terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O “CRIOULÊS”, O PORTUGUÊS E O CRIOULO

Adriano Miranda Lima


    Tive ocasião de ler um interessante artigo da autoria da Drª Ondina Ferreira, intitulado “CRIOULÊS”, publicado no jornal “Expresso das Ilhas”, de 10 de Maio do corrente. Escreve a autora: “Tem vindo a insinuar-se discretamente, paulatinamente, diria, quase envergonhadamente, mas sempre em crescendo, uma nova língua – chamemo-la “Crioulês”, por comodidade de expressão – uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos “media”, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra, que, parecendo, não querer exprimir-se nem em Crioulo, nem em Português, ou fugindo a isto, optam e fazem-no através desta espécie, híbrida, de compromisso, para uma fala situada entre o Crioulo e o Português.”
    Contudo, esta revelação não constituiu qualquer surpresa para mim, apesar de não estar a viver em Cabo Verde há longos anos. É que, em 2003, estando de visita à minha ilha natal, S. Vicente, acompanhei pela rádio nacional uma mesa redonda em que esteve presente o Director Geral das Alfândegas e um representante do Ministério das Finanças. Estava em discussão a implementação de um novo regime fiscal e aduaneiro e recordo-me bem de que a língua veicular utilizada pelos intervenientes era mais ou menos o “Crioulês”, conforme a designa Ondina Ferreira. O debate destinava-se a esclarecer o público e a terminologia técnica predominava na interlocução, como o impunha a natureza específica dos assuntos em presença. Em consequência disso, os vocábulos resultavam na sua quase totalidade em Português, só fugindo, de um modo geral, à norma idiomática, as partículas de ligação, os prenomes e artigos, normalmente invariáveis em género, e as flexões verbais. Contudo, quem distraidamente estivesse a ouvir o debate e não conhecesse a origem dos intervenientes, seria à partida induzido a identificar uma conversação em língua portuguesa, e só instigando mais a audição notaria as destoantes particularidades do acessório linguístico. Isto porque, mesmo que se não quisesse, a matéria em discussão, predominantemente técnica, não podia evitar o uso alargado do vocabulário (ou jargão) técnico português, porquanto o Crioulo, até agora, não lhe encontrou qualquer tradução ou sucedâneo.
    Tenho de confessar que acompanhei o debate com atenção porque o Director Geral das Alfândegas foi um estimado colega de liceu e a oportunidade de o ouvir servia para eu matar as saudades daquele que foi um bom companheiro de carteira. Mas houve um momento em que pensei: “Que diabo, se o intuito é facilitar a compreensão do cidadão comum menos instruído, consegue-se o mesmo desiderato falando integralmente em Português.” Porque a dificuldade da percepção radicava, não no acessório formal da linguagem, mas sim naquela terminologia técnica, que em princípio seria inacessível a grande parte dos ouvintes. É claro que tive oportunidade de assistir nos “media” a outras mais intervenções em “Crioulês”, mas o referido debate, pela sua duração, funcionou para mim como uma espécie de ensaio revelador de uma nova forma de comunicar, daí que, repito, não me tenha surpreendido o conteúdo do artigo de Ondina Ferreira.
    A autora refere que o “Crioulês” resulta de um processo iniciado há, sensivelmente, 30 anos, vindo, no entanto, à luz, com mais notoriedade e efusão, por alturas dos anos quentes de 1974 e 1975, quando se tornaram correntes os comícios políticos. Concordo efectivamente que o período de afirmação revolucionária possa ter determinado a eclosão do que já estava em fase larvar algum tempo antes. Mas sou inclinado a situá-lo em data muito mais recuada, visto lembrar-me perfeitamente de que, já no meu tempo do liceu, era comum utilizarmos um recurso linguístico similar ao “Crioulês” para abordar algumas questões escolares. Por exemplo, a seguir às provas escritas de qualquer disciplina, era frequente confrontarmos as respostas e soluções dadas por cada um e, nessas alturas, libertos do formalismo impositivo da sala de aula, o Português puro deixava de ser a língua veicular dos nossos pontos de vista porque o Crioulo logo se encarregava de tomar conta de algumas particularidades do discurso, ainda que o vocabulário presente fosse maioritariamente em língua portuguesa, por razões que são tão óbvias como as que se aplicam aos exemplos citados por Ondina Ferreira e ao caso do debate por mim referido. É por este motivo que sou levado a situar a origem do “Crioulês” em data provavelmente muito anterior à da independência, se bem que a necessidade imediata de comunicação pública possa ter ocasionado o momento decisivo para libertá-lo da sua timidez, emprestando-lhe uma roupagem pseudo-formalizante.
    Como interpretar o fenómeno do “Crioulês” numa altura em que vem sendo ventilada a oficialização do Crioulo e sua ascensão a língua do Estado? O “Crioulês” pode considerar-se um elemento de real interesse no laboratório de ensaio onde decorrerão os estudos e as ponderações de ordem linguística que irão propiciar os primeiros contornos da nova língua oficial do Estado de Cabo Verde? Não me parece. Esta nova linguagem, que tanto pode designar-se “Crioulês” como “Portucriol”, por mais próxima do Português que do Crioulo, não tem a integridade genética da língua de berço cabo-verdiana e, portanto, pouco relevo deverá assumir na definição da personalidade morfológica, semântica e fonética daquela que, como é pretensão de alguns, poderá vir a ser, ou não, a principal língua oficial do país. Caso contrário, pouco sentido faria banir o Português como língua oficial, ou secundarizar a sua importância, já que entre ele e o “Crioulês” não existe um diferencial linguístico muito significativo ao nível do vocabulário.
    Estará o “Crioulês” próximo de alguma linguagem de compromisso que Baltasar Lopes ou Teixeira de Sousa, além de outros, podem ter insinuado em algumas formas de expressão, respectivamente, nos romances Chiquinho e Ilhéu de Contenda? Também não me parece. Por enquanto, o “Crioulês” apenas se tem limitado à comunicação verbal, ao passo que nos citados romances ganha forma um conluio entre o português formal e alguma fala popular, ou seja, de raiz crioula, que é algo distinto do “Crioulês”. É evidente a diferença entre o “Crioulês” e aquilo que é uma manifestação diatópica. Naqueles romances, o que existe é, pois, algum vocabulário e expressão de matriz regional, que surgem apenas em determinados contextos socioculturais, não tendo lugar na comunicação mais erudita. Neles, o diálogo entre os personagens de estratos culturais mais altos é sempre em Português padrão e nas circunstâncias apropriadas com doses de conveniente erudição. Mas em caso algum se nota deriva à norma do Português, como no “Crioulês”.
    A propósito, pergunto a razão por que o cabo-verdiano é o único povo de entre os PALOP que parece ter, como sempre teve, um certo constrangimento em utilizar de forma natural a língua portuguesa, ao não encará-la apenas como aquilo que ela é: uma simples língua veicular. E isto acontece mesmo nos casos em que se domina a língua com natural desenvoltura. Tem graça recordar-me agora das cartas que em criança o meu pai me escrevia do estrangeiro e em que não se cansava de advertir: “Adriano, procura falar sempre em português, mas falar sem receio, sem vergonha, e com à vontade”. É evidente que a recomendação era perfeitamente inútil porque não me via em circunstância alguma a conversar em português com os meus companheiros de escola ou de brincadeira. Mas a resposta à questão atrás aflorada bem sabemos qual é. O Crioulo não é apenas o instrumento idiomático “que acompanha o ilhéu desde o berço até à tumba”, como bem disse Baltasar Lopes, é também uma das marcas inconfundíveis da sua cultura. Só que a situação de bilinguismo em que o cabo-verdiano vive cria-lhe um conflito psicológico permanente, em que o Crioulo é o refúgio natural e imprescindível e a língua portuguesa uma vizinha com quem tem de conviver. Este problema parece irresolúvel, porque a língua cabo-verdiana, qualquer que seja, e mesmo que venha a tornar-se oficial, nunca poderá abdicar da estreita convivência com o Português, até porque, segundo parece anunciado, este continuará como segunda língua oficial. Esta salvaguarda configurará certamente uma das condições estatutárias, ou pelo menos de ordem cultural, para que Cabo Verde possa continuar a ser membro natural da CPLP, ainda que com alguns traços dissonantes, com todo o seu significado real e simbólico. Mas uma comunidade com mais de 200 milhões de falantes em Português, veiculando a sétima ou oitava língua hoje mais falada no mundo, pode gerar uma acção centrípeta cujo efeito não será certamente despiciendo. Só o futuro o dirá, mas os sociolinguistas têm de estar atentos.
    Provavelmente, o “Crioulês” pouco vem acrescentar ao panorama linguístico cabo-verdiano, porque é mais fácil antevermos cenários, ou hipotéticas resoluções administrativas, visualizando o comportamento da língua apenas na esfera da comunicação verbal. Por enquanto, é onde apenas medra o Crioulo e o “Crioulês”. O imbróglio surge quando entramos no terreno da escrita.
    Por tudo isto, não fazer uma aposta forte e assumida no ensino e na comunicação em Português só vai estorvar o futuro do nosso povo, já que os nossos parceiros pelo mundo fora, a começar pela CPLP, não irão certamente aprender o Crioulo ou o “Crioulês” só para nos compreenderem.

2014

                                                 

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