A SITUAÇÃO E
O ESTATUTO DOS CRIOULOS EM CABO VERDE
José Fortes Lopes
O debate sobre o Crioulo tem sido
uma constante nos últimos 50 anos, desde o tempo da administração portuguesa,
passando pelo regime de partido único, até se chegar à actual democracia
pluripartidária. Neste momento em que a Regionalização está na agenda nacional,
faz todo o sentido trazer à colação a problemática do Crioulo, quiçá
incluindo-a no mesmo pacote, como elemento indissociável daquela reforma do
Estado em vista. Anteriormente, durante o regime colonial, esse debate era
passível de arrostar sempre uma certa carga ideológica, causando
constrangimento se não político pelo menos ao nível de possíveis ressonâncias
culturais indesejáveis para o poder então vigente. De facto, por hipótese
alguma se daria aval à projecção de uma língua que concorresse com a língua
oficial e de Estado. O resgate do Crioulo para a luz da ribalta, no
pós-independência, em clima festivo de total liberdade de expressão e
pensamento e de extravasamento efusivo de tudo o que era recalcado, aparece
associado à visão de um Crioulo como instrumento de libertação.
Todavia, é com o advento da democracia que
o debate sobre a língua toma um cariz mais técnico, com o pressuposto da
necessidade de compreender e estudar a sua génese, desde logo associando-a
àquilo que os sucessivos regimes consideram essência da nação cabo-verdiana. E
é então que se prevêem dispositivos institucionais para a sua protecção, dentro
de um sistema bilingue, onde o Português ficou, no entanto, definido como a
língua de comunicação oficial, possivelmente até ulteriores etapas para a
consagração plena da chamada “língua materna”, numa situação de bilinguismo
assumido, onde o papel da língua portuguesa, por questões práticas, não poderia
nem deveria ser posto em causa. Porém, nos últimos 10 anos, sob a batuta do
PAICV, ressurge o debate sobre o Crioulo numa perspectiva marcadamente
ideológica, desta vez sob uma bandeira identitária santiaguense, com o Crioulo
a ser apresentado como um instrumento de libertação de um “povo dominado
linguisticamente”. Tese surrealista muito cara ao que resta de uma certa elite
maniqueísta cabo-verdiana saída do esquerdismo do 25 de Abril, bem como a
certos sectores ligados ao actual poder e ainda muito presos a algum
radicalismo mental, para quem uma ruptura total com a considerada “língua de
domínio colonial” seria uma maneira de enterrar traumas ainda não resolvidos,
ainda que usando um discurso ambivalente ou ambíguo para ocultar o seu
verdadeiro íntimo.
Se a instauração de um processo de estudo
dos Crioulos de Cabo Vede parece louvável, já a oficialização prematura e
apressada do Crioulo aparece, todavia, mais como um “coup de force”desses
grupos Fundamentalistas, como Onésimo Silveira os caracteriza, apoiados e
financiados pelo Governo, apanhando de surpresa muitos cabo-verdianos que
andavam mergulhados no sono da sua apatia e demissão cívica. Talvez porque
ninguém imaginasse semelhante ousadia, súbito despontou nos espíritos uma
apreensão generalizada sobre as consequências de uma aventura que pode ser
desastrosa por significar o fecho umbilical linguístico de Cabo Verde, medida
por certo encarada como essencial para um utópico e irrealista retorno às
“origens”, isto na perspectiva dos Fundamentalistas, o que só pode acarretar um
retrocesso do país face aos padrões culturais a que se moldara. O regime, para
satisfazer a sua base de sustentação sociológica ou mesmo étnica, e em
coerência com uma matriz ideológica que remonta aos tempos da luta de
libertação, onde o sonho e a utopia não tinham limites, lançaria assim o país numa
perigosa aventura, mediante uma precipitada adopção do uso do Crioulo como
futura ferramenta de trabalho, ao mesmo tempo que desincentivando o uso
corrente do Português, relegando-o para o plano de uma mera língua estrangeira,
numa altura em que não existem condições para que tal ocorra.
Aquilo que
devia representar um lento e gradual processo de maturação e experimentação, ao
longo de décadas, lustres ou mesmo séculos, envolvendo investigação e estudo
académicos sérios, com investigadores experimentados e a elaboração de estudos
e análise de cenários prováveis, que poderiam apontar inclusivamente para a sua
ineficácia, aparece apressadamente como um processo acabado, um prato pronto a
ser servido friamente a Cabo Verde e aos cabo-verdianos. Nunca se vira tanta
ligeireza em Cabo Verde, quando, numa questão de semelhante delicadeza, seria
de esperar muita cautela e bom senso, a “sagesse” e, necessariamente, o
diálogo. E isto quando Cabo Verde continua bastante vulnerável e confrontado
com questões inerentes à sua viabilidade: o país não tem recursos, está ainda
totalmente dependente da ajuda externa financeira da comunidade internacional
para a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento, incluindo a garantia dos
instrumentos básicos para a afirmação da sua soberania. Sendo inquestionável a
intenção que subjaz à defesa e dignificação do Crioulo, o processo da sua
oficialização poderá obviamente ser aprovado em sede democrática, mercê de uma
maioria unicamente de base numérica, mas nunca o será com a legitimidade que só
pode ser conferida por um escrutínio alargado, qualificado e diversificado,
como impõe uma questão de tamanha delicadeza e importância para o futuro do
país. Mas claro que não foi assim nem parece haver preocupação de agir de outra
maneira. Primeiro, tentou-se iludir os cabo-verdianos com o anúncio de que
oficialização da versão, dita, badia do Crioulo, estava apenas circunscrita à
chamada “República de Santiago”, como símbolo de uma assumida identificação
sociológica e cultural com o que se considera a “origem”. Tal atitude confunde
abusivamente as pessoas, que “naivement” tenderiam a convencer-se de que se
está oficializando os “Crioulos”, como denuncia com toda a razão Onésimo
Silveira nos seus recentes artigos. Mas como pedir bom senso num país em que a
corrida desenfreada ao “progresso e desenvolvimento” induzido de fora e assente
na assistência internacional, não dá tempo para pensar em todas ou diferentes
opções sobre importantes matérias de interesse nacional? Com efeito, esta
marcha forçada e apressada é intencional para que as pessoas não reflictam nas
suas sérias implicações, pois o que se pretende é recriar o paradigma do
Estado-Nação, Unitário e Homogéneo, típico do século XX, mediante a fusão
genética num único povo, o cabo-verdiano idealizado, injectando-lhe a fusão
linguística dos Crioulos numa Língua Unitária, a língua cabo-verdiana
idealizada e utópica, e com uma Administração Política e Económica Unitária e
Centralizada na Praia (configurando assim o ideal do Estado, napoleónico,
jacobino, centralista e burocrático). Compreende-se esta atitude como sendo a
tendência normal dos Estados em processo iniciático de consolidação, mas, como
diz o ditado, não se podem fazer omeletes sem se quebrarem ovos. Porém, o
busílis da questão reside na circunstância concreta de nem todos os ovos serem
propriedade do cozinheiro-mor, pois não é possível iludir o carácter
arquipelágico e regionalista de Cabo Verde, sendo de todo impossível fazer
desaparecer os Crioulos e a ‘biodiversidade’, no sentido lato, do país.
Relativamente a este aspecto, Onésimo vem lembrar ‘Aqui D’el Rei’ que no
Arquipélago de Cabo Verde existem formalmente Crioulos e não um Crioulo como
pretendem. Nenhum teórico, por mais brilhante que seja, pode convencer alguém
do contrário. Nesta situação, é legítimo que se reinstaure um debate sobre os
Crioulos de Cabo Verde. E não adianta lançar acusações de antipatriotismo e de
inimigo do Crioulo aos que propugnam pela racionalidade da solução do problema.
Um confronto levado a este extremo fica completamente poluído por emoções
nocivas. E aí reside precisamente o grande pomo de discórdia que tem assombrado
uma discussão que só pode pautar-se por clarividência e serenidade. E o governo
em vez de serenar os ânimos, suspendendo o processo, acrescenta ainda mais
confusão com os diversos anúncios que vem lançando em matéria de Oficialização
do Crioulo.
No seu último artigo, Onésimo Silveira
refere-se ao debate sobre os Crioulos: “Para eles, não há ilhas, mas sim uma
ilha-continente; não há sociedades cabo-verdianas, mas sim a sociedade da sua
ilha; não há Crioulos, mas sim um Crioulo, o seu, que a “língua materna” tem de
impor às ilhas periféricas.” O mesmo autor adverte os chamados Fundamentalistas
para o erro de olhar para a democracia como exclusivamente legitimada pela
aritmética eleitoral, esquecendo que ela pode vir a ganhar os mesmos germes de
permissividade e violência psicológica de um regime de ditadura. Mas neste
preciso domínio nos encontramos felizmente resguardados pelo constitucionalismo
democrático que garante um sistema eficaz de freios à acção do governo.
Infelizmente, Cabo Verde continua a ser um campo de experimentação de uma certa
esquerda sonhadora, nomeadamente no campo da cultura, que se converteu na
chamada “gauche caviar”, que, no entanto, quando lida com o poder e o dinheiro
se revela de um pragmatismo a raiar a hipocrisia e a negação dos valores e
princípios por que devia propugnar. É esse mesmo sector da nossa sociedade que,
mandando às urtigas os seus engulhos e complexos mal resolvidos, não abdica de
cultivar o Português erudito e de tentar obter nacionalidade portuguesa. Onde
está a coerência? A advertência de Onésimo vem mesmo a propósito, colocando os
pontos nos ‘is’: Em cada ilha deste arquipélago existe uma realidade concreta e
objectiva: pessoas de carne e osso, não meros eleitores, falando
quotidianamente os seus Crioulos, não havendo lugar para um Crioulo Oficial,
Imaginário e Utópico. Nenhuma medida política ou administrativa pode redesenhar
esta realidade.
Mas num país onde o amadorismo floresce e
ganha terreno cada dia (ver o debate que tem ocorrido na sociedade civil sobre
proliferação de universidades e escolas sem conteúdo, projectos
insustentáveis), é fácil revender banha da cobra e requentar várias vezes
pratos pré-cozinhados. Acostumados a comer gato por lebre, ou a pôr óculos
verdes às cabras para poderem comer pedra, muitos cabo-verdianos rejubilam-se
na unanimidade do discurso politicamente correcto sobre o Crioulo libertador,
sem se perspectivar os problemas decorrentes de uma oficialização precipitada
do Crioulo e da eliminação do Português do quotidiano cabo-verdiano e a enorme
ratoeira em que o resto de Cabo Verde se mete. Nunca se debateu nem se
apresentou os prós e os contras, os riscos desta opção, numa sociedade onde o
debate de ideias e discussões públicas sobre o futuro de Cabo Verde são
incipientes ou inexistentes. O Governo ainda não explicou como vai resolver a
problemática dos Crioulos, deixando tudo para improvisação e a batata quente
para outros, pois alguém terá de, consciente e responsavelmente, escolher uma
das três soluções. Ou se tende para Crioulo-Esperanto, fusão artificial e
utópica de todos os Crioulos, fazendo desaparecer as outras versões do Crioulo;
ou se oficializa todos os Crioulos de uma vez e em todas as ilhas, o que
corresponde a uma situação insustentável, típica de Torre de Babel; ou se
oficializa simplesmente o badio, como via experimental para o Crioulo padrão a
oficializar (é sabido de antemão que oficiosamente o governo vem experimentando
a implementação do badio como Crioulo oficial, apesar de pretenderem o
contrário. Os sinais exteriores denunciam essa atitude dúbia). As três soluções
sobre a mesa são, portanto, e a priori, inviáveis ou inaceitáveis. (A
problemática da língua portuguesa, outro assunto bicudo, será discutida na 2ª
Parte deste artigo).
O primeiro risco da
oficialização do Crioulo-badio tem a ver com o reforço do efeito centrípeto
desta medida, com incidências inevitáveis no centralismo, desta feita em termos
linguísticos. Mas pergunta-se se o mindelense ou o santantonense abandonarão os
seus Crioulos para abraçarem o badio ou o Crioulo-Esperanto? É bom que os
governos, e quaisquer que eles sejam, tenham em atenção a gravidade que reveste
a deliberada e programada extinção do património linguístico e cultural das
ilhas do arquipélago, com a imposição de um Crioulo eleito como padrão e a
tentativa de extinção, não natural, das outras versões. Para além de ilegítima,
seria um atentado à diversidade cultural cabo-verdiana. É bom que saibam que
podem ter de responder tanto perante os cabo-verdianos como perante a
comunidade internacional. (Continua: A Situação e o Estatuto da Língua
Portuguesa em Cabo Verde: A REGIONALIZAÇÃO E O DEBATE SOBRE O CRIOULO)
14/09/2012
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