O PORTUGUÊS VAI SER
ENSINADO EM CABO VERDE COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA?
Adriano Miranda Lima
É o que recentemente veio a público sobre
as intenções da ministra da educação do país. Conforme explicações dadas, o
objectivo não é erradicar a língua de Camões da vida cabo-verdiana, sequer
relegá-la para plano secundário, mas sim elevar a sua aprendizagem para
patamares superiores e condizentes com os interesses do país. Veremos o que aí
virá.
Antes de mais, refira-se que este assunto
tem feito correr tinta na imprensa dos PALOPs e, reconheça-se, com carradas de
razão. O efeito é de uma bomba. É que o regime de Salazar sempre propagandeara
que os cabo-verdianos formavam a população mais escolarizada, mais culta e mais
evoluída dos territórios africanos sob domínio português. Não foi por acaso que
os cabo-verdianos secundaram os portugueses na ocupação de cargos de
administração colonial por todo o lado, quando não os substituíram em escala apreciável
em territórios como a Guiné. Assim sendo, algum fundamento teria de ter a
convicção de Salazar, pois os factos não mentem. No entanto, seria enganosa a
extrapolação sobre as virtudes cabo-verdianas, não fosse algo restrita, e por isso
selectiva, a faixa da população do território que frequentava o ensino
secundário e se oferecia como mostruário ao antigo ditador.
Mas é indesmentível que a percentagem de
sucesso antigamente conseguido no ensino, com reflexo na aprendizagem da língua
portuguesa, não tinha qualquer semelhança com a actual situação que hoje nos
preocupa. Segundo as estatísticas, actualmente apenas 44% dos estudantes concluem
o 12º ano em tempo normal, apontando-se como principal causa do insucesso o fraco
domínio da língua portuguesa, pela sua conectividade com o ensino das restantes
matérias curriculares. Em contrapartida, não existe qualquer memória de semelhante
desnorte nos tempos anteriores à independência nacional. A maioria dos
estudantes terminava então o liceu com razoável nível de sucesso escolar, uns
quedando-se pelo antigo 5º ano, que englobava a maior percentagem do
contingente liceal em tempos mais recuados, e outros completando o antigo 7º
ano. É lícito considerar que os níveis de sucesso escolar em Cabo Verde eram
semelhantes aos da antiga Metrópole, e se outro testemunho não atestasse a sua
veracidade, bastaria referir que era inimaginável os nossos candidatos ao
ensino superior serem previamente sujeitos a testes de aferição do desempenho
linguístico. Contudo, a população estudantil neste nível de ensino era
incomparavelmente inferior à da actualidade, em que a escola pública é
obrigatória, socializando-se, mas certamente com o ónus de não se curar dos
factores sociais que ocasionam situações de autêntica exclusão voluntária. É
que muitos alunos de famílias desprotegidas ou desestruturadas vão à escola com
pouca ou nenhuma vontade ou motivação para aprender. E assim é fatal que
contribuam grandemente para a percentagem de insucesso escolar e integrem
seguramente os casos mais flagrantes de fracasso no domínio da língua
portuguesa.
Perante este cenário, é irrecusável
questionar o que mudou substancialmente em Cabo Verde e vem contribuindo, nos
últimos quarenta anos, para a acentuada quebra do nível de proficiência na
língua portuguesa. E, concomitantemente, analisar se a medida ora tencionada
pelo Governo de Cabo Verde – passar a ensinar o português como “língua segunda”
– oferece garantias mínimas de inverter, ou no mínimo melhorar, a situação.
Relativamente à primeira
questão.
O jornal Expresso da Ilhas de 14 de Dezembro
escreve, no seu Editorial: “O esforço oficialmente desenvolvido de
“reafricanização dos espíritos” retirou aos cabo-verdianos a tranquilidade
quanto à sua posição no mundo que a geração da Claridade já tinha estabelecido.
Oitenta anos depois é evidente que estavam certos.” Ora, eis uma veemente
denúncia que não pode deixar de ser analisada. Essa “ reafricanização dos
espíritos” foi o ponto forte da política cultural promovida a seguir à
independência, com o objectivo de arrumar com a velha questão da identidade
cabo-verdiana, sem pejo de conflituar com a visão acertada dos Claridosos, cada
vez mais consensual em Cabo Verde. Para o efeito, a via eleita para atingir
aquele desiderato era extirpar a língua portuguesa da memória genética dos
cabo-verdianos. Não o fazer de forma abrupta e denunciada, mas antes paulatina
e insidiosa, como um cancro que se insinua no organismo e lentamente evolui e o
destrói até ao colapso final. Começou-se por aceitar ou mesmo incentivar o uso
do crioulo nas escolas e na esfera pública do Estado. Até no Parlamento o
crioulo passou a disputar primazia com o português no debate político. O crioulo
ou uma espécie de língua que Ondina Ferreira designou como “Crioulês” em artigo
publicado no jornal Expresso das Ilhas em 10 de Maio de 2006. Ou seja, uma
língua em que a erudição do discurso exige necessariamente o recurso a
vocabulário e terminologia do português, resultando daí uma mistela linguística
em que só os elementos auxiliares da organização frásica e sintáctica, quando
os há, pertencem propriamente ao crioulo. Enfim, uma perfeita aberração, um
insulto gratuito tanto ao crioulo como ao português mas que por si só revela a
condição servil do crioulo e a sua incapacidade para se impor como língua
completa sem a muleta da língua mãe, o português.
Este foi o cenário de degradação
linguística que as autoridades públicas caucionaram nas escolas e em todo o
edifício do Estado. Não por via oficial mas encorajado por portas travessas e
com culposas omissões. Manuel Veiga, apoiado por alguns fervorosos discípulos,
foi o instigador intelectual do processo, o seu mentor e impulsionador, e agora,
perante os cacos da sua megalomania, nem sequer tem a humildade de reconhecer o
quadro de falência que hoje nos interpela e obriga o governo a um exercício de
plasticidade metodológica para tentar ao menos recuperar os antigos níveis de
competência linguística. Mas a verdade é que a corrosão sociopsicológica,
operada por incursão política, e perpetrada pelos “reafricanizadores”, produziu
efeito, submetendo a língua portuguesa a tratos de polé de que saiu completamente
de rastos. Bastaram poucas décadas para destruir aquilo que ao longo de séculos
foi possível conservar no subconsciente dos cabo-verdianos – a presença da
língua portuguesa raiando nas sombras do crioulo – assim permitindo que o nosso
sistema de ensino funcionasse com aceitável nível de eficácia em situação
bilingue.
Relativamente à segunda
questão
Uma grande incógnita me assalta o
espírito. Como melhorar a aprendizagem de uma língua baixando-lhe o estatuto privilegiado
que sempre ostentou, no pressuposto de que o segredo reside exactamente na
incongruência do acto? De facto, a ministra da educação propõe-se um desafio
que à primeira vez me parece tão surreal como surpreendente. Fá-lo com boa
intenção, consciente do valor e da importância que a língua portuguesa
representa para o futuro do país e dos cabo-verdianos. E com determinação e
vontade parece querer agir destoando do seu antecessor no cargo, António
Correia e Silva, que, enquanto esteve à frente da pasta, não tirou qualquer
consequência prática destes fragmentos do seu pensamento tardio vertidos em
texto publicado no jornal A Nação de 23 de Junho do corrente: “só sendo
bem-sucedida no ensino da língua portuguesa a escola pública será inclusiva,
deixando de ser reprodutora de desigualdades”; e ainda: “um português acessível
a todos é a via de emancipação”.1
Sem dúvida que estas palavras lapidares
configuram uma clara rejeição do projecto do Manuel Veiga e seu ALUPEC, pelo
que desde já elas deviam coagir o seu partido a uma reflexão interna com vista
a reconhecer-se que a causa principal do nosso imbróglio linguístico é indubitavelmente
de natureza política. Nasceu de uma enviesada interpretação política da
realidade identitária do povo das ilhas, quando apenas o viés histórico e
antropo-sociológico estava autorizado a ter a palavra em semelhante matéria.
Sendo a causa do mal de natureza política, o remédio para a cura tem de ser forçosamente
da mesma natureza, e isso passa por mandar arquivar no armário da história o
ALUPEC e o apetrecho teórico que o alimenta, quanto muito catalogando-os como
matéria de estudo para um qualquer laboratório linguístico. Preste-se ao menos
essa honra ao autor do ALUPEC! Suprimido o que foi causa de estéril polémica
generalizada, susceptível de atentar contra a coesão nacional e a união de
forças anímicas em torno do essencial dos nossos problemas (a busca da nossa sobrevivência
económica), restará esperar para saber o que de concreto e fiável haverá nos
propósitos da ministra da educação, tão certa parece ela estar das virtudes do
que congemina, mesmo que nos pareça inverosímil pretender solucionar por via
administrativa um problema que nasceu de uma espúria motivação política e que,
por isso mesmo, só pode ser atacado com um antídoto da mesma estirpe.
Sim, perdoará o meu pessimismo quem
entende que o problema é passível de resolução sem ir às raízes do mal. E é
assim que, dando o benefício da dúvida, ficam estas perguntas elementares
dirigidas à puridade:
. Como
é possível melhorar o ensino/aprendizagem de uma língua despromovendo-a para a
condição de “língua segunda”, ou, sem eufemismos, língua estrangeira, quando
ela foi sempre língua do ensino e língua oficial? Como ter a certeza de que,
virando do avesso uma realidade, ela miraculosamente se metamorfoseia?
.
Irão ser adoptadas metodologias de ensino inovadoras, sem precedentes no nosso
ensino doméstico?
. Vai o português ser reforçado com carga
horária sem precedentes e em todos os graus de ensino?
. Vai
o crioulo voltar a ser banido ou silenciado dentro das salas de aula, como
antigamente, apostando-se, sim, na conversação obrigatória e exclusiva em
português, como forma de criar, ginasticar e fortalecer os automatismos mentais
necessários à apreensão e domínio dos segredos da língua lusa?
. Idêntica
medida será adoptada em tudo o que é serviço público e repartição do Estado,
com o exemplo a ser patenteado em primeira mão pelo Parlamento do país?
. Os programas da
televisão e da rádio vão voltar a ter comunicação exclusiva e predominante em
português, à excepção de alguns em que a sua natureza mais lúdica e recreativa
justifica o crioulo para uma melhor expressividade do ponto de vista das
tradições, das artes e do folclore? Haverá percepção por parte das autoridades públicas
de que aqueles meios são um poderoso instrumento didáctico para a aprendizagem
via oral de uma língua?
.
Vai ser introduzido um pacote de medidas especiais para a avaliação e revalorização
da proficiência linguística dos professores, a par da sua mais vincada consciencialização
sobre a importância da língua portuguesa para o país?
Repare-se que este acervo de questões
sintetiza tão só retomar atitudes e práticas de ordem pedagógica e social que
foram sendo sucessivamente banidas e derrogadas nas últimas décadas, limitando
consideravelmente as situações de convivência com o português. Significa, em
suma, reconhecer o erro crasso do projecto de Manuel Veiga e um regressar à
antiga política de ensino da língua portuguesa, enquanto importa clarificar e
solidificar no espírito dos cabo-verdianos a convicção de que “um português
acessível a todos é a via de emancipação”, conforme afirmou, e bem, o
ex-ministro da educação do anterior governo do PAICV, António Correia e Silva.
1 Excertos publicados no Expresso das Ilhas de 1 de Dezembro
Tomar, 17 de Dezembro
de 2016
Sem comentários:
Enviar um comentário