Jonas Wahnon 1957 (artigo re-publicado em Junho de 2016))
..."Uma carta de Jonas Wahnon, um importante
comerciante da praça mindelense (proprietário da célebre padaria que ficava na
Chã de Cemitério em S. Vicente) datada de 60 anos, ao seu amigo Bento Levy um importante advogado e político, natural da Praia-Santiago, e
influente deputado de Cabo Verde na então Assembleia Nacional em Lisboa, em
pleno regime de Estado Novo. Ambas as figuras de destaque foram homenageadas
nos Blogues ArrozCatum e Praia de Bote.
Sob este titulo, vem publicado no nº 93 do "Cabo Verde” um extenso artigo da autoria do Exmo. Sr . Dr. Bento Levy, no qual, entre vários assuntos, este s r. não só insinua que existe da parte dos habitantes de S. Vicente uma grande rivalidade com a Praia, senão também que, pessoas responsáveis, devido à paixão que as move, teriam tentado ou vão tentar a mudança da Capital da província para S. Vicente.
Sob este titulo, vem publicado no nº 93 do "Cabo Verde” um extenso artigo da autoria do Exmo. Sr . Dr. Bento Levy, no qual, entre vários assuntos, este s r. não só insinua que existe da parte dos habitantes de S. Vicente uma grande rivalidade com a Praia, senão também que, pessoas responsáveis, devido à paixão que as move, teriam tentado ou vão tentar a mudança da Capital da província para S. Vicente.
O sr. Dr. Bento Levy atirou pois,
a luva sobre duas questões, uma das
quais, a transferência bastante oportuna e pede que “responda quem tiver... resposta” . -. . . .
Pela parte que me toca, aceito o
repto, esperando que outros se me seguirão breve na resposta que também tiveram,
por haver chegado o momento de S.Vicente acordar e sacudir de si os parasitas que
vêm impedindo o seu progresso e o progresso desta Província, não obstante o
carinho que lhes vem dispensando o Governo da Nação.
0 sr. Dr. Bento Levy é uma
criatura que merece maior consideração, e por isso me repugna acreditar que,
intencionalmente, tenha querido desvirtuar os factos, pretendendo criar um
problema – o da rivalidade com a Praia,
que jamais existiu no espírito dos habitantes
de S. Vicente –, apenas com o propósito deliberado de estabeIecer confusão e
colocar os incautos em posição perante o estudo dos problemas que enfrenta Cabo
Verde.
E o sr. Dr. Bento Levy se desse ao
trabalho de estabelecer paralelo entre as duas cidades, Praia e S.Vicente, logo
veria o erro que labora, pois nunca S.Vicente poderia alimentar qualquer
rivalidade com a Praia. O inverso é que seria admissível. Senão, vejamos:
S.Vicente como é de todos sabido –
e o sr. Dr. Bento Levy o ignora, contribui
para o erário com cerca de 75% das receitas totais da Provincia de Cabo Verde.
Isto quer dizer, sem a mais leve contestacão, que S.Vicente é que alimenta a
quase totalidade da máquina administrativa
do arquipélago, inclusivamente a da Praia,
não obstante ser a ilha de S.Tiago o seu maior centro populacional, mas também,
diga-se de passagem o maior centro de pessoas analfabetas.
S.Vicente é a única ilha desta Província
pela qual passam diariamente, sem interrupção, muitas dezenas, senão centenas
de estrangeiros e nacionais ou sejam os passageiros e os tripulantes dos inúmeros
vapores de todo o mundo que escalam o seu porto.
S.Vicente é a
única ilha visitada pelos mais altos vultos políticos nacionais e estrangeiros,
como sejam Presidentes de Repúblicas, Reis, Príncipes, Ministros, Embaixadores,
e t c . ,
Bem como jornalistas de todas as
nacionalidades, professores, cientistas, turistas, possivelmente, até
observadores, salvo as duas vezes em que Sua Exª Presidente da nossa República
bem como a sua comitiva também visitara a Praia.
S.Vicente é a única ilha do arquipélago
visitada frequentemente pelos maiores e mais importantes navios de guerra de todo
o mundo, que transportam os mais destacados oficiais (almirantes, comodores,
etc.).
S. Vicente é a única ilha de Cabo
Verde que possui instalações para o abastecimento de combustíveis à navegação, bem
como Instalações de cabo-submarino que a
ligam e ligam Cabo Verde a todas as partes do mundo e cujos valores se poderão
calcular em centenas de milhares de contos.
S. Vicente é a única ilha do
arquiplago que se encontra em permanente contacto com o exterior, através dos
navios paquetes outros vapores que escalam diariamente o seu porto.
S. Vicente é a única ilha que possui
valor militar, pela sua situação geográfica e pelos valores materiais avultadíssimos
que nela se contêm.
Em S. Vicente, por isso, é que se encontram instalados o
Comando Militar de Cabo Verde e a maioir concentração de forças militares e
aquartelamentos da Província.
Em S.Vicente é que se encontram instalados os consulados
de quási todas as nações.
En S.Vicente é que, devido à sua irrefutável
importância, o governo da nação vem investindo dezenas de milhares de contos na construção de um cais acostável; e finalmente
S. Vicente é a única ilha do
arquipélago à qual todos – nacionais e estrangeiros – se referem quando tenham de
mencionar a terra portuguesa do Atlântico qua liga a Europa às Américas ou
quando se tenha que referir o elo que liga Brazil a Portugal.
0 sr.
Dr. Bento Levy talvez tivesse tomado
como rivalidade ou paixão de S. Vicente para com a Praia, o facto de todos lamentarem que se esteja ultimamente desenvolvendo
a cidade da Praia com inúmeras construções urbanas de preço elevadíssimo
(milhares de contos) sem olhar a pobreza do meio e com manifesto desprezo pelas
necessidades mais prementes das outras ilhas; nomeadamente S.Vicente, que pouco ou nada vê dos 75% das
receitas totais da Província com que contribui anualmente para equilibrar o
orçamento.
Talvez tivesse tomado como
rivalidade, o facto de se lhe haver referido durante a sua estadia em que a
todos agradaria aqui, ver a ilha de Santiago devidamente apetrechada com boas
estradas, bons portos, celeiros, etc, em lugar dessas obras de fachada que já
se construíram ou se vêm construindo na Praia em ritmo acelerado, obras sem significado
algum para o fomento dessa ilha nem da Província, antes constituindo verdadeiro
peso morto na sua economia, para único gáudio dos habitantes dessa cidade, que
são, praticamente, as únicas pessoas que as vêem, pois estranhos, só se foram os tripulantes
de dois pequenos vapores da Cuf que escalam mensalmente o porto.
Talvez ainda
tivesse o Dr. Bento Levy tomado como rivalidade, o facto de havermos enumerado
as referidas obras, as quais são mais ou menos constituídas pelos seguintes:
Um palácio da Saga, um grandioso
palácio de Justiça (que só retretes dizem possuir 18), um grandiosíssimo Liceu
para a instalação da delegacia do Liceu Gil Eanes instituída ultimamente na
Praia (consta que com vista à transferência da Sede que se encontra instalada
em S. Vicente), um cineteatro, prédio para magistrados, inúmeros prédios para
outros funcionários, blocos de casas para particulares, etc, além de varios
automóveis distribuidos a quási todos os
chefes de serviços, como se coubesse ao Estado construir de novo uma cidade,
onde os particulares pouco ou nada vêm fazendo para o seu desenvolvimento como
se esta Província andasse a nadar em dinheiro e já não houvesse mais nada que
fazer para o fomento das ilhas.
Pelo que, pois, se vê, o sr. Dr.
Levy ou está enganado ou quer enganar os outros. Não existe, nunca existiu nem
podia mesmo existir rivalidade de S.Vicente com a Praia, uma pequena cidade composta
apenas por quatro pequenas ruas e cujo mérito é ter a capital da Província, porque nem como
escoadouro natural dos produtos produzidos pela ilha de S.Tiago serve.
O que existe realmente – e sabe o
sr. Dr. Bento Levy perfeitamente – é o desejo sincero de toda a gente, que haja
uma aplicação mais útil e de melhor alcance económico dos dinheiros da Província
para o bem-estar do seu povo e orgulho de Portugal; o que existe ainda é o
desejo de que os indivíduos que se encontram à testa dos serviços públicos na
Praia tenham uma influência mais benéfica na administração da Província em
lugar de pretenderem, por norma “colonialisar"
S. Vicente negando-lhe sistematicamente todos os meios de progresso, sem
quererem lembrar-se de que, se um dia faltassem à Província as receitas desta
ilha, toda a máquina administrativa do arquipélago se desmantelaria.
Os referidos funcionários não se
dão conta de quanto maior fôr o desenvolvimento de S.Vicente, maiores serão as
suas receitas que irão influir em beneficio de S. Tiago como das demais ilhas
suas irmãs.
Ao contrário do que acontece na
Praia, onde as construções urbanas se vêm fazendo (pelo Estado, é claro, da
forma mais acelerada que imaginar se possa, S.Vicente possui um pequeníssimo
Tribunal numa casa quási secular que
dantes era habitação particular e que não é património do Estado; O Liceu não
obstante fundado há 40 anos, funciona
num prédio que foi, sucessivamente quartel, correio, Liceu, Câmara, Fazenda e
não sei que mais; não possui nenhum prédio para magistrados nem outros
funcionários: os cineteatros que existem são particulares, como particulares
são quási todas as obras de valorização
da cidade; não tem um só hotel; não tem esgoto; não tem água canalizada; a luz
é precária; os pavimentos das ruas são uma miséria, não possue estradas dignas deste
nome, e os caminhos carroçáveis que existem
aIguns encontram-se há anos intransitáveis, etc. etc.
A burocracia da Praia não quer
compreender que sendo S.Vicente a sala de visitas da Província de Cabo Verde, a
qual, por força, manifesta perante estranhos tudo quanto de bom ou de Mal pratica
a nossa administração pública, tem, necessariamente, de merecer mais e melhores
cuidados, sobretudo para evitar que observadores mal intencionados, nesta época
conturbada do mundo se tenham de referir às Provincias ultramarinas de Portugal
pelo que veêm nesta ilha, aquilatandos-as todas por igual.
Quanta à mudança da capital da
Provincia de para S. Vicente, pensa-se nisso efectivamente e oportunamente se
apresentarão respectivas razões aos poderes Centrais na Metrópole para resolverem
como fôr mais conveniente. Mas pensa-se
nisso não por rivalidade com a Praia nem por paixão como insinua o sr. Dr.
Bento Levy no seu infelicíssimo artigo. Pensa-se por estar dentro da sua boa
lógica, está dentro da sua boa razão e porque a Capital, a continuar na cidade
da Praia como até aqui, apenas contribuirá como tem sempre contribuído com o
exclusivismo desta cidade, para a estagnação da Província e o retrocesso de sua
maior fonte de receita.
S. Vicente, o que não admite
dúvidas, é a ilha economicamente mais importante da Província de Cabo Verde, a que possui maiores valores materiais e
culturais, a que se encontra em permanente contacto com estrangeiros e com a
metrópole através do magnífico e afamado porto, e é onde as necessidades
burocráticas, digam o que disserem, mais se fazem sentir, e a permanência do governador
mais seria de desejar.
A Praia fica-lhe distante,
separada por mar 160 milhas, sendo tão escassas as suas comunicações que ainda
há pouco tempo era muito mais fácil a comunicação de S. Vicente com a Metrópole
ou com o Japão do que com ela.
Além disso, o intercâmbio
comercial com as outras ilhas de Sotavento, nomeadamente o Fogo e a Brava, é
muito maior com S. Vicente, que todos preferem, pois o comércio com S. Vicente
é muito mais vasto, os seus preços são mais acessiveis, existem mais
facilidades de crédito, etc.
Assim, nada justifica que a Capital da
Província se mantenha Praia. Não há duas
opiniões a este respeito salvo a do sr. Dr. Sento Levy. Isto não é ter
rivalidade com a Praia nem com os habitantes de S. Tiago. Tão pouco se encontra
o remédio no maior intercâmbio entre as populações das duas ilhas, o que de
nada valeria com o de nada tem valido, sabido que a deslocação de S. Vicente
até Praia tem sido mais frequente do que imagina o sr. Dr. Bento Levy.
Afirmar o contrário será pelo
gosto apenas de estabelecer um ambiente de permanente desconfiança entre todos,
o que, agora, conforme declara o sr. Dr. Bento Levy no seu artigo, poderá, efectivamente,
“gerar incompreensão e provocar até ressentimentos”.
É o que se me oferece dizer por
enquanto, a bem de Cabo Verde e da Nação a que me honro e orgulho de pertencer.
S.
Vicente 5 de Julho de 1957
Jonas
Wahnon
S.
Vicente
Cabo Verde
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