quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

                                           Ainda sobre o polémico Estatuto Especial
                                                      José Fortes Lopes

Segundo notícias recentes, o novo governo de Cabo Verde vai levar ao Parlamento, em inícios de 2017, um diploma para a aprovação de um Estatuto Especial para a cidade da Praia.
Alegadamente, tal iniciativa decorre de “um compromisso que o povo de Cabo Verde tem para com a sua cidade capital” (?), conforme se exprimiu recentemente o primeiro-ministro, pelo que lhe serão atribuídos recursos financeiros especiais inerentes ao estatuto em causa, a juntarem-se aos privilégios de ser a capital de Cabo Verde e àquilo que por lei compete aos municípios em geral. Acresce que o presidente da câmara será equiparado a ministro e é previsível a equipa de vereação veja também melhorado o seu estatuto.  Portanto como podemos concluir o que está em causa é um Estatuto Especialíssimo, já que a Praia, capital de Cabo Verde aufere já de Estatuto Especial,  incluindo  todos os benefícios políticos e económicos que este estatuto lhe confere. Este seria o presente perfeito oferecido aos Fundamentalistas, que realizariam assim o mito do Grande Santiago quinhentista, e a secundirização das restantes ilhas, desclassificando automaticamente a 2ª cidade de Cabo Verde, Mindelo.
Recordemos que não obstante Cabo Verde ser um país arquipelágio, todo aparelho do Estado, o essencial dos recursos humanos, os serviços, as empresas, as actividades primárias e secundárias, os financiamentos internacionais,  que antes, até há algumas décadas, estavam de certo modo dispersos pelo arquipélago, nomeadamente em S. Vicente, estão hoje concentrados praticamente ou exclusivamente na capital de Cabo Verde, fruto de uma política radical  de concentração económica, social e cultural de um país no seu centro. A situação de orfandade que  vive a 2ª cidade do país, à braços com problemas estruturais e sociais, relacionados com situação de desemprego crónico, resultantes da inexistência de perspectivas económicas, e vitíma do centralismo e da burocracia estatal, reforça ainda mais o sentimento de injustiça desta pretensão.
Como é sabido o PAICV e o MPD estão de acordo para a aprovação do estatuto. Por isso, não estranha que a posição do PAICV relativamente ao projecto de Regionalização que o MPD propõe submeter, talvez, em 2017 (mas de certeza depois da aprovação do estatuto para a capital), esteja envolto em mistério, havendo até quem preveja que este partido se vá lavar as mãos deste processo, como tem feito até agora, atirando as responsabilidade para o povo, através da proposta de um hipotético referendo, de resultados imprevisíveis. O PAICV só é corajoso e musculado quando está no poder!! Para além disso, sempre que os seus interesses egoistas partidários estão em jogo esquiva-se das suas responsabilidades. Não surpreende também que uma certa elite pensante, deputados e políticos de S. Vicente, assim como os das restantes ilhas, a maior parte deles residindo há décadas na capital, totalmente insensíveis e alheios aos problemas das populações dos seus locais de origem,  por questões de disciplina partidária, obediência aos ditames da Praia e laços umbilicais, darão o seu aval a este projecto iníquo.
 Eduardo Oliveira, um observador bastante atento às políticas do novo poder, acha mesmo espantoso que "... o estatuto seja um compromisso que o povo de Cabo Verde tem para com a cidade capital." “o legislador ou legisladores, ao fazerem constar no artigo 10 da Constituição, ponto 02, a prerrogativa que concedeu este estatuto à Praia, legalizaram mais uma aldrabice a que os povos das ilhas terão que se sujeitar, trabalhando para o bem-estar dos habitantes desta ilha/cidade, que se orgulha dos privilégios que lhe foram acordados desde a independência” e conclui "Eles comem tudo, eles comem tudo, e não deixam nada".
Para Adriano Miranda “Deixa de ser um compromisso dos políticos da Praia (juízes em causa própria) para ser do povo cabo-verdiano. Isto não deve passar em branco porque tem foros de uma autêntica provocação e insulto ao povo das outras ilhas”. Como vêem, o princípio da subsidiariedade, que é um dos que devem presidir à descentralização, vai começar a ser aplicado é a favor da Praia. Sim, logo de começo, porque depois pode não sobrar nada para as ilhas da periferia. Compreendem agora a minha pouca fé no modelo região-ilha?” Por estas e outras razões é que uma certa desconfiança paira sobre a questão da regionalização. 
Embora o novo governo eleito defendesse uma ruptura com as políticas do precedente regime, fundamentalmente nada mudou em meio ano de poder, para além de que se constata uma grande continuidade ideológica e a manutenção das políticas centralistas que vinham sendo seguidas. Assim, temos assistido da parte deste novo governo, a uma surpreendente continuidade das políticas anteriores, uma catadupa de anúncios e pacotes financeiros milionários, única e exclusivamente endereçados à ilha de Santiago, quando existem em Cabo Verde populações periféricas isoladas a viver em situação de extrema vulnerabilidade. É preciso não esquecer que nas duas últimas décadas Cabo Verde recebeu ajudas avultadas da parte de governos estrangeiros, ditos parceiros de desenvolvimento, à cabeça o americano, nomeadamente os recentes Millenium Challenge  Accounts, os dois maiores pacotes financeiros jamais concedidos por um país amigo. Foram quase meio bilião de dólares consumidos praticamente na ilha de Santiago, sem contar com as ajudas de montante similar recebidas da União Europeia, que seguem todos invariavelmente o mesmo destino. E nesta contabilidade dá-se de barato o conjunto de investimentos que a ditadura do PAIGC/CV realizou na mesma ilha, cujo objectivo justicialista seria ressarci-la do alegado atraso a que fora sujeito durante o colonialismo. Só que estas políticas, mesmo que tivessem real fundamento político, a sua eficácia social e economica é duvidosas, para além de já durarem tempo demais, mais de 40 anos e sem fim à vista. Apesar disso, os problemas da ilha de Santiago e da capital aumentaram exponencialmente com o crescimento desordenado daí resultante, o que obriga a atirar cada vez mais recursos para o que se tornou um permanente buraco sem fundo, que se escava cada dia mais, fruto da absurda concentração humana e financeira operada no mesmo lugar. Assim não surpreende o estado de abandono da periferia de Cabo Verde e a situação de decadência de S. Vicente, a que foi até à independência (malfadada pelas consequências catastróficas que teve para a ilha) o principal motor de Cabo Verde. 
É contra as políticas centralistas que se têm movido os regionalistas da Diáspora, contrariamente à maioria dos regionalistas residentes em Cabo Verde que parecem contentar-se com o mínimo, desde que se acorde uma regionalização minimalista ou fictícia que contemple a ilha de S. Vicente, independentemente do facto de se garantirem ou não a descentralização e as condições políticas e financeiras para levar a ilha à senda do progresso.
Deduz-se que para muitos, sobretudo os frouxos de ânimo e vontade, a regionalização poderá ser a moeda de troca perfeita para viabilizar o Estatuto Especial para a Praia. A partir do momento em que o governo concede esta “esmola” a S. Vicente, a luta para uma maior dignificação da ilha e do seu povo, deveria terminar e voltaríamos ao tradicional mutismo e demissão que caracterizam a vida social e política mindelense e cabo-verdiana, aceitando-se assim pacatamente a versão “soft” do centralismo e da discriminação que o governo do MpD parece intentar prosseguir com pezinhos de lã. Consideramos pois, que a única via para resover os problemas que a Capital Praia enfrenta é pela da Deconcentração humana, da Descentralização e da Regionalização.

  Sobre a Regionalização Eduardo Monteiro é peremptório, “Santiago de há muito foi regionalizada em duas regiões, Norte e Sul, e também com a criação de vários municípios, tudo no intuito de engordar a mesma criatura centralizando os recursos na mesma ilha, hoje designada Republica de Santiago, enquanto que as restantes, nomeadamente S.Vicente, vão-se minguando, empobrecendo cada vez mais. Se a regionalização for aprovada, mesmo servindo como a moeda de troca, já será uma vitória?” . Tendo em conta que a regionalização pode atribuir duas regiões à ilha de Santiago, Norte e Sul, o que parece não ser contestado pelos regionalistas, seria razoável o governo integrar a problemática do tal estatuto no quadro da reforma em vista. A ética política mandaria mesmo deixar cair o projecto de estatuto especial para a Praia, fosse qual fosse. 
Consideramos pois inaceitável, a falácia de pretender resolver os problemas da Praia e Santiago, que eles próprios criaram, atirando mais dinheiros e benefícios especiais à câmara municipal.
Os municípios dessa ilha dum modo geral têm vindo a ser mais privilegiados do que outros pelos governos centrais, e alguns deles até com pouca relevância no panorama autárquico.  Porém, com este Estatuto Especial pretende-se agora formalizar no papel um autêntico esbulho aos cabo-verdianos de todas as ilhas, canalizando uma percentagem permanente dos seus impostos para pagar o que não passa de uma mordomia.
Convém notar que a nossa posição em relação à proposta de estatuto especial é coerente com as posições que vimos tomando baseadas em princípios de sustentabilidade, não só determinados pelo vector económico como também ético e moral, sobre a forma de governar um arquipélago insustentável e no limite da viabilidade, como é Cabo Verde. É assim que fomos contra o projecto megalómano de transformar a cidade na Praia numa Cidade Administrativa, um Manhattan cabo-verdiano (uma dádiva bilionária que iria endividar o país por várias décadas, e que felizmente a crise internacional travou). É a mesma coerência que nos guia quando reclamámos maior sinergia económica entre várias ilhas de modo a melhor gerir os parcos recursos de que dispõe Cabo Verde. Opomo-nos ao centralismo cultural e linguístico  morte anunciada das 9 versões de crioulo e da língua portuguesa em Cabo Verde), uma ameaça permanente à diversidade cultural e linguística cabo-verdiana. 
Com os argumentos apresentados em defesa deste estatuto, pode-se concluir que, afinal, o povo deste pobre arquipélago de Cabo Verde teria um compromisso financeiro com o regime (aparentemente deu um cheque em branco aos partidos aquando do seu voto), que consistiria em investir na resolução dos problemas engendrados pelo caos humano e urbano criados pelo próprio centralismo na capital, em 41 anos de independência. Esta prensão é tanto mais injusta quando sabe-se que todos vão pagar, e quem  beneficiará no fundo, será a mesma elite cada vez mais bulímica e pretensiosa. Uma solução mais absurda e paradoxal para um problema criado não pode existir!!

A política de impor valores de cariz étnico-cultural a todo o país, de conceder arbitrariamente estatutos especiais e de direccionar mais regalias e a fatia do leão dos recursos sempre para uma mesma a ilha, a de Santiago, tarde ou cedo vai instigar o debate nacional sobre a necessidade de uma federalização de Cabo Verde, como única hipótese que restará para a reposição da igualdade de direitos e oportunidades com que as populações das nove ilhas sonharam aquando da independência.
23 de Dezembro de 2016
José Fortes Lopes


Sem comentários:

Enviar um comentário