Sobre a
inoportunidade e a impertinência de Estatutos Especiais em Cabo Verde:
Perguntas e Respostas (continuação)
Estatuto Especial, uma redundância. E se a moda pega?
José Fortes Lopes (artigo publicado em Junho de 2016)
Independentemente
dos quadros legais forjados para os legitimar, os Estatutos Especiais são
inaceitáveis. É óbvio que o que se prevê para a Praia teria que ser
incluído no debate geral das reformas e objecto de um escrutínio transparente,
sem o que somos colocados perante um facto consumado e atentatório dos
princípios mais elementares da ética democrática. Por outro lado, caso um
estatuto especial pudesse ser, justificadamente, atribuído a uma parcela do
território, só o poderia ser a título provisório, nunca definitivo, por um
período temporal limitado (3 a 5 anos), até à resolução dos problemas que
levaram à sua concessão. Se virmos bem, haveria pelo menos meia dúzia de
argumentos a jogar a favor de um estatuto especial à cidade do Mindelo, a 2ª
cidade do país, a que mereceu, muito justamente, ser considerada a capital cultural
de Cabo Verde. E não haveria também argumentos casuísticos a justificar a
atribuição de um estatuto especial às comunidades de ilhas ultraperiféricas
como Maio e Brava? Em suma, todas as cidades de Cabo Verde são “especiais” em
si, por uma razão ou por outra.
A questão que se coloca é o
porquê do atribuir à capital de um país um estatuto especial, para além dos
dividendos de toda a ordem que já colhe pela própria condição de capital. O estatuto
especial para uma cidade-capital é uma perfeita redundância, um novo estatuto
em cima de outro, que se traduz no acréscimo de mais uma peça à terrível e
perniciosa engrenagem do centralismo. Afinal, ao invés da prometida
descentralização, pretende-se mais do mesmo, por mais que alguém queira deitar
poeira aos olhos dos incautos. Além
disso, a cidade da Praia, já por si prenhe de benefícios, se está a rebentar
pelas costuras é pelo erro original cometido na concepção do Estado
cabo-verdiano. O que faz sentido é corrigir o erro na sua causa original,
aliviando, entre outras medidas, a indevida superlotação da capital, e não a
aplicação de um fermento para o caucionamento da enormidade social em que ela
se transformou. Insistir nesse Estatuto não deixará de ser altamente lesivo
para os interesses e a dignidade das outras ilhas do arquipélago que foram
negligenciadas e reclamam atenção.
Ademais, é importante não
esquecer que o actual partido no poder tem uma responsabilidade acrescida
perante os cabo-verdianos, por se ter apresentado ao eleitorado como um partido
renovado, prometendo romper com as práticas negativas que remontam ao regime
anterior. O governo sabe bem que se ascendeu ao poder, deve-o em parte significativa
às energias cívicas dispersas pelas ilhas e pela Diáspora, que lhe permitiram
conquistar uma expressiva votação eleitoral em todo país, nomeadamente na ilha
de S. Vicente. E não pode ignorar que a sua vitória teve o sinal claro da
rejeição das políticas do seu antecessor.
Estatuto
Especial mais centralização: mais Praia e menos Cabo Verde?
A
resposta é afirmativa e não deixa margem para dúvidas, bastando anotar que as
políticas empreendidas ao longo destes 41 anos consistiram no empolamento do
centro e no enfraquecimento das periferias. Aliás, tudo isso em perfeita
coerência com a afirmação pública do presidente do PAIGC em 1975, quando
sustentou que os investimentos tinham de passar a privilegiar a ilha de
Santiago e a capital para se poderem ressarcir da menorização a que foram sujeitas
durante o colonialismo. E que, em consequência, a ilha de S. Vicente tinha de
se preparar para tempos de sacrifício. Não deixou de ser um agradecimento
condigno a uma ilha que jogou um papel determinante, durante o ano de 1974, na
ascenção de Cabo Verde à Independência e que levou o PAIGC ao poder.
Interessará, a bem da verdade, demonstrar a falsidade daquela tese, e
nesse sentido nada como revisitar a história e fazer uma breve e sucinta análise
comparativa entre as realidades sociais nas duas mais importantes ilhas do
arquipélago. A ilha de S. Vicente, a partir do século XIX, passou a ser o
pulmão da economia do país, contribuindo para cerca 75% das receitas da colónia,
graças à actividade do seu porto e aos investimentos industriais e comerciais feitos
por entidades privadas. O empreendedorismo económico e a dinâmica da sociedade
civil na ilha do Porto Grande permitiram ganhos e benefícios assinaláveis para
todo o território, evitando que Portugal tivesse de estipular verbas mais
substanciais para a administração da colónia. Graças ao dinamismo económico da
ilha, Cabo Verde era uma colónia auto-sustentável até meados do século passado.
Diferentemente,
a ilha de Santiago e a capital da colónia viviam quase exclusivamente à custa do
orçamento do Estado, ou seja, do contributo de S. Vicente. A capital da colónia
estava instalada na Praia, não pela importância social da cidade, mas pela
tradição histórica, depois pela inércia política, não obstante ter sido
decretada a transferência da capital para MIndelo. No entanto, não obstante ser
a mais contemplada em termos orçamentais, a cidade da Praia estava estagnada na
sua pacatez provinciana, sem vitalidade cívica e incapaz de gerar desenvolvimento
e progresso, cuja dimensão Jonas Wahnon ilustra perfeitamente (1): “uma pequena cidade composta apenas por quatro
principais ruas e cujo mérito era ter a capital da Província, porque nem como escoadouro natural dos
produtos produzidos pela ilha de S.Tiago serve”.
Se
a cidade não registou progressos sociais assinaláveis, dignificando a sua
condição de capital, durante a administração colonial, foi pela inoperância ou
irrelevância da sociedade civil local, embora beneficiando do privilégio da proximidade
da máquina administrativa. Portanto, a diferença entre a cidade da Praia e a do
Mindelo provinha do grau diferenciado de iniciativa e criatividade das
respectivas elites sociais, umas vivendo prosaicamente à custa do orçamento do
Estado, outras produzindo riqueza que revertia em parte significativa para o
orçamento do Estado. E contudo, por estranha ironia, a ilha de S. Vicente e a
cidade do Mindelo estavam longe de beneficiar de um investimento estatal
minimamente condizente com o contributo das suas receitas. É ainda o Jonas
Wahnon que o denuncia nos seguintes termos (2): “O que existe realmente - e sabe o Sr. Dr. Bento Levy perfeitamente -,
é o desejo sincero de toda a gente, que haja uma aplicação mais útil e de
melhor alcance económico dos dinheiros da Província para o bem-estar do seu
povo e orgulho de Portugal; o que existe ainda é o desejo de que os indivíduos
que se encontram à testa dos serviços públicos na Praia tenham um influência
mais benéfica na administração da Província em lugar de pretenderem, por norma “colonialisar"
S. Vicente negando-lhe sistematicamente todos os meios de progresso, sem
quererem lembrar-se de que, se um dia faltassem à Província as receitas desta
ilha, toda a máquina administrativa do arquipélago se desmantelaria.”… Adianta
ainda: “Ao contrário do que acontece na Praia, onde as construções urbanas se
vêm fazendo (pelo Estado, é claro, da forma, mais acelerada que imaginar se
possa, S.Vicente possui um pequeníssimo Tribunal numa casa quási secular que
dantes era habitação particular e que não é património do Estado; O Liceu não obstante
fundado há 40 anos, funciona num prédio que foi, sucessivamente quartel,
correio, Liceu, Câmara, Fazenda e não sei que mais; não possui nenhum prédio
para magistrados nem outros funcionários: os cineteatros que existem são
particulares, como particulares são quási todas as obras de valorização da
cidade; não tem um só hotel; não tem esgoto; não tem água canalizada; a luz é
precária; os pavimentos das ruas são uma miséria, não possui estradas dignas
deste nome, e os caminhos carroçáveis que existem alguns encontram-se há anos intransitáveis,
etc. etc.”.
Basta
este pequeno bosquejo histórico para se dar conta do despudorado atropelo à
verdade em que incorreram, e persistem em incorrer, os mentores do discurso
oficial que procura vitimizar a cidade da Praia só para justificar privilégios
e regalias que não fazem sentido num país que se deseja policêntrico e mais
equânime nas suas possibilidades de desenvolvimento. O mainstream de certa narrativa oficial começa a soar como um
anátema.
Já se passaram 40 anos de
investimento privilegiado na cidade da Praia, e o resultado está à vista e não
ilude ninguém: um urbanismo desordenado e caótico, com uma degradante cintura
de bairros de lata, onde vivem famílias em condições sub-humanas, faltando
saneamento básico, água canalizada, energia eléctrica etc., e onde grassam
fenómenos de delinquência e criminalidade. Desta maneira, a pretensão de um
Estatuto Especial é por si só o reconhecimento da incompetência das sucessivas
governações autárquicas e da inépcia dos governos centrais. Daí que, em vez de
se querer resolver os problemas com mais dinheiro e mais poder, impõe-se é uma
séria reflexão sobre as suas verdadeiras causas, as quais estão seguramente
associadas à falência do modelo de gestão e organização das nossas cidades e,
sobretudo, à política centralista vigente no país desde o arranque da
independência. Teria bastado a dispersão do aparelho do Estado e dos serviços
públicos para evitar que a cidade da Praia atingisse um sobredimensionamento
que é de todo inaceitável e injusto num país arquipelágico.
De facto, há uma relação de causalidade
entre os problemas da cidade da Praia e o centralismo político. Porque são
precisamente os excessos de centralismo e a macrocefalia da capital os
responsáveis pelo aprofundamento das assimetrias no território. Aliás, é todo
este cenário que justificou o surgimento do movimento cívico para a
regionalização do país, e que agora não pode deixar de se insurgir e indignar
contra a intenção de acrescentar mais pedras e mais alcaides ao castelo do
centralismo.
É de gritante evidência que
os centralistas e os Movimentos Pró-Praia estão nos antípodas da estratégia
mais correcta para a resolução dos problemas nacionais e para eles tudo se
resume ao agigantamento da capital, quando a sensatez política aconselharia o
inverso, isto é, ao desmantelamento de uma capital a todos os títulos
prejudicial à boa gestão político-administrativa do país. Há nos opositores declarados da regionalização e da descentralização
muita hipocrisia e cinismo, com o propósito de desvirtuar as suas mais que
comprovadas vantagens, quando os exemplos da sua aplicação no mundo mostram que
não há incompatibilidade nenhuma entre a unidade nacional e as reformas que
defendemos. Uma certa elite pensante e uma parte da classe política
cabo-verdiana têm produzido muita desinformação, talvez por ignorância ou por
má-fé, convencendo-se de que podem mistificar a questão junto das populações,
já que a esta lhe falta informação objectiva e cultura política. Na realidade,
uma regionalização bem conseguida, onde se aplicam os princípios de
subsidiariedade, de discriminação positiva e de convergência social, política e
económica no arquipélago, só pode
resultar no reforço da unidade nacional.
Amiúde, aparecem, com efeito, vozes a considerar que a
regionalização pode fazer perigar a unidade e coesão nacional. Isto surpreende
quando são as mesmas pessoas a encabeçar movimentos radicados na ilha de
Santiago, como a “Associação Pró-Praia” e a “Voz de Santiago”, defendendo
interesses bairristas, e, sem se darem conta, a pugnar para a construção de um
estado dentro do próprio Estado, que é o que acontecerá com uma capital
concebida para lá dos limites aceitáveis. Mas é nítido que o objectivo é
produzir ruído de fundo para abafar a voz dos regionalistas ou então uma
manobra de diversão, tudo muito oportuno no momento em que o governo se mostra
favorável a um projecto de regionalização. Porém, há uma diferença abismal
entre as motivações de uns e outros. Os regionalistas não se focalizam
exclusivamente na sua ilha, como se Cabo Verde fosse apenas essa porção do seu
território, olham para o país inteiro, por acreditarem que o progresso geral só
é possível com aglutinação de vontades e observância daqueles princípios atrás
enunciados.
A este propósito, o Luiz Silva recorda que “a emigração dos Mindelenses na Holanda nunca distinguiu nenhum
conterrâneo em função da sua ilha de origem, nem procurou alguma vez
relevar o papel que a ilha de S. Vicente teve nesse processo. Criámos o caminho
de libertação de Cabo Verde com o nome de Cabo Verde ostentado nas nossas
intenções. Fomos norteados pelo espírito de comunhão, de partilha e entreajuda
entre todos, bem patente no acolhimento fraterno aos que chegavam, no apoio no
alojamento e no tratamento da documentação, para não referir que as nossas
associações eram, sublinho, “cabo-verdianas”, como o grupo musical Voz de Cabo
Verde. Esta ilha (São Vicente) sempre acolheu gente de todas as ilhas, os seus
filhos ajudaram os seus irmãos de outras ilhas a viver dignamente na emigração,
e quando a fome ceifava vidas em outras ilhas os lares abriram-se em S. Vicente
para partilhar o pouco que havia. Muitos cabo-verdianos oriundos de outras
ilhas aqui estudaram e tornaram-se cidadãos do Mundo, e isso deve ser
reconhecido. Esta é a legitimidade
moral que assiste à ilha quando chama a atenção para decisões políticas que não
primam pela solidariedade nacional, equidade e justiça. Estranha-se assim que
esta ilha não seja hoje tão bem-amada, como no passado, por gentes de outras
ilhas. Até os que estudaram no Liceu de S. Vicente parecem ignorar essa fase da
sua juventude, não valorizando o ambiente de camaradagem e bom convívio que
encontraram nos mindelenses. Quem já se lembrou de uma iniciativa sobre o
centenário do Liceu de S. Vicente que terá lugar em 2017, esta escola que
formou gerações de quadros espalhados por Cabo Verde e pelo Mundo!? Agora surgem
grupos Pró-Praia, como se tivessem razão para se queixar mais do que as ilhas
da periferia, e no entanto os políticos e intelectuais não tomam uma posição
para denunciar o que não passa de uma autêntica farsa.
E
contudo São Vicente continua ainda hoje aberto aos ventos do oceano acolhendo
gente de todas as ilhas e de todo o Mundo que aí se sente como se na sua terra,
sem nenhuma discriminação, muitos ascendendo a funções, tais como deputados,
vereadores etc., reservadas noutros sítios a naturais, sem que isso cause
qualquer engulho ao povo da nossa ilha. Mas continuamos de pé,
caboverdianamente firmes, e quando criamos um movimento de regionalização
o nosso estandarte é o de Cabo Verde, não de São Vicente, porque o objectivo é
pôr termo às assimetrias e lutar por um país com igualdade de oportunidades em
todas as ilhas”.
Enfim, Luiz Silva recorda que “a nossa caboverdianidade é
inquestionável”, e com justa razão,
atesta a legitimidade moral que assiste à ilha de São Vicente para denunciar as
políticas que nas últimas décadas cavaram o fosso entre as ilhas e comprometem
o futuro com que toda a população cabo-verdiana sonhou.
(1)
WAHNON, Jonas, “Notas
do Canhenho de um Caboverdiano”, Julho/1957
(2)
Idem, Ibidem
Junho
de 2016
José
Fortes Lopes
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