A IMPORTÂNCIA DA
LÍNGUA NOS DESAFIOS DO MUNDO GLOBAL
José Fortes Lopes
Como vimos no artigo anterior,
parece haver um propósito, mais ou menos disfarçado, de eliminar o bilinguismo
em Cabo Verde erradicando paulatinamente dos nossos hábitos a língua
portuguesa, que herdámos e com a qual convivemos durante quinhentos
anos, substituindo-a por um crioulo oficial e padronizado em função do
dialecto santiaguense e da assimilação progressiva dos outros crioulos,
condenados assim ao desaparecimento.
É provável que seja o inconsciente colectivo a
aconselhar o refúgio no crioulo, pela constatação de que a maioria dos
cabo-verdianos, inclusivamente as elites, demonstra notória dificuldade em se
exprimir correntemente em português. Mas se tivermos em conta que antigamente o
cenário linguístico era bem melhor, correspondente a uma situação de
bilinguismo em que, todavia, o crioulo era largamente dominante, só se pode
concluir que a causa principal da presente situação é a falência do sistema de
ensino. Pretender-se, com uma reforma arrevesada, mascarar a resolução de um
problema eminentemente técnico, é como tapar o sol com a peneira. Porém, o
problema do domínio do português em Cabo Verde perseguirá eternamente os
cabo-verdianos se ele não for atacado de raiz e resolvido definitivamente.
Estou certo de que se a língua portuguesa for expulsa pela porta, ela retornará
sub-repticiamente pelas janelas. Os especialistas linguísticos deveriam, por
conseguinte, antes do salto no escuro, debruçar-se com muita seriedade e rigor
sobre o problema do português em Cabo Verde, apresentando pistas e soluções
para a sua resolução. A questão que se coloca e levanta dúvidas aos cépticos da
metodologia seguida no processo da oficialização do crioulo, é se esta será
mesmo uma solução, como apontam e advogam os “especialistas”, nos quais se
incluem os chamados Fundamentalistas. Ou seja, a questão é saber se o mais
conveniente é mesmo o retorno umbilical ao crioulo, como poção mágica para os
problemas linguísticos bicudos de Cabo Verde, a contento dos que vêem a língua
materna como o regaço para o sossego da sua inquietação identitária. Esta é uma
dúvida fundamental.
O(s) crioulo(s) de Cabo Verde conviveram
naturalmente, ao longo dos quinhentos anos, com a língua portuguesa, de tal
maneira que os laços umbilicais e o permanente vaivém entre as duas línguas
foram e são a única e verdadeira fonte de enriquecimento do crioulo. A prova
disso é o facto de mais de 90% do léxico de todos os crioulos cabo-verdianos
terem origem portuguesa. Nunca o crioulo, nem mesmo durante os momentos mais
altos da perseguição salazarista, esteve realmente ameaçado, pois, ao mesmo
tempo que se alimenta do português, está fortemente enraizado nas diversas
ilhas, com os seus diferentes cambiantes. Portanto, independentemente da
questão da oficialização do crioulo, aproveitar a oportunidade para eliminar a
língua portuguesa da convivência dos crioulos é tirar a estes o húmus onde
crescem e florescem, é privá-los do único substrato linguístico capaz de lhes
fornecer uma futura gramática e um léxico minimamente credíveis. Por
conseguinte, é falso o argumento da necessidade da instauração imediata do
monolinguismo em Cabo Verde para proteger o crioulo. A língua portuguesa é e
será um elemento de referência estruturante e o tronco de onde emana a seiva
vivificante do crioulo. Daí que seja essencial voltar a ensinar bem o
português, investir fortemente nesta língua para que qualquer cidadão possa
falá-la correcta e correntemente, assim como o faz o brasileiro, o angolano o
moçambicano ou o santomense, que não parecem querer prescindir da herança
linguística que receberam e é ponte disponível para ligação com o mundo.
Fechar-se no crioulo e romper com a língua portuguesa só pode conduzir à
atrofia do crioulo: o proteccionismo nunca deu bons resultados. Infelizmente,
muitos teóricos que advogam esta tese parecem convencidos de que o crioulo foi
gerado espontaneamente, através de uma autocriação, devendo portanto ser
preservado numa espécie de éter.
Na verdade, quem pode provar e garantir que
a maioria dos cabo-verdianos, depois de uma atabalhoada e pretensa
reforma/revolução, conseguirá exprimir-se integralmente em crioulo, como língua
estruturada gramaticalmente e propiciadora de um raciocínio e discurso formal,
coerente e abstracto, com vantagem em relação ao português? Como disponibilizar
todo um acervo livresco, documental e bibliotecário convertido subitamente num
suposto crioulo erudito e à altura das múltiplas exigências da literatura, da
filosofia e das ciências? Será que de repente vai haver literatura abundante e
generalizada em crioulo? Quem vai fazer todo este trabalho e com que meios e
dinheiros? Que aliciantes verdadeiros levarão os cabo-verdianos a ganhar
hábitos de leitura e escrita em língua restringida aos seus estreitos
horizontes? Como correr o risco de lançar Cabo Verde numa experimentação
linguística na ausência de respostas às inquietações acima referidas? Tenho, e como eu muitas pessoas, sérias
dúvidas sobre esta matéria e assiste-nos todo o direito de as expor.
Limitando-se até hoje à pura retórica política, nenhum “especialista”, nem o
governo, nem os acérrimos defensores daquilo que chamam a oficialização do
crioulo, até hoje responderam a qualquer das dúvidas aqui colocadas e a outras
mais.
Num país onde o fosso entre os ricos e os
pobres aumenta de dia para dia, há uma elite a viver desafogadamente, pelo que
a supressão oficial da língua portuguesa em nada a afectará, pois que
continuará a cultivar-se com o acesso à literatura e aos meios multimédia
sofisticados expressos naquele idioma e em outros, imediatamente disponíveis em
casa ou via internet, enquanto o seu poder de compra lhe faculta ainda estágios
e turismos linguísticos e a possibilidade de ver os seus filhos prosseguirem
formações universitárias em vários países e em várias línguas estrangeiras.
Portanto, uma sociedade dual e a duas velocidade estará em gestação, uma que
domina o português e/ou línguas estrangeiras, e uma outra “indigenada”,
confinada ao horizonte do crioulo, já que nem ao português terá acesso. Este é
o cenário muito provável que a nova elite dominante oferece a um país que não
pode dar-se ao luxo de experimentalismos e devaneios sem sentido.
A falácia da migração total para o
crioulo fica ainda mais desmontada quando se verifica que as elites que dominam
o português, ao exprimirem-se actualmente em crioulo, mais de 90 % dos termos
são plagiados directamente do português erudito e artificialmente crioulizados,
denunciando assim uma total impossibilidade de se abdicar da língua portuguesa.
Para mais, não deixa de ser preocupante esta flagrante miopia
estratégica que é rejeitar a língua portuguesa em Cabo Verde num momento em que
se assiste à ascensão vertiginosa do Brasil como país emergente na economia
global, depois de há muito se ter afirmado como a primeira potência regional na
América do Sul. Só pode honrar e prestigiar a lusofonia ver o Brasil aspirar-se
a uma potência global através da sua
participação cada vez mais activa na política mundial, desde a sua inclusão no
clube dos G-20 às suas pretensões a futuro membro permanente do Conselho de
Segurança. Esta perspectiva brilhante para o Brasil eleva a língua portuguesa à
condição de língua de trabalho num mundo globalizado, ganhando assim, e
inesperadamente, vigor e importância. Não se pode esquecer também as grandes
potencialidades económicas de Angola e de Moçambique e a sua crescente
influência mundial. É neste contexto que são bem oportunas as seguintes e
recentes declarações de duas figuras do mundo lusófono: Xanana Gusmão,
ex-Presidente do Timor, ao jornal Correio da Manhã (1): “Temos orgulho em falar
português. A Língua Portuguesa é um dos nossos grandes factores de
independência e afirmação, neste contexto asiático e com vizinhos tão
poderosos. Por isso, pretendemos reforçar o ensino do português”; Pedro Pires
ex-Presidente Cabo Verde, ao jornal A Nação (2): “é necessário que exista um
esforço da comunidade académica, da sociedade civil e dos governos dos países
lusófonos para elevar o estatuto da língua portuguesa no campo da pesquisa.
Para além de uma língua de cultura, o português deverá ser uma língua de
tecnologia e caberá aos países mais avançados e mais populosos como Brasil,
Portugal, Angola e Moçambique trabalharem para fazer da língua portuguesa uma
língua de cultura, mas sobretudo uma língua de ciência e tecnologia. As
investigações nos mais diversos domínios vão precisar de ser em língua
portuguesa. É um esforço que deve ser feito”. É assim que, olhando o problema
numa perspectiva global e de longo prazo, querer forçar os cabo-verdianos a
numa experimentação aventureira afastando-os do bilinguismo só pode levar a
concluir que quem dirige os destinos de Cabo Verde traz o passo desacertado com
a realidade e a história.
Cabo Verde, pela exiguidade do seu
território e da sua população, pela inexistência de matéria-prima, pela sua
débil economia e grande atraso tecnológico, e sobretudo devido à ausência, até
hoje, de estratégias adequadas para o desenvolvimento, dificilmente encontrará
uma ou várias das aplicações-chave
para a passagem de um país totalmente dependente da ajuda internacional para a
um país viável, e no melhor dos casos emergente. Uma aplicação-chave é o termo que define o conjunto de estratégias que
fizeram o sucesso, outrora, do Ocidente, nomeadamente o mundo protestante
impelido pela Revolução Científica, o Iluminismo e o Reformismo, e de que se
aproveitam hoje os países ditos emergentes como a China, a Índia, Singapura, o
Brasil, etc. É difícil definir as aplicações-chave
determinantes para fazer migrar Cabo Verde do estatuto de um país
subdesenvolvido para o de um país emergente. Este é o grande problema que tem
desafiado os sucessivos governos dos últimos 35 anos. Problema cuja solução
constituirá talvez uma utopia, segundo os mais pessimistas.
Mas é bom que
os cabo-verdianos o saibam e tirem as devidas ilações desta crise mundial, no
sentido de que é necessária uma tomada de consciência da pesada
responsabilidade que têm em cima dos seus ombros: terão que ser, efectivamente,
os senhores dos seus próprios destinos, com todas as responsabilidades
implícitas, assumindo todos os riscos e os proveitos da sua soberania. E isto
implica necessariamente serem eles próprios a criar condições para a
sustentação da sua economia. Não há lugar para os estados viverem eternamente
da ajuda ou caridade internacional: os povos dos países em crise começaram a
pensar egoistamente nos seus próprios problemas. Ou se encontra a solução para
o desenvolvimento de Cabo Verde ou ele se inviabiliza como estado soberano.
Esta é a dura realidade e o dilema que até mesmo estados desenvolvidos vêm já
experimentando amargamente, como é o caso da Grécia, o que não deixa de ser um
oportuno alerta para Cabo Verde. É também uma realidade para a qual os
políticos deveriam sensibilizar o povo, invocando a seguinte máxima de um
grande político mundial: “Não perguntes o que a tua pátria pode fazer por ti.
Pergunta o que tu podes fazer por ela” (John Kennedy).
Pois a questão
que se coloca à economia cabo-verdiana imbrica directamente com a sobrevivência
do país, à semelhança de muitos outros países incomparavelmente mais
desenvolvidos, neste mundo de hoje que se revelou uma selva globalizada e
planetária, que suscita interrogações sobre como se inserir e beneficiar de uma
parte deste enorme bolo que é a economia mundial globalizada. Sendo
de excluir sectores como agricultura ou indústria pesada, restam os serviços,
sector que engloba vários subsectores, os tais nichos de mercado, altamente
competitivos envolvendo mão-de-obra altamente especializada, assentes nas novas
tecnologias, no saberes e na ciência. Assim, perante a carência de
potencialidades mais exploráveis, o turismo, parece ser a área estratégica em
que Cabo Verde deve continuar a apostar. Nesse sentido, uma estratégia de
sucesso terá que assentar na formação dos jovens no domínio por excelência de
línguas estrangeiras (inglês, francês, espanhol, mandarim, língua maioritária
na China), expressão oral e escrita fluentes, assim como na elevação do nível
cultural e intelectual e no melhor conhecimento do mundo, transformando cada
jovem num potencial cidadão do mundo. Nesta perspectiva, o português em vez de
relegado para condição de língua estrangeira, deverá, pelo contrário, merecer
prioridade no investimento, por todas as razões anteriormente enunciadas e por
ser suporte e alavanca imprescindível para a aprendizagem das línguas
dominantes no mundo, nomeadamente o inglês: o futuro de Cabo Verde só pode-se
construir num bilinguismo assumido politicamente e socialmente, num quadro em
que os crioulos das diferentes ilhas viveriam em democracia e harmonia e
evoluiriam livremente, sem intromissão política ou administrativa. Não é
possível conceber Cabo Verde enclausurado num monolinguismo autoritário, onde
imperaria um crioulo eleito. Por isso, condenar os jovens ao fecho umbilical no
crioulo é condenar Cabo Verde ao isolamento ou uma espécie de provincianismo,
representando uma marcha em sentido inverso ao movimento no mundo, um
retrocesso sociológico e uma aventura desastrosa, danosa para qualquer
estratégia de desenvolvimento. Para além disso, poderá saldar-se em perdas
potenciais de competitividade económica, numa perspectiva de inserção de Cabo
Verde no comércio mundial. Como fazer negócios com os outros quando se está
limitado comunicacionalmente, não podendo compreender as outras línguas nem
exprimir noutra língua senão no crioulo? Estas verdades de La Palisse deveriam
nortear a visão das pessoas que dirigem qualquer país hoje, e no caso de Cabo
Verde reveste-se de uma importância capital, a exigir bom senso em vez de
voluntarismo pacóvio.
É também
importante que se perceba que, para além dos custos invisíveis e imateriais da
implementação actual do crioulo que vêm sendo apontados, acrescem custos reais
e aí ninguém talvez tenha feito as contas ou imaginado que elas se terão de
fazer com rigor inadiável e imprescindível. Há um conjunto de implicações
sérias que não podem deixar de ser colocadas no tratamento de uma questão em
que só o máximo rigor, cuidado e seriedade devem pautar a conduta dos
responsáveis políticos, não podendo haver amadorismo nem entusiasmos
nacionalistas em matéria tão extremamente sensível como uma reforma/revolução
linguística. Assim, deve-se de se perguntar quem vai pagar a monumental factura,
que se prolongará pelo tempo fora, da erradicação da língua portuguesa e da
conversão integral da vida do país num determinado crioulo oficial, a solução
pelos vistos minimalista escolhida pelo regime. Toda a literatura e publicação
disponíveis em português ou noutras línguas serão convertidas no crioulo? No
final, será Portugal, a ex-potência colonial, que pagará ou ajudará a pagar o
programa revolucionário de erradicação da língua portuguesa de Cabo Verde? Ou
serão os outros, os parceiros, países amigos doadores, como por exemplo os EUA
ou a China, a pagar os custos do aventureirismo? Ao excluir-se voluntariamente
da lusofonia com a adopção do monolinguismo crioulo, Cabo Verde deixará de
falar oficialmente o português, isolando-se da comunidade lusófona e ficando
numa situação similar à da Guiné Equatorial, como país observador?
As questões que
precedem ainda não estão respondidas, mas em matéria de língua ou outros
encargos de soberania, é irrealista, para não dizer patético, imaginar que a
cooperação internacional ou algum país mecenas possam sempre assegurar as
despesas de outrem que não se prendam com gritantes prioridades de
desenvolvimento ou assistência humanitária. Sem querer ser adivinho da
consciência alheia, a resposta que vier só poderá ser esta: “Quem quer luxo que
o pague!”
Espera-se que
no debate sobre a relação língua portuguesa/Crioulo, Onésimo Silveira, um
patriota no verdadeiro sentido da palavra, detentor de enorme prestígio
intelectual, com experiência internacional e uma vivência cosmopolita, um
dominador exímio do português e de línguas estrangeiras, continue a usar todo o
seu capital de prestígio e uma pedagogia de bom senso para colocar as
autoridades perante as suas responsabilidades. As tomadas de posição corajosas
têm contribuído ao desbloqueio de debate sobre a Regionalização em Cabo Verde.
Espera-se que não seja levado por um discurso politicamente correcto,
consensual, mas que assuma as suas responsabilidades na defesa e preservação da
herança cultural de Cabo Verde, ameaçada por tendências fundamentalistas,
esconjurando estas três grandes ameaças: a eliminação dos crioulos maternos das
ilhas periféricas à ilha capital; a erradicação do português em Cabo Verde; a
eleição de um crioulo padrão artificialmente clonado e baseado no da ilha de
Santiago. É preciso que outros cabo-verdianos, residentes e na diáspora, que
possam opinar e reflectir sobre a problemática da língua, na multiplicidade das
suas envolventes (culturais, sociais, políticas, económicas e internacionais),
acordem e façam ouvir a sua voz, no sentido de contrariar soluções ditadas por
impulsos primários e voluntaristas que só podem ter consequências irreversíveis
e nefastas sobre o futuro de Cabo Verde. Que o Senhor Presidente da República,
professor universitário e homem de cultura, sensível às questões regionais do
país, zelador dos interesses estratégicos de Cabo Verde no mundo, jogue um
papel de moderador junto das partes envolvidas no processo de oficialização do
crioulo.
A suspensão
imediata de todo o processo de oficialização do crioulo para uma posterior
reflexão, pelo menos no quadro de um verdadeiro debate sobre a Regionalização,
deve ser uma exigência, um imperativo nacional.
20/09/2012
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