes em apuros. Fiscais e inspectores existem mais para benefício pessoal do que para vigilância do cumprimento de leis, normas e posturas camarárias. Mesmo as agências de regulação, recentemente criadas, não regulam coisíssima nenhuma por serem constituídas na base do amiguismo e compadrio. De resto, o mesmo acontece em Portugal, o que não é de admirar dada a nossa tendência mimética.

Entra-se no Mercado Municipal, bem fornecido de géneros alimentares de toda a espécie e higienicamente entretido, e os preços são em função da cara e vestimenta do cliente. A obrigatoriedade de afixação dos preços nos produtos não se pratica e os fiscais parecem familiares das vendedeiras. O argumento para explicar essas anomalias é, segundo dizem, vivermos em regime de economia de mercado em que os preços são livres. Os produtos nacionais são mais caros do que os similares importados da Europa e estes mais do que o dobro do preço de venda ao público em Portugal (já com os impostos e margem de lucro, quando para a exportação estes são eliminados) de onde são importados a maioria dos produtos. Realmente a economia de mercado é uma mina para os vendedores! Também não me alongo no assunto por o ter vindo a tratar sem nenhum efeito, em vários artigos: mercado livre, sinónimo de exploração libérrima do povo, do consumidor.

Das ruas e passeios ocupados com vendedeiras e produtos alimentares também já tratei e persiste intensificado, não obstante haver mercados para elas. Trata-se de prática importada de algures, não da nossa tradição, de puro populismo das autoridades municipais, com intensificação do mercado paralelo, que não paga impostos nem beneficia o consumidor.

Dos estrangeiros da Costa d´África que entraram no país clandestinamente, ou como turistas, que andam por aí a vender bugigangas e outros produtos que encontramos nas lojas chinesas, também já escrevi, e ainda aí estão. Não se pense que tenho alguma animosidade contra esses imigrantes. Há alguns com profissões úteis ao país e a eles próprios (alfaiates e costureiras, vendedores de panos africanos e outos produtos úteis importados dos respectivos países, operários e pedreiros que estão substituindo os nacionais que preferem outras profissões ou emigraram, cabeleireiros, etc.), mas grande número anda circulando com cartões onde fixam óculos escuros, acessórios de fogão, CD, DVD e telemóveis, custando a entender que consigam sobreviver vendendo somente isso, quase todos com os mesmos produtos. Parcê qu´ês fejon tem tucin… como diz o povo. Andam também comprando ouro e metais, incluindo os chineses, o que vem contribuindo para intensificação de furtos de ouro e joias, e até de fios eléctricos e vedações metálicas que os larápios convertem em dinheiro nesses compradores. Alguns desses imigrantes que se querem fixar no nosso país queixam-se da morosidade na resolução dos seus pedidos de autorização de residência, e, entrementes, nas rusgas policiais, pagam multas, o que não me parece curial.

Muitas dessas anomalias seriam de fácil resolução se a municipalidade e o governo aplicassem as normas, posturas e leis em vigor. Mas não; as posturas camarárias, normas e certas leis são simples produtos inoperantes do exercício jurídico de governantes, tão-somente para sinalizarem o sentido de omnisciência de que estão imbuídos, não de utilidade prática.

Quer-me parecer que se desenvolve no nosso país uma teologia do mercado de que se aproveitam os glutões predadores em prejuízo dos consumidores. É matéria que também já tratei e limito-me a assinalá-la.

Visitei duas aberrações maiores que nos dão uma medida da tal omnisciência do poder, também autárcico, assinalada acima: o Estaleiro do Carnaval para a feitura de andores, no fundo da Ribeira de Craquinha, uma construção pesada e enorme, da iniciativa de ex-presidente da Câmara contra a opinião dos animadores e organizadores dos desfiles carnavalescos, que deve ter custado uma pipa de massas. Estes não o utilizam e está servindo para produção de blocos de cimento do construtor. Ao lado do Estaleiro, um bairro de lata de pessoas deslocadas de outra localização da cidade vendida para construções privadas, com a promessa, diazá, de cedência de casas. Esse bairro não tinha água, nem luz, nem esgoto, e foi a Adeco que se empenhou em levar-lhes água e ligá-los ao sistema geral de esgoto, tendo sido impossível, por falta de colaboração da Electra, de lhes fazer chegar luz eléctrica. Porque não transformar esse Estaleiro em casas para essa gente do bairro de lata, até porque foi a Câmara que os escorraçou para aí prometendo-lhes alojamento?

No mesmo local, Ribeira de Craquinha, bairro que fica quase na desapic d´infern, outra obra majestosa, o Matadouro Municipal, com todos os requintes da modernidade. Por que nesse sítio, se o velho matadouro ainda lá está à frente do velho Caizim? Tentei saber o motivo mas não pude falar com o Presidente da Câmara (de férias), nem com o vereador que o substitui a que teria de marcar audiência e aguardar na bicha dos pedidos. Intrigante, realmente! Quem é que irá parar à Ribeira de Craquinha levar o seu tchuc, cabra ou vaca para matar e esquartejar?

            Visitei também a lixeira monstra da Ribeira de Julião. Lembro-me de que foi Nelson Atanásio, quando presidente da Câmara, quem fez algo de positivo nesta zona, mandando-a cercar e fazer valas profundas e longas onde se depositava lixo recoberto em seguida com terra, havendo trabalhadores para o efeito e guardas que controlavam o local e o vazamento de lixo. Certamente que nessa altura a população mindelense era muito menor e a sociedade de consumo incipiente. Há muito que não tem cerca nem controlo, vivendo adultos e crianças aí remexendo e triando o lixo para aproveitamento de algo utilizável e vendável; alguns imigrantes da costa d´África aparecem aí com balanças para pesar e comprar metais. Uma imensidão de lixo a céu aberto, fumegando certas zonas onde se queima lixo: pneus, garrafas, latas, vasilhames de plástico, partes de electrodomésticos, pilhas, baterias, peças de computadores, sacos de plástico que esvoaçam pelas redondezas e se fixam nas acácias, lixo séptico do hospital, pensos e preservativos que a criançada assopra como balões, peças de automóveis e tutti quanti num espectáculo dantesco. Ao fundo grandes tanques cheios de óleo queimado extravasando, com uma porta metálica onde se lê Garça Vermelha e Não Fazer Lume mas sem nenhuma cerca em redor, o que estranhei por ter conhecido outro tanque da Garça Vermelha devidamente protegido atrás dos depósitos da Shell. Soube que a cerca já foi roubada por duas vezes por ser metálica e os metais terem passado a ter cotação na bolsa de valores dos imigrantes das terras de pia-abaixo e chineses. Não temos legislação que contemple a transformação ou destino de óleos queimados, ao contrário de certos países que fazem incidir sobre o preço dos óleos minerais vendidos uma taxa utilizada para esse fim. Mais acima, uma lagoa fétida onde a empresa Pescamar vazava água de tratamento do peixe. Presumo que deve ainda servir de vazadouro de águas verdes e outros líquidos pestilentos por ter cruzado com camião depósito vindo de lá.

A Lixeira monstra da Ribeira de Julião é uma autêntica aberração, uma bomba relógio anti-ecológica e um atentado à sanidade da cidade pela multiplicidade de riscos sanitários. Há que resolver a anomalia com a máxima prioridade, procurar investimento, “custe o que custar”, parafraseando um conhecido político português. De resto, se for criada uma estação de tratamento de lixo, a venda do material triado que aí vai parar compensará parcialmente o investimento, além do benefício para a saúde pública, que não tem preço.

Tenho atacado, em escritos publicados, a corrupção por todos os lados, mas ela, visível a olho nu, tem a pele dura, dado que, quem de direito, não se importa muito em a prevenir nem atacar com firmeza e rudeza. Se não me engano, como aconteceu em Portugal, a lei permitindo a investigação sobre a suspeita de enriquecimento ilícito não passou na Assembleia Nacional, o que não abona nada a favor dos deputados. Quem não deve não deve temer. Por que não investigar essas fortunas nascidas do nada? Por que não investigar funcionários públicos que lidam com dinheiros do erário público, com vencimentos que mal dão para comprar uma bicicleta, e passeiam por aí em carros de alta gama, de cabine dupla ou descapotáveis e ainda possuem apartamentos e vivem à tripa forra na barba-cara de quem trabalha e vive honestamente do seu salário ou vencimento? A corrupção é uma forma de podridão da sociedade que contagia os ambiciosos e leva à destruição de um país. Temos alguns exemplos mais ou menos recentes disso no nosso continente, na América latina e até na Europa. A sua prevenção não remedeia o que se perdeu, mas conserva o que se pudera perder, que é o de que temos necessidade, como diria o Padre António Vieira. No Senegal, a justiça está investigando suposto enriquecimento ilícito dos barões do regime Wade…

A peste da governação e da lentidão da justiça são a irresolução e a impunidade. Está parado o que havia de correr, está suspenso o que havia de voar, porque não atam nem desatam. Benevolências e impunidades do Estado e da justiça levam à desmoralização dos cidadãos honestos, são maus exemplos para os jovens e poderão até comprometer a ajuda recebida da solidariedade internacional. Se não forem tomadas medidas radicais urgentes nesta matéria perderemos todo o crédito obtido com sacrifícios indescritíveis consentidos pelos mais velhos e nos transformaremos numa autêntica república das bananas. O que intriga é haver gente séria, honesta, competente e esforçada que ninguém valoriza nem é colocada em postos de tentação financeira em que se exige gente incorruptível.

Há que pôr a verdade e a justiça no lugar onde elas têm faltado, não com leis que são viciosamente elaboradas, desprezadas e mal interpretadas dada a complexidade deliberada e manhosamente metida nelas para os venais com dinheiro poderem safar-se da cadeia servindo-se de quem as elaborou – geralmente alguns escritórios privados de advogados bem caracterizados pelo jurista amigo Dr. Vieira Lopes. A demora nessa mudança radical de atitude do poder terá, seguramente, muito maus resultados, aliás, agravará os resultados que qualquer míope enxerga facilmente.

Lamento dizê-lo, mas já me custa identificar, sob o ponto de vista ético e moral, pela negativa, o país actual com o que conheci, a que dei patrioticamente o meu contributo e onde vivi nos anos iniciais da independência.

 

S. Vicente, Dezembro de 2012                                 Arsénio Fermino de Pina

                                                                Pediatra e sócio honorário da Adeco

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

 

Da regionalização/descentralização/autonomia


 Texto da intervenção de Arsénio de Pina na Mesa Redonda sobre a Regionalização que ocorreu em 28 de Novembro de 2012 no Mindelo, organizada pelo Grupo de Dinamização do Debate sobre a Regionalização.

Como um dos meus amigos do peito da juventude, letrado de boa cepa, me falou, em tempos, de um movimento ou grupo Sanvicentino que quase exige “independência já” para Soncente, ou teria o amigo interpretado mal os objectivos do movimento ou ouvido algum despistado a falar do que não entende, e por ter dado o meu apoio a um Movimento de Cidadania Activa que nada tem a ver com tamanha estupidez, trepo para os lombos pelados do meu burrito predilecto para uma pequena incursão pelo que entendi e subscrevi relativamente ao Movimento para a regionalização, descentralização e autonomia de Cabo Verde.

Quando, no Manifesto sobre a criação deste Movimento se fala de autonomia, quer-se dizer, como defendeu Mário Soares para os Açores, na década de oitenta, altura em que havia alguns espíritos medrosos e mal informados, defendendo autonomia progressiva até à independência, pelas afinidades dos açorianos com os EUA e o receio da evolução comunista do Movimento Revolucionário do 25 de Abril, dizia eu, Mário Soares defendeu outro tipo de autonomia a que chamou de autonomia tranquila, a faculdade de tomar certas decisões sem necessidade de recorrer ao poder central que veio a prevalecer -, sem nunca ter passado pela cabeça dos proponentes do nosso Movimento pôr em causa, obviamente, a unidade nacional.

A regionalização do país, a descentralização administrativo-financeira e política das regiões e a autonomia tranquila facilitariam e promoveriam maior responsabilização dos quadros dirigentes, estimulando os cidadãos a assumirem em pleno a cidadania e a participar activamente na gestão da coisa pública, ganhando consciência e lucidez sobre os seus desígnios e objectivos.

O movimento é - não tenhamos medo das palavras - político, mas não adstrito a nenhum partido, brotado da sociedade civil. Por mais que se espreite, não se encontrará nenhum fumo partidário, nem rabo-de-gato politiqueiro. Nele podem participar todas as pessoas de boa vontade, com ideias saudáveis, com iniciativas, corajosas e determinadas, e mesmo políticos, desde que estes deixem a militância partidária e a má política fetchode na casa. Na nossa perspectiva, não é Movimento que possa ser recuperado por políticos como arma, ou estratégia dos respectivos partidos. De resto, caros ouvintes, a democracia não se esgota no voto; votar é uma maneira muito pobre de intervir e de exercer a cidadania. Devemos agir politicamente, isto é, na gestão da coisa pública, participar em debates políticos, tomar posições, defender os nossos direitos e pontos de vista com argumentos, usando os meios que temos à nossa disposição.

 

Herdámos da administração portuguesa a centralização excessiva, sendo essa mais uma razão para desenvolvermos municípios mais fortes e instituições regionais descentralizadas nas quais o Poder Central deve delegar funções e poderes. O exercício dos poderes delegados será, como não podia deixar de ser, sob controlo e fiscalização do Poder Central, mas somente quanto ao rigoroso cumprimento dos poderes delegados, isto é, poderes transferidos ao nível regional e local.

 

No centralismo democrático em moda do início da independência, explicável e até justificável no contexto da época, que fez o seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de cima, triadas “democraticamente” pelos elementos partidários de cúpula e aceites disciplinadamente (como quem diz, obedientemente) pelos militantes, e pelo povo (aqui, convenhamos, abusivamente, por o povo não estar sujeito à disciplina partidária), não havendo meios oficiais nem oficiosos de recurso e os protestos correrem o risco, quase assegurado, de penalização. Tal sistema só poderá funcionar em sistema de partido único ou ditadura, que já não é o nosso caso desde a abertura democrática do Paicv, abertura quiçá tardia que perdeu originalidade e crédito por não ter sido em tempo útil, comprometidamente coincidente com o colapso do sistema soviético e das chamadas democracias populares, seguida – o que foi louvável e louvado - de mudança tranquila do regime, através de eleições livres, para novo regime gerido pelo MpD.

 

A regionalização tem demonstrado, nos países onde foi instituída, ser um instrumento poderoso que favorece a democracia devido à participação activa dos cidadãos. Essencial na democracia a liberdade e a igualdade perante a lei para ser possível a participação da maioria, isto é, dos menos favorecidos, face a minorias natural ou artificialmente privilegiadas (democracia, como sabemos, vem do grego: demo=povo, cracia=poder - poder do povo). Ela, a regionalização, aproxima os serviços públicos das populações, diminui a burocracia e a corrupção que esta propicia, e legitima o poder através do voto, da escolha popular. É facto que as possibilidades de participação são muito maiores quando existem eleitos por mérito na competência do que quando se verifica a nomeação por parte do Governo Central.

 

O próprio facto de o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições competitivas, pode promover o investimento público e privado.  Além disso, tendo o desenvolvimento uma dimensão não apenas económica, mas igualmente social, cultural e ambiental, o poder regional democrático e as suas actividades delegadas pelo poder central podem ser um factor benéfico e uma contribuição importante para o assegurar.

Já dizia, há cerca de dois séculos, o famoso historiador que conhecemos dos bancos dos liceus, Alexandre Herculano, que os partidos políticos, sejam quais forem os seus ideais e interesses, ganham sempre com a centralização. A centralização do poder é o grande meio de este o conservar e controlar de perto porque concentrado num ponto ou local na sua omnipotência burocrática. Não tenhamos dúvidas nem ilusões: esperar a descentralização, a regionalização e a autonomia por iniciativa e opção de partidos políticos e governos é quase como garantir chuva, em Cabo Verde, no mês de Outubro. Deverá ser a sociedade civil a lutar por ela com argumentos válidos até convencer os partidos políticos e governos a adoptá-la. Nós estamos, por ora, na fase de ter proposto o seu estudo…

A nossa Constituição admite, segundo presumo, que possam ser estabelecidos regimes diferenciados para as regiões, e competirá ao Governo propor à Assembleia Nacional a sua adopção, a ser apresentada depois ao Presidente da República para promulgação e aplicação na prática.

Cremos bem que as regiões com descentralização política e administrativo-financeira podem ser um instrumento de unidade e solidariedade nacionais, e não de divisão como alguns temem, se for correctamente realizada, isto é, não sabotada ou desvirtuada pelo poder central, e as populações se aperceberem de que as regiões mais atrasadas ou negligenciadas passarão a ter autonomia e a dispor de mais recursos do que até agora. Ninguém aceita que Santiago, embora albergue cerca de metade da população do país, beneficie de dois terços dos investimentos para o desenvolvimento destinado ao país, mormente por sermos nove ilhas habitadas dispersas. Mesmo países continentais, sem descontinuidade, optaram pela regionalização.

O nosso Movimento fez uma proposta para a constituição de uma comissão de estudo, alinhando algumas das questões que vimos ventilando em escritos, que inclua todos os parceiros sociais, económicos e políticos a fim de se chegar a um consenso que leve à regionalização, descentralização e autonomia após o estudo e debate de diferentes experiências de descentralização no mundo (Marrocos, Áustria, Bélgica, Holanda, Dinamarca, etc.). É bem de ver, pelas razões aduzidas, que a divisão do país em regiões não deve jamais servir para o dividir, mas antes para unir os municípios e as populações a partir da base, das suas escolhas e afinidades.

 

  O Estatuto Especial para Praia, no contexto geral de debate que me pareceu defender recentemente o Presidente da República, e até o autarca da Praia, Ulisses Correia e Silva, julgava eu, na minha inocência e boa-fé, por tudo levar a concluir isso, que era proposta e ambição para estudo e debate alargado a ser feito, muito embora tenha havido legislação do Governo do PAICV sobre a ideia de Região Administrativa-Ilha, e mesmo lei que define as atribuições e competências dos municípios – estatuto - (Lei 134/IV/95 de 3 de Julho?), de que, de resto, ninguém fala, a qual referia a criação de um Observatório das Finanças Locais e da Descentralização, conforme vem citado no trabalho do Professor universitário, Luís Filipe Tavares, apresentado na Praia, em Maio de 2009, como Contribuição e desafios do municipalismo para o desenvolvimento de Cabo Verde.

Mas, não! Não era proposta para estudo aturado e debate como presumia. A coisa já vinha sendo cozinhada em segredo dos deuses e pecadores, à socapa, diazá na munde, gatchode, cma cosa de ladroagem, e foi subitamente proposta, e provavelmente será, dada a maioria parlamentar do partido governamental, aprovada, sem que os directamente afectados, aqueles que irão suportar as suas consequências e os que poderiam e se ofereceram a contribuir com o seu know how, se tenham pronunciado. Será, portanto, aprovado de modo discricionário e somente para a cidade da Praia.

          Afinal, o cozinhado da Praia já estava quase pronto a sair do lume para ser servido ao povo, sem que tenha deixado escapar nenhum cheirinho do pitéu. Até financiamento pelo Governo Brasileiro já tem! Francamente! Fort desafore, diria o nosso inolvidável filósofo mindelense do povo, como lhe chamou o Mestre Roque Gonçalves, Djunga Fotógrafo.

 

           E quando se diz e se escreve que eles – os da Praia e Santiago – “comem tudo e não deixam nada”, embatucam, barafustam, há vivos protestos, garantindo que não, que isso é bairrismo, como se nós outros fossemos cegos, surdos e fidje de fora sem outros direitos que não migalhas da lauta mesa praiense dos filhos legítimos. Já o disse e repito, ser sempre mau sinal do estado de democracia, quando se diz eles, referindo-se aos governantes, por tal significar que os cidadãos já não se identificam com os governantes, que lhes parecem estranhos.

Que haja um Estatuto Especial para a Praia, como capital do país, ninguém de boa-fé pode, nem deve ser contra, mas dentro de um contexto geral de descentralização, regionalização autonómica politico-legislativa e financeira. Somente limitada à Praia e Santiago é que não, por o país ser uno e indivisível. A Praia, como cabeça do país, poderá merecer, por isso, um penteado particular, mas se o corpo, isto é, as outras ilhas, as suas povoações, vilas e cidades estiverem doentes, cheias de sarna, coceira, tinha e postema (apostema), ela, a capital, cairia em decadência, não sobreviveria.

Haja sensatez! Que se oiçam todas as vozes válidas do país, que se oiçam os cidadãos! Que não se façam caixinhas com assuntos tão sérios como este! O concurso de todos é absolutamente necessário e imprescindível. Foi Salgado Zenha que disse ao Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo, numa ocasião crítica do país em que ele e Spínola queriam ludibriar o povo, e se recusava a ouvir a voz da razão, que quem não sabe ouvir, não sabe governar. Governe-se com o povo e para o povo, porque os dirigentes são, ou devem ser, como eleitos, os representantes do povo, aqueles que ele escolheu, em quem delegou os seus poderes e espera que os defendam. O nosso Djunga Fotógrafo (João Cleofas Martins), deverá estar retorcendo-se na cova com o comportamento dos nossos governantes, e mais com a passividade do mindelense, que ele tanto amava, por este parecer estar, como diz numa das suas inolvidáveis cartas que fixei em livro,  “intepide de mede”, sem ânimo nem liberdade para dar um berro de vivo protesto, como um dos personagens do romance de Jorge Amado, a quem deram água a beber em vez de cachaça, que ficou com a alcunha de Quincas Berro-d´Água. Até parece que se vive em S. Vicente em dia de mormaço que faz emudecer o mindelense. Home, cred!

 

Um dos problemas actuais dos governos, como nos diz o filósofo e amigo de juventude, José Gil, é tempo, um outro tempo, mas é o tempo. Eles, os governantes, não param para pensar, têm muita pressa de tomar iniciativas, têm de, têm de… Talvez não tenham de. Podem talvez parar … para ouvir os outros, para meditar nas propostas dos outros a fim de agirem melhor e a contento da maioria dos cidadãos. Há que entender a cultura de modo diferente. De uma maneira antropológica a cultura implica relação com todo o território, com toda uma maneira de ser, de viver e de formar uma colectividade.

 

Escrevi, há tempos, como remate a um artigo sobre o comportamento de certos governantes, o seguinte: Caros governantes! Há que respeitar um povo que sofreu carências imensas, fome e contornou precipícios terríveis, sinuosos e escorregadios, onde só transita, sem risco de cair, o pé bifurcado da cabra. E ele – o povo - aí está, mirando aqueles que prometeram melhorar a sua vida e os seus caminhos. Queremos, nós das outras ilhas, caminhar convosco de mãos dadas, em confiança, sem receio que nos pinchem pela ribanceira abaixo.

                                            

Depois dessa minha tirada aos governantes, o nosso Primeiro-Ministro fez uma declaração em Torres Vedras e vi-me na obrigação de não me calar e também expressar-me, mais uma vez, sobre o assunto, na tentativa de esclarecer mal-entendidos e ideias preconcebidas defeituosas, sem muito entrar, no entanto, no âmago da questão que só poderá ser levado a cabo por uma comissão escolhida para o efeito, conforme propusemos.

 

Os meios actuais de comunicação social, particularmente, a TV e Internet, vêm criando nos cidadãos uma certa ânsia de participação política, e até um sentimento de rebelião que contrapõe a sociedade civil à classe política e os eleitores aos eleitos, o que é bem salutar e deve ser tido em conta pelo poder, isso por haver um crescendo de mal-estar social. Infelizmente alguns governantes, enfeudados aos partidos e a interesses pouco curiais fazem parte do problema e não da solução.

 

Mas, para já, precisamos de sair da espuma da politiquice e reafirmar que ninguém favorável à regionalização propôs a execução imediata da mesma, mas sim a sua discussão alargada de modo a encontrar-se um consenso que leve à sua adopção à nossa realidade insular arquipelágica, ou, até, sua rejeição. Sem a sua discussão e conhecimento aprofundado, ninguém estará em condições de afirmar categoricamente que nos convém ou não. As verdades apodícticas – isto é, que não admitem discussão e têm de ser aceites -, existem somente em religião, tanto nos dogmas como na palavra do Papa com respeito à sua infalibilidade, limitada até somente a assuntos de fé. A ciência – a Política e a Administração são ciências – contenta-se com aproximações da verdade após estudo, discussão aturada e experimentação antes da aplicação.

 

Afirmar a inexistência de meios, como fez o nosso Primeiro-Ministro, para a regionalização, parece-nos um tanto arriscado, talvez um lapsus linguae, ou, pelo menos, imprudente. À pergunta do nosso Primeiro-Ministro de “quem irá pagar isso?”, para negar a sua viabilidade, a única resposta será uma série de outras perguntas: quem tem pago a pesada estrutura estatal que vai gerindo o nosso país? Será que acha impossível tornar mais eficiente a Administração Pública? Não será possível diminuir o peso paquidérmico do Estado, diminuindo, ou associando ministérios, reduzindo o número de deputados e eliminando agências e instituições criadas, embora supostamente na melhor das boas intenções, cujas funções parecem ter-se convertido mais em favorecedores de amigos, correligionários e do mercado do que, como se dizia e se prometeu, em benefício dos cidadãos? Por que se tem adiado a reforma tão necessária e prometida milhentas de vezes, da Administração Pública? Por que, para se privatizarem as empresas públicas entupidas de funcionários e deficitárias por isso, tornando-as mais eficientes, rentáveis e apetecíveis ao privado, se despede pessoal supérfluo aí metido por amigos do poder central, e não antes em benefício de todos? Onde se vai arranjar dinheiro para o Estatuto Especial para a Praia quando acabar o apoio brasileiro?

Os municípios também fazem despesas; também implicam instalações, funcionários e a detestável burocracia e não empobrecem o país. As regiões também não irão fazê-lo, como explicarei mais adiante. É preciso reter que as regiões não serão dotadas de nenhum poder político extraordinário, nem de governo próprio. As competências que para elas se prevêem situam-se predominantemente na área da planificação e da coordenação de realizações e actividades a nível supra municipal, ficando mais próximas das populações para poderem ouvir as suas queixas, sugestões e até beneficiar com as suas ajudas, sem necessidade de passar meses e anos à espera de decisões centrais de quem desconhece as realidades regionais e locais.

 

O Estado deve exercer as competências que as instâncias descentralizadas, as abaixo delas e os cidadãos não possam exercer melhor do que ele, abandonando o autoritarismo concentrado e pessoalizado do passado.

 

Dito somente isso conclui-se ser possível diminuir bastante o peso da Administração do Estado e torná-lo mais funcional e eficiente, isto é, capaz de produzir melhores resultados com menos despesas e até menos gente que poderia ser absorvida pelas actividades privadas desembaraçadas de peias burocráticas e da morosidade da justiça. A descentralização seria uma mais-valia nesse processo de reforma e racionalização da função pública.

É óbvio que a regionalização, descentralização e autonomia podem manifestar-se numa multiplicidade de formas, inclusive como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais contra a média uniforme, impotente e artificial do centralismo. Nelas se manifestam e afirmam iniciativas, o espírito inventivo, democrático e autonómico das populações. As liberdades municipais, regionais e respectivas iniciativas dão às populações fisionomia e vida próprias impossíveis na centralização esterilizadora e monocórdica. Portanto, bom será não alimentarmos ilusões, porque nem os governos, nem os partidos políticos passíveis de chegar à governação morrem de amores por elas. A sociedade civil é que tem de lutar por isso, numa atitude política não partidária, integralmente civilista. Os militantes de partidos políticos poderão e deverão também participar, mas despindo as vestes partidárias, não como militantes mas como cidadãos e patriotas.

 

Ninguém deve pedir por favor aquilo que lhe pertence por direito. É fundamental que os governos aprendam a escutar as vozes dos cidadãos, da sociedade civil. Há que combater e acabar com a tendência de as pessoas que deveriam ser ouvidas e respeitadas pela sua competência, experiência, isenção e rectidão de carácter, não sendo militantes do partido no poder, de serem marginalizadas pelo poder político. Afinal, o Estado mais não é do que uma máquina que se destina a fornecer-nos os serviços que nós, cidadãos não militantes e militantes, reputamos essenciais. Se não funciona, ou funciona mal, é porque algo falhou na forma como escolhemos os dirigentes e temos todo o direito de tentar modificar essa forma de escolha.

 

Um país onde a inteligência é um capital inútil e o único capital deveras produtivo e utilizado é a falta de escrúpulos e de vergonha na pele da cara, não tem grandes hipóteses de progredir. Não queiramos ser nem tolerar isso.

 

Há gente que advoga, e muito bem, a desestatização das nossas cabeças, isto é, que não se espere que tudo venha do Estado, dos governos. Todavia esquecem-se de que a culpa tem sido dos governos, não das pessoas, por ter havido o controlo e dependência total por parte dos governos das iniciativas do privado, o que levou à criação de empresários parasitários, tímidos e abúlicos, de um lado, e de oportunistas mafiosos, de outro, não permitindo a formação, como expliquei algures, de uma classe empresarial forte, independente e honesta capaz de investir na promoção e criação de indústrias no país. Grande parte desta classe tem preferido viver da rabidância, sem correr nenhuns riscos, e de negócios obscuros que seriam penalizados se a justiça funcionasse como devia. Por outro lado – isso no campo da agricultura, assunto que tenho abordado várias vezes nos últimos tempos - os governantes têm estado a isolar-se cada vez mais do campo e dos camponeses, em várias ilhas, levando estes a abandonar o campo, migrando para os meios urbanos, ou emigrando para o estrangeiro, por falta de apoios e de meios para vencer as vicissitudes da vida rural.

Alguns leitores que se manifestaram face às palavras de descrença do Primeiro-Ministro na regionalização julgam que esta o iria prejudicar as ilhas de menor população, beneficiando as mais populosas, o que é falso, por a distribuição de fundos não dever subordinar-se somente ao número de habitantes mas fundamentalmente à necessidade de se criarem infraestruturas que estimulem e garantam um desenvolvimento sustentável. A canalização da maioria dos fundos para uma única ilha, mesmo que seja sede da capital do país, é vício - isso sim, bairrista -, e não a defesa da distribuição equitativa e reconhecimento de especificidades de certas ilhas com tradições respeitáveis a serem acarinhadas e estimuladas.

Também se falou do perigo da atomização política. Qual atomização! Pretende-se, sim, descentralizar o poder levando-o para junto das populações, delegado e praticado por pessoas que estas conhecem, a quem se dirigem com facilidade, acessíveis, que respeitam e elegeram, em vez de ficar na Praia, de cócoras, como ironizava Eça de Queiroz, nos diferentes ministérios e noutras estruturas do poder central. Que sabe o Palácio da Várzea, na Praia, do que se passa em Lombo Pelode, em S. Nicolau, ou no Tantum e Campo das Fontes, na Brava? Ouvem, acaso, o coro dos seus queixumes e protestos? Um poder local descentralizado, sim: testemunharia o drama das suas vidas e bater-se-ia por melhoramentos que, sem ele, encontrariam obstáculos nos clássicos ouvidos moucos da Praia.

 

Um país onde por todo o lado, o que conta são as normas e a burocracia emperradora, não a substância dos problemas, prefere que os funcionários públicos sejam autómatos, obedientes e resignados a conferir assinaturas, regulamentos e a praticar infinitas burocracias, em vez da delegação neles de um mínimo de autonomia e capacidade de decisão. É sabido que o poder não aprecia muito, nem tem tradição de delegar poderes e responsabilidades, mais pelo gosto pelo poder do que por razões racionais; porém, se meditasse no assunto, sem egoísmos nem desvios condenáveis, concluiria que isso até seria vantajoso por lhe proporcionar mais disponibilidade de tempo para meditar, dialogar com os cidadãos e tomar decisões mais bem pensadas, digeridas e até partilhadas.

                              

Todo o mundo elogia a Civilização Grega Antiga, mãe da Civilização Ocidental. E isso começou a sério com os jónios. A Jónia era um reino insular, com muitas ilhas. Não havia concentração de poder que pudesse impor uniformidade social e intelectual em todas as ilhas. Tornou-se possível a investigação, livre de peias do peso gongónico das instâncias estatais centrais.

Eles estavam na encruzilhada de civilizações, portanto, em ilhas, como nós em Cabo Verde, não num dos centros. O poder político estava nas mãos de mercadores que promoviam, activamente, a tecnologia de que dependia a prosperidade. Foi no Mediterrâneo Oriental onde as civilizações africanas, asiáticas e europeias, incluindo as grandes culturas do Egipto e da Mesopotâmia, se encontraram e mutuamente se fertilizaram num vigoroso e inebriante confronto de conceitos, línguas, ideias e até de deuses, isso por volta de 600 a 400 anos antes de Cristo. Por que não nós?

A grande revolução no pensamento humano começou, pois, em ilhas, nas Ilhas Jónicas. A chave dessa revolução foram as mãos, como referiu o saudoso Mário Fonseca no seu excelente artigo publicado em A Semana, As Mãos Cegas. Alguns dos brilhantes pensadores jónicos eram filhos de marinheiros, mercadores, agricultores, oleiros e tecelões. Estavam habituados a mexer em coisas, a construí-las e repará-las, ao contrário dos nobres, sacerdotes e escribas de outras nações que, criados no luxo, tinham relutância em sujar as mãos.

 

Afinal – já vou terminar - o que é que queremos com a nossa proposta, que aqueles que pretendem baralhar as consciências e manter a sabura na inércia quiseram transformar em reola? Tão simplesmente que se abra uma vasto debate nacional, com espírito não partidário, no qual participem todos quantos têm alguma experiência na matéria ou contributo a dar, sobre a questão da regionalização, descentralização e autonomia política, administrativa e financeira, a ver se será, como julgamos, útil e aplicável a Cabo Verde. Será contraproducente partidarizar esta questão e tomar posições condenatórias sem a estudar. Outrossim, ninguém tem o direito de decidir em nome do povo sem o escutar, sem o ouvir em ambiente de plena liberdade. Não estamos pedindo a adopção da regionalização por decreto, à semelhança da criação de estruturas e instituições como cidades, concelhos e freguesias sem se ouvirem as populações e sem avaliar a sua viabilidade económica ou interesse para as populações.

 

A descentralização é um instrumento fundamental da estratégia de racionalização da administração pública. Há necessidade urgente entre nós de vencer as assimetrias insulares e regionais para que Cabo Verde seja um país economicamente viável, mais desenvolvido, capaz de utilizar os seus parcos recursos e de mobilizar todos os cabo-verdianos, residentes e da mal aproveitada diáspora, de forma sustentada, de todas as ilhas, reforçando e adubando as suas raízes, a unidade das diversidades entre as cidades e as vilas, entre o campo e o litoral. Sem isso, continuaremos a viver enganados, iludidos na convicção da nossa sustentabilidade como país independente, mas somente enquanto beneficiarmos da solidariedade e ajuda internacionais. Não nos iludamos com a categoria de país de desenvolvimento médio dependente da ajuda exterior, por essa condição não ser sustentável, até por já estar a diminuir a ajuda internacional. Temos de ser capazes, com iniciativas viáveis, de ser inventivos e solidários para poder progredir.

No artigo “A ignorância da multidisciplinaridade e da intersectorialidade”, referia-me a esta falha grave, a que o actual Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Dr. António Costa, parente do grande médico Dr. Sócrates da Costa, que bem conhecemos em S. Vicente e Cabo Verde, apelida de chaga da administração pública a nível regional, que é a impossibilidade de pôr dois organismos da administração a trabalharem em conjunto. Citei o caso da construção da estrada para o Calhau em S. Vicente e podia ter citado muitos outros por, infelizmente abundarem. Há que resolver essa pecha maior da colaboração entre serviços com determinação, tornando-a obrigatória, para poupar dinheiro e evitar realizações coxas de nascença. Havendo trabalho conjunto - que seria facilitado se as decisões dependessem de organizações loco-regionais que conhecem melhor as suas realidades e carências -, de uma só cajadada se matavam dois ou mais coelhos, quando, partindo a decisão do poder central à distância, uma cajadada, semelhante a tiro de canhão, mata mal, com enorme desperdício, um único coelho que mal se aproveita.

 

A regionalização é mais uma forma de descentralização, como o são o reforço do poder dos municípios e das freguesias, ou a transferência de poder para as associações públicas, como as ordens profissionais, ou para instituições particulares, não-governamentais, da sociedade civil, do tipo da Adeco, da ONDS, Amigos da Natureza e outras do género de solidariedade e defesa do cidadão trabalhador, contribuinte e consumidor.

 

Opor-se, ou apresentar empecilhos à regionalização por poder ser uma ameaça à unidade nacional é uma grande patranha que não tem pés para marchar, que se assemelha a uma das figuras do quotidiano utilitário do malogrado Prof. João Manuel Varela – os matadores do burrinho do bispo - pessoas que se empenham em matar estruturas que não fazem mal a ninguém, nem à sociedade civil, nem às instituições do Estado, e, até são, pelo contrário úteis.

A regionalização poderia aproveitar-se das administrações desconcentradas do Estado (a diferença entre organismo desconcentrado e descentralizado é que naquele os dirigentes são nomeados pelo governo, ao passo que no descentralizado, são eleitos pelos cidadãos da região ou município), o que facilitaria também a reforma administrativa, ainda emperrada com alguns cascalhos na engrenagem burocrática. As regiões podem ser criadas, na opinião do Dr. António Costa, numa lógica de racionalização das repartições desconcentradas, traduzindo-se em poupanças e eficiência.

As regiões devem ocupar-se de decisões que ultrapassam os municípios, isto é, que não podem ser resolvidos a esse nível sem egoísmo dos respectivos municípios: questões de planeamento regional, gestão de incentivos, definição de prioridades de investimento público. A regionalização não deixa também de ter desvantagens, mas não há dúvidas de que as vantagens superam os inconvenientes, até por estes serem mais facilmente detectáveis por estarem dispersos e não em bloco a nível central. Se se começar, por exemplo, por uma região piloto a título de ensaio, isso permitiria medir no terreno as vantagens e desvantagens da regionalização.

 

A regionalização poderá ser mesmo uma oportunidade de fazer a reforma administrativa, bastas vezes anunciada e iguais vezes adiada, com efeito racionalizador da despesa pública ao nível regional e de maior eficiência, quer nas políticas públicas quer nos incentivos ao desenvolvimento regional. O poder tem de se convencer haver somente boas razões e vantagens em abrir mãos de poderes que não consegue utilizar adequadamente, delegando-os a instâncias mais próximas das populações, geridas por eleitos que estas conhecem, em quem confiam, que escolheram em liberdade, a bem de todos e da boa governação.

 

Embora a regionalização proposta por um dos partidos políticos para Portugal, com os seus diplomas de aplicação e controlo, não tenha ainda sido concretizada, creio de interesse e útil para Cabo Verde o seu estudo. O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que está aplicando com sucesso algumas fases da descentralização e regionalização no seu concelho, seria, obviamente, um óptimo conselheiro.

 

Mais recentemente o nosso Primeiro-Ministro aceitou finalmente nomear uma comissão, conforme propusemos, para estudo da regionalização, descentralização e autonomia. Acreditamos que não irão falsear os nossos propósitos nomeando arbitrariamente uma comissão favorável somente à descentralização administrativa, que nada adiantaria, por já a termos sob a denominação de repartições desconcentradas, que cultivam a passividade burocrática, a obediência, quando não ao deferimento dos senhores do poder central e dos excessos do centralismo político e administrativo camuflado.

 

Posta mais esta pequena semente na terra, praza ao bom Deus de todas as religiões que germine e dê frutos em benefício de todos, gregos e troianos, como dizia o nosso adorado João Cleofas Martins. Ámen, e mãos à obra.

 

S. Vicente, Novembro de 2012                                  Arsénio Fermino de Pina

                                                                           Pediatra e sócio honorário da Adeco

 

domingo, 9 de dezembro de 2012


ARRANCOU O DEBATE SOBRE REGIONALIZAÇÃO DE CABO VERDE?


O Primeiro-Ministro de Cabo Verde reconheceu pela primeira vez, no passado mês de Agosto, após tergiversar tempo demais, que um amplo debate sobre a Regionalização é necessário, anunciando a realização para um futuro, embora incerto, de um fórum alargado à diáspora e a abertura de um Livro Branco sobre o tema.

Do MPD, apesar de se conhecer a posição oficial deste partido favorável à Regionalização, expressa na pessoa do seu líder Carlos Veiga, o deputado Mário Silva, em recente entrevista, tenta refrear o debate para que o processo possa ser mais uma vez enviado para as calendas gregas, tão ancorado é o centralismo e o imobilismo na visão de alguns Santiaguenses. A um dado passo da sua entrevista, ele afirma: “Isto só para demonstrar que no estado em que as coisas estão não estou muito preocupado porque a regionalização vai demorar décadas a ser concre¬tizada. Aliás, já desafiei colegas meus, defensores acérrimos da regionalização, a apresentarem projectos, mas ainda estou à espera…”. Esta é a posição, mais ou menos encapotada, dos que defendem o centralismo ou pretendem uma simples reforma administrativa ou mesmo um adiamento sine die da Regionalização, como aliás aconteceu com o fiasco do Atelier sobre a Regionalização de 2007. Mário Silva parece assim na retranca do seu partido sobre esta matéria, a avaliar pelas intervenções públicas feitas pelo seu líder e outros correligionários.

Com efeito, 10 anos, o tempo de duas legislaturas em Cabo Verde, correspondem a uma eternidade em política, e o tempo encarregar-se-ia de matar pura e simplesmente o debate. Dentro de 10 anos, Onésimo Silveira, um dos protagonistas da luta pela Regionalização, o “enfant terrible” dos poderes da Praia será octogenário e é muito natural que venha a ter menos vigor nos combates; Mindelo e o resto de Cabo Verde, de certeza, estarão soçobrados numa profunda e irreversível crise provocada pelo centralismo, que se dissemina subtil e inexoravelmente pelo país dentro. Os centralizadores poderão contemplar a acção de desgaste do tempo, recolhendo os dividendos da desmoralização e da desmobilização em torno das ideias de Regionalização: S. Vicente de joelhos, e Cabo Verde rendido por fim aos seus pés, exangue, sem alma e sem rumo. Não se mostrando assim um grande defensor da Regionalização, para não se dizer céptico, o deputado do MpD coloca mesmo assim questões pertinentes para o debate e para o Livro Branco sobre a Regionalização: “quantas regiões va¬mos ter em Cabo Verde? Qual é a delimitação de cada região? Que atribuições? Que compe¬tências? Quantos órgãos? De onde vem o financiamento para o funcionamento destes órgãos? Que estatuto para os titulares dos órgãos regionais? A regionalização terá de im¬plicar uma grande reforma do Estado, mas desse ponto de vista ainda nada foi discutido…”

Efectivamente, a Regionalização não será uma simples reforma mas sim um complexo processo de transformação do país, que deve ser encarado com todo o rigor e seriedade, pois em muitos processos de transformação os principais actores não se apercebem da dimensão dos acontecimentos e das suas implicações no quadro das mudanças operadas. Luiz XVI, aquando da tomada de Bastilha em Paris, em 1789, no fim na monarquia em França, tentando compreender os acontecimentos de Paris, perguntou ao seu mordomo: “S'agit-il d'une révolte?” Recebeu um balde de água fria inesperado : “Non Sire, ce n'est pas une révolte, c'est une révolution”. A França estava prenhe para uma das maiores transformações que abalariam as fundações políticas e sociais da Europa e do Mundo. A ser tomada com seriedade, a Regionalização poderá ser, não uma mera cosmética administrativa, para aparentemente mudar algumas coisas e deixar o essencial do sistema centralista burocrático intacto, como muitos pretendem, mas sim uma nova oportunidade para o país, uma nova partida, e uma das mais importantes reformas políticas e administrativas desde a Independência, libertando energias refreadas pelo centralismo político e económico vigente no país.

A Regionalização deverá ser política, administrativa, financeira, económica, etc, englobando todos os sectores da vida do país. Só se pode responder às questões postas pelo deputado Mário Silva com uma profunda reforma do funcionamento do Estado: “Qual é a delimitação de cada região? Que atribuições? Que compe¬tências? Quantos órgãos? De onde vem o financiamento para o funcionamento destes órgãos? Que estatuto para os titulares dos órgãos regionais? A regionalização terá de im¬plicar uma grande reforma do Estado.” Ajustamentos e correcções necessárias à organização do Estado de Cabo Verde, e condizentes com a realidade arquipelágica e regional do país, serão indispensáveis. Será necessário repensar profundamente o funcionamento e o papel do Estado nesta nova realidade, o que implicará, de facto, uma profunda reforma constitucional. Com a Regionalização, grande parte do aparelho do Estado terá que ser transferido para as Regiões, aquele ficando confinado aos Macro-Sectores do país e às principais funções inerentes à Soberania: Diplomacia, Defesa, Planificação Financeira Macroeconónica, etc. Serão as Regiões detentoras do grosso das competências outrora polarizadas no Estado Central, limitando-se assim a intromissão na vida dos cidadãos da rede tentacular, toda poderosa, de um estado burocratizado e até hoje fortemente partidarizado. Como os franceses dizem “Il y aura du pain sur la planche”, ou seja, para além da necessária reforma do Estado, será preciso reformular o seu papel no quadro da nova realidade, a Regionalização. Modelos de Regionalização bem rodados já existem em várias partes do Mundo e não adianta aqui pretender inventar a roda. O Livro Branco sobre a Regionalização permitirá, sim, recolher contributos a partir de estudos e pesquisas efectuados em diferentes realidades para depois, mercê de reflexões e debates, adaptá-los à realidade do país, de forma a construir o modelo de Regionalização que reflicta as nossas especificidades geográficas, económicas e sociais.

Neste aspecto, como já tinha sublinhado noutros artigos, a Regionalização Alemã pode ser um exemplo a seguir, sobretudo tratando-se de um país com quem Cabo Verde tem boas relações, embora os modelos das Autonomias Espanholas ou da Regionalização Francesa mereçam uma atenção muito particular. Com este modelo, o Estado de Cabo Verde transitaria de um velho Estado napoleónico, jacobino, centralista, para um Estado democrático e descentralizado, compatível com os grandes desafios da modernidade e do Sec. XXI. A Alemanha é uma Federação onde o poder político e administrativo está descentralizado através de uma ampla rede de instituições de carácter estadual, regional e local. Uma organização e uma articulação entre o Estado Central (Bund), as 16 Regiões (Länder) e as autarquias (Gemeinde), cada um com as suas assembleias eleitas. Segundo Carneiro e Dill, os Länders constituem a Cintura da Federação Alemã: ao funcionarem como “autarquias” estaduais e, simultaneamente, ao realizarem tarefas públicas que ultrapassam as fronteiras dos municípios, sob a delegação dos mesmos, o Länders exercem, assim, uma “dupla função” muito importante. Trata-se de facto (e de direito) de uma “articulação” robusta entre as esferas de poder local e estadual. Os poderes dos Länders são importantes, podendo até celebrar tratados com Estados terceiros, desde que disponham de competência exclusiva para o efeito e do acordo do Governo Federal. Se o tratado tiver consequências para a legislação do Länder em causa, a transposição do tratado para o direito interno é feita através da sua aprovação pelo parlamento desse Länder, em conformidade com a respectiva Constituição. Além disso, os Länders podem celebrar tratados nos domínios em quais os respectivos governos estejam habilitados a adoptar diplomas de carácter regulamentar. Este aspecto é muito importante no caso de Cabo Verde, permitindo que as Ilhas Regiões tenham um dinamismo a nível internacional e na Diáspora. Segundo Tomio e Ortolan, o sistema de repartição de competências alemão inovou ao criar e privilegiar novas formas de cooperação legislativas e administrativas, entre a União e os Estados. Já o constitucionalista espanhol Enoch Rovira destaca alguns institutos introduzidos na Lei Fundamental responsáveis pelo sucesso do federalismo de cooperação alemão:

• a cláusula de presunção geral de competência em favor dos Länders para o exercício dos poderes estatais e funções públicas ;

• na distribuição das competências legislativas, a preponderância de formas de concorrência legislativa entre Bund e Länder (como a legislação de marco e a legislação de princípios);

• na distribuição de competências administrativas, sobretudo, o modelo de execução das leis federais pelos Länders, comportando fiscalização e direito de emitir prescrições administrativas pelo Bund;

• as tarefas comuns (Gemeinschaftsaufgaben) que corresponderiam a formas institucionalizadas de cooperação administrativa entre Bund e Länder.

Carneiro e Dill põem em evidência um princípio bastante importante na arquitectura nacional alemã, sem o qual o modelo não poderia funcionar: o da subsidiariedade e da autonomia na arquitectura nacional alemã, segundo o qual as entidades estatais superiores (micro-Região, Estados e União) nunca devem assumir tarefas que os Órgãos Menores, comparados ao Estado Central, possam cumprir de maneira eficaz. Em outras palavras, os Órgãos Menores têm, em conjunto, as prerrogativas de realizarem as políticas públicas de interesse local e regional. Somente quando esgotadas as suas capacidades político-administrativas as demais esferas de governo, ou seja, o Estados Central, podem e devem entrar em cena, porém de forma subsidiária. No caso alemão, a autonomia municipal está prevista e garantida com base no artigo XXVIII (II) da Lei Fundamental de 1949 na redacção de um princípio constitucional chamado de Kommunale Selbstverwaltung, que quer dizer Autonomia Administrativa Municipal. Tal autonomia pressupõe três dimensões: política, financeira e administrativa, propriamente dita.

Para além desta estrutura, Carneiro e Dill ainda ressaltam o papel dos Consórcios Inter-Länders e Inter-Municipais na Alemanha, actuando em vários sectores para superação da ideia de rivalidade inter-regional ou intermunicipal em favor da cooperação das partes envolvidas tendo em vista os benefícios comuns (como referi num dos meus artigos em que denominava os Consórcios de Clusters Regionais). A primeira razão para a existência dos consórcios prende-se com motivos de ordem financeira, já que muitos municípios não conseguem a autonomia de recursos desejável quando operam de forma isolada; intimamente ligada à primeira, temos os imperativos práticos quando se trata de realizar tarefas que podem ser mais eficientes quando feitas em colectivos intermunicipais; um terceiro aspecto diz respeito à matriz energética e à economia de recursos associada à expansão de oferta com melhor relação custo-benefício para os cidadãos; finalmente, a cooperação regional se coloca como meio para se conseguir ganhos de escala em qualquer política pública, no mesmo espírito, no caso alemão, que inspira a integração europeia em nível supra-nacional.

Como vemos, a Regionalização em Cabo Verde terá profundas implicações no aparelho de Estado, exigindo uma profunda Revisão constitucional e a sua inscrição numa Constituição actualizada, como um antídoto a eventuais derivas ou derrapagens burocráticas e centralizadoras do Estado de Cabo Verde. Assim, em vez do Livro Branco sobre o tema da Regionalização, a intelligentzia política do país deveria pensar em abrir um Livro Branco sobre o Futuro de Cabo Verde, para repensar o país, 35 anos após a Independência.

Na frente do combate para a Regionalização, pelas bandas de S. Vicente e do Norte de Cabo Verde, aparece Onésimo Silveira cada vez mais como um interlocutor credível na condução desse processo, o qual não será de todo linear uma vez que os interesses do Estado centralizador estão hoje associados ao poder económico e financeiro concentrado na Capital e numa única Ilha. Por outro lado, os restantes intelectuais e a classe política mindelenses e nortenha, tirando alguns casos pontuais (entrevista de Eva Caldeira Marques, Augusto Neves e António Monteiro, onde exprimem convicções declaradamente pró Regionalização, assim como Júlio César Alves, um corajoso mindelense que deu a cara para o Movimento para a Regionalização), têm-se mantido numa situação de baixo perfil ou ausentes do debate. Há um ditado em francês que diz ‘les absents ont toujours torts’. Muito mais é legítimo esperar desta sociedade mindelense cansada, desiludida, mergulhada numa apatia generalizada e com níveis de participação cívica muito baixos, deixando fugir como areia entre os dedos os valores de cidadania que outrora lhe eram caros. Por isso, é de saudar o reaparecimento em cena de Onésimo Silveira, homem de sete vidas, com um vigor anímico renovado, pronto a protagonizar esta justa causa de várias décadas. Dando a cara desassombradamente, como é o seu estilo, ele é o porta-estandarte das revindicações mindelenses, o cidadão que melhor se coloca como intérprete dos nossos anseios e sentimentos. Não obstante os erros e as derivas políticas de que é acusado, é justo reconhecer o estofo intelectual, cultural e científico deste homem político de dimensão internacional, que muitas vezes parece pregando num deserto.

Além disso, os mindelenses sabem que podem contar com a Diáspora, que soube, em momento próprio, lançar em 2011 o apelo através do “Manifesto para um S. Vicente Melhor”, e o “Movimento para a Regionalização de Cabo-Verde”, cujo núcleo duro da diáspora foi constituído por mim, Adriano Lima, Arsénio de Pina, Valdemar Pereira, Luiz Silva, o falecido Zizim Figueira, Joaquim de Almeida (Morgadinho), Veladimir Cruz, tendo-se juntado a nós recentemente Vladimir Koenig. Vários artigos sobre a Regionalização e a Descentralização foram publicados pelo grupo, sendo de destacar o papel crucial no debate jogado por Adriano Lima e Arsénio de Pina. Para além disso, conseguiu-se disseminar o debate através de uma enorme rede de relações e de amizades em Cabo Verde e na diáspora (sem a internet tal não seria possível), assim como através dos contactos de elementos signatários das diferentes petições que o Movimento promoveu.

Voltando a Onésimo Silveira, no seu último artigo, aflora de maneira corajosa o que será provavelmente nos próximos anos um tema quente ao lado da Regionalização: O debate sobre o crioulo. Sabendo da necessidade de adopção de medidas imediatas para travar a queda de S. Vicente, que só podem ser efectuadas no âmbito de uma larga Autonomia Política Económica e Administrativa, e estando Onésimo Silveira em condições de participar ou dinamizar uma larga frente nacional e apartidária para exigir a abertura imediata do processo de Regionalização, o momento é de acção para se desencadear iniciativas urgentes tendo em vista a sua calendarização, nas suas múltiplas etapas até à sua concretização.

JOSÉ FORTES LOPES