domingo, 18 de dezembro de 2016

O PORTUGUÊS VAI SER ENSINADO EM CABO VERDE COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA?

Adriano Miranda Lima

     É o que recentemente veio a público sobre as intenções da ministra da educação do país. Conforme explicações dadas, o objectivo não é erradicar a língua de Camões da vida cabo-verdiana, sequer relegá-la para plano secundário, mas sim elevar a sua aprendizagem para patamares superiores e condizentes com os interesses do país. Veremos o que aí virá.
     Antes de mais, refira-se que este assunto tem feito correr tinta na imprensa dos PALOPs e, reconheça-se, com carradas de razão. O efeito é de uma bomba. É que o regime de Salazar sempre propagandeara que os cabo-verdianos formavam a população mais escolarizada, mais culta e mais evoluída dos territórios africanos sob domínio português. Não foi por acaso que os cabo-verdianos secundaram os portugueses na ocupação de cargos de administração colonial por todo o lado, quando não os substituíram em escala apreciável em territórios como a Guiné. Assim sendo, algum fundamento teria de ter a convicção de Salazar, pois os factos não mentem. No entanto, seria enganosa a extrapolação sobre as virtudes cabo-verdianas, não fosse algo restrita, e por isso selectiva, a faixa da população do território que frequentava o ensino secundário e se oferecia como mostruário ao antigo ditador.
     Mas é indesmentível que a percentagem de sucesso antigamente conseguido no ensino, com reflexo na aprendizagem da língua portuguesa, não tinha qualquer semelhança com a actual situação que hoje nos preocupa. Segundo as estatísticas, actualmente apenas 44% dos estudantes concluem o 12º ano em tempo normal, apontando-se como principal causa do insucesso o fraco domínio da língua portuguesa, pela sua conectividade com o ensino das restantes matérias curriculares. Em contrapartida, não existe qualquer memória de semelhante desnorte nos tempos anteriores à independência nacional. A maioria dos estudantes terminava então o liceu com razoável nível de sucesso escolar, uns quedando-se pelo antigo 5º ano, que englobava a maior percentagem do contingente liceal em tempos mais recuados, e outros completando o antigo 7º ano. É lícito considerar que os níveis de sucesso escolar em Cabo Verde eram semelhantes aos da antiga Metrópole, e se outro testemunho não atestasse a sua veracidade, bastaria referir que era inimaginável os nossos candidatos ao ensino superior serem previamente sujeitos a testes de aferição do desempenho linguístico. Contudo, a população estudantil neste nível de ensino era incomparavelmente inferior à da actualidade, em que a escola pública é obrigatória, socializando-se, mas certamente com o ónus de não se curar dos factores sociais que ocasionam situações de autêntica exclusão voluntária. É que muitos alunos de famílias desprotegidas ou desestruturadas vão à escola com pouca ou nenhuma vontade ou motivação para aprender. E assim é fatal que contribuam grandemente para a percentagem de insucesso escolar e integrem seguramente os casos mais flagrantes de fracasso no domínio da língua portuguesa.
     Perante este cenário, é irrecusável questionar o que mudou substancialmente em Cabo Verde e vem contribuindo, nos últimos quarenta anos, para a acentuada quebra do nível de proficiência na língua portuguesa. E, concomitantemente, analisar se a medida ora tencionada pelo Governo de Cabo Verde – passar a ensinar o português como “língua segunda” – oferece garantias mínimas de inverter, ou no mínimo melhorar, a situação.
     Relativamente à primeira questão.
     O jornal Expresso da Ilhas de 14 de Dezembro escreve, no seu Editorial: “O esforço oficialmente desenvolvido de “reafricanização dos espíritos” retirou aos cabo-verdianos a tranquilidade quanto à sua posição no mundo que a geração da Claridade já tinha estabelecido. Oitenta anos depois é evidente que estavam certos.” Ora, eis uma veemente denúncia que não pode deixar de ser analisada. Essa “ reafricanização dos espíritos” foi o ponto forte da política cultural promovida a seguir à independência, com o objectivo de arrumar com a velha questão da identidade cabo-verdiana, sem pejo de conflituar com a visão acertada dos Claridosos, cada vez mais consensual em Cabo Verde. Para o efeito, a via eleita para atingir aquele desiderato era extirpar a língua portuguesa da memória genética dos cabo-verdianos. Não o fazer de forma abrupta e denunciada, mas antes paulatina e insidiosa, como um cancro que se insinua no organismo e lentamente evolui e o destrói até ao colapso final. Começou-se por aceitar ou mesmo incentivar o uso do crioulo nas escolas e na esfera pública do Estado. Até no Parlamento o crioulo passou a disputar primazia com o português no debate político. O crioulo ou uma espécie de língua que Ondina Ferreira designou como “Crioulês” em artigo publicado no jornal Expresso das Ilhas em 10 de Maio de 2006. Ou seja, uma língua em que a erudição do discurso exige necessariamente o recurso a vocabulário e terminologia do português, resultando daí uma mistela linguística em que só os elementos auxiliares da organização frásica e sintáctica, quando os há, pertencem propriamente ao crioulo. Enfim, uma perfeita aberração, um insulto gratuito tanto ao crioulo como ao português mas que por si só revela a condição servil do crioulo e a sua incapacidade para se impor como língua completa sem a muleta da língua mãe, o português.
     Este foi o cenário de degradação linguística que as autoridades públicas caucionaram nas escolas e em todo o edifício do Estado. Não por via oficial mas encorajado por portas travessas e com culposas omissões. Manuel Veiga, apoiado por alguns fervorosos discípulos, foi o instigador intelectual do processo, o seu mentor e impulsionador, e agora, perante os cacos da sua megalomania, nem sequer tem a humildade de reconhecer o quadro de falência que hoje nos interpela e obriga o governo a um exercício de plasticidade metodológica para tentar ao menos recuperar os antigos níveis de competência linguística. Mas a verdade é que a corrosão sociopsicológica, operada por incursão política, e perpetrada pelos “reafricanizadores”, produziu efeito, submetendo a língua portuguesa a tratos de polé de que saiu completamente de rastos. Bastaram poucas décadas para destruir aquilo que ao longo de séculos foi possível conservar no subconsciente dos cabo-verdianos – a presença da língua portuguesa raiando nas sombras do crioulo – assim permitindo que o nosso sistema de ensino funcionasse com aceitável nível de eficácia em situação bilingue.
     Relativamente à segunda questão   
     Uma grande incógnita me assalta o espírito. Como melhorar a aprendizagem de uma língua baixando-lhe o estatuto privilegiado que sempre ostentou, no pressuposto de que o segredo reside exactamente na incongruência do acto? De facto, a ministra da educação propõe-se um desafio que à primeira vez me parece tão surreal como surpreendente. Fá-lo com boa intenção, consciente do valor e da importância que a língua portuguesa representa para o futuro do país e dos cabo-verdianos. E com determinação e vontade parece querer agir destoando do seu antecessor no cargo, António Correia e Silva, que, enquanto esteve à frente da pasta, não tirou qualquer consequência prática destes fragmentos do seu pensamento tardio vertidos em texto publicado no jornal A Nação de 23 de Junho do corrente: “só sendo bem-sucedida no ensino da língua portuguesa a escola pública será inclusiva, deixando de ser reprodutora de desigualdades”; e ainda: “um português acessível a todos é a via de emancipação”.1
     Sem dúvida que estas palavras lapidares configuram uma clara rejeição do projecto do Manuel Veiga e seu ALUPEC, pelo que desde já elas deviam coagir o seu partido a uma reflexão interna com vista a reconhecer-se que a causa principal do nosso imbróglio linguístico é indubitavelmente de natureza política. Nasceu de uma enviesada interpretação política da realidade identitária do povo das ilhas, quando apenas o viés histórico e antropo-sociológico estava autorizado a ter a palavra em semelhante matéria. Sendo a causa do mal de natureza política, o remédio para a cura tem de ser forçosamente da mesma natureza, e isso passa por mandar arquivar no armário da história o ALUPEC e o apetrecho teórico que o alimenta, quanto muito catalogando-os como matéria de estudo para um qualquer laboratório linguístico. Preste-se ao menos essa honra ao autor do ALUPEC! Suprimido o que foi causa de estéril polémica generalizada, susceptível de atentar contra a coesão nacional e a união de forças anímicas em torno do essencial dos nossos problemas (a busca da nossa sobrevivência económica), restará esperar para saber o que de concreto e fiável haverá nos propósitos da ministra da educação, tão certa parece ela estar das virtudes do que congemina, mesmo que nos pareça inverosímil pretender solucionar por via administrativa um problema que nasceu de uma espúria motivação política e que, por isso mesmo, só pode ser atacado com um antídoto da mesma estirpe.
     Sim, perdoará o meu pessimismo quem entende que o problema é passível de resolução sem ir às raízes do mal. E é assim que, dando o benefício da dúvida, ficam estas perguntas elementares dirigidas à puridade:
     . Como é possível melhorar o ensino/aprendizagem de uma língua despromovendo-a para a condição de “língua segunda”, ou, sem eufemismos, língua estrangeira, quando ela foi sempre língua do ensino e língua oficial? Como ter a certeza de que, virando do avesso uma realidade, ela miraculosamente se metamorfoseia?
     . Irão ser adoptadas metodologias de ensino inovadoras, sem precedentes no nosso ensino doméstico?
     . Vai o português ser reforçado com carga horária sem precedentes e em todos os graus de ensino?
     . Vai o crioulo voltar a ser banido ou silenciado dentro das salas de aula, como antigamente, apostando-se, sim, na conversação obrigatória e exclusiva em português, como forma de criar, ginasticar e fortalecer os automatismos mentais necessários à apreensão e domínio dos segredos da língua lusa?
     .  Idêntica medida será adoptada em tudo o que é serviço público e repartição do Estado, com o exemplo a ser patenteado em primeira mão pelo Parlamento do país?
     . Os programas da televisão e da rádio vão voltar a ter comunicação exclusiva e predominante em português, à excepção de alguns em que a sua natureza mais lúdica e recreativa justifica o crioulo para uma melhor expressividade do ponto de vista das tradições, das artes e do folclore? Haverá percepção por parte das autoridades públicas de que aqueles meios são um poderoso instrumento didáctico para a aprendizagem via oral de uma língua?
     . Vai ser introduzido um pacote de medidas especiais para a avaliação e revalorização da proficiência linguística dos professores, a par da sua mais vincada consciencialização sobre a importância da língua portuguesa para o país?
     Repare-se que este acervo de questões sintetiza tão só retomar atitudes e práticas de ordem pedagógica e social que foram sendo sucessivamente banidas e derrogadas nas últimas décadas, limitando consideravelmente as situações de convivência com o português. Significa, em suma, reconhecer o erro crasso do projecto de Manuel Veiga e um regressar à antiga política de ensino da língua portuguesa, enquanto importa clarificar e solidificar no espírito dos cabo-verdianos a convicção de que “um português acessível a todos é a via de emancipação”, conforme afirmou, e bem, o ex-ministro da educação do anterior governo do PAICV, António Correia e Silva.
1 Excertos publicados no Expresso das Ilhas de 1 de Dezembro

Tomar, 17 de Dezembro de 2016




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