OS CRIOULOS DE CABO VERDE – ESTATUTO MENOR OU MORTE LENTA
Fátima Ramos Lopes
As línguas são entidades vivas em
permanente evolução. As transformações que vão sofrendo efectuam-se de forma
lenta, gradual e inconsciente, envolvendo a lei do menor esforço ou seja a
tendência para se reduzir o esforço necessário para a pronúncia de certos
fonemas assim como diversos outros fenómenos linguísticos (tais como
supressões, substituição de sílabas, etc.) perfeitamente naturais e que
contribuem para a formação de uma língua a partir de outra.
A língua está intimamente ligada à cultura
e à história de um povo, reflecte os seus valores, as suas crenças, a sua forma
de ser, pensar e estar. É através dela que são transmitidos às gerações
seguintes os referidos valores, garantes da continuidade e da perenidade de uma
sociedade. Uma criança que aprende a sua língua materna está a aprender e a
interiorizar a sua própria cultura. Existe portanto uma forte interacção entre
a língua e a cultura, sendo que aquela molda a cultura e vice-versa.
Os crioulos definem-se como línguas
originadas a partir do contacto entre duas ou mais civilizações, comunidades
linguísticas, uma das quais europeia. Incorporam traços de ambas ou das várias
línguas envolvidas e constituem-se como língua-mãe de uma determinada
comunidade crioula, como é o caso dos crioulos falados em Cabo Verde e noutras
áreas do globo onde houve contacto directo de civilizações num mesmo solo. No
caso particular do crioulo de Cabo Verde, pode-se afirmar, sem exageros, que o
seu conteúdo lexical é composto maioritariamente pelo português, numa proporção
superior a 95.0 % ou 99.0%, dependendo da ilha, as restantes percentagens sendo
oriundas de línguas africanas (caso dos crioulos de sotavento) ou de outras
línguas.
A génese dos crioulos decorreu de um longo
processo (pelo menos 500 anos), que culminou, modernamente, nas formas
actualmente utilizadas no mundo e em Cabo Verde.
O crioulo (composto por 9 versões) é a
língua materna dos cabo-verdianos, adquirido e formatado no primeiro contacto
com a realidade e desde logo tornado instrumento de comunicação no dia-a-dia.
Neste artigo, designo como crioulo todas as variantes do mesmo, faladas no
arquipélago, porque em cada ilha realidades específicas tanto culturais como
psicossomáticas moldam um perfil próprio no falar, com inflexões na semântica,
na fonética e na entoação. É nesta lógica que defino crioulo de S. Vicente, de
S. Antão, de Santiago, do Fogo, etc, e defendo as suas oficializações.
No caso do crioulo de S. Vicente, este
resultou do encontro, da interacção e da miscigenação de vários crioulos
falados no arquipélago, resultantes das sucessivas vagas migratórias de
populações oriundas das vizinhas ilhas de Sº Antão e de Sº Nicolau, assim como
do Fogo e da Brava, não negligenciando, obviamente, a contribuição das outras
ilhas, tal como o Sal, Boavista e mesmo Santiago. Acresce a este facto o de que
o crioulo de S. Vicente esteve em contacto directo com diferentes línguas
estrangeiras. Primeiramente, beneficiou até recentemente de um contacto directo
com a ‘língua mãe’, a língua portuguesa, devido à forte presença de
contingentes militares e de profissionais liberais portugueses residentes nesta
ilha. Por outro lado, a forte presença inglesa desde os primórdios da ocupação
da ilha determinou uma influência não negligenciável de vocábulos de origem
inglesa no crioulo de S. Vicente. Pode-se assim afirmar que S. Vicente
constitui um laboratório linguístico vivo e natural onde o crioulo está em
constante evolução mercê das interacções com o mundo. Este forte dinamismo do
crioulo desta ilha constitui a sua riqueza.
Em Cabo Verde, a questão linguística
tornou-se nos últimos anos uma questão central da sociedade cabo-verdiana em
processo de consolidação da sua identidade nacional. Este assunto tem sido
polémico, pois na prática alguns sectores têm tentado ir mais longe do que era
suposto, impondo incorrectamente uma visão centralizada da problemática do
crioulo, em torno de uma matriz que predefiniram como pura e genuína, que
pretendem dever representar todos os crioulos do arquipélago, e que
corresponderia à matriz de Santiago. É assim que quando referem à língua cabo-verdiana subentendem que se trata do
crioulo falado nesta ilha, por ser a mais populosa do arquipélago, o que
corresponde a um desrespeito pela diversidade do crioulo (composto
por 9 versões) falado em Cabo Verde.
Uma língua encontra-se em risco quando
diminui o seu número de falantes ou quando estes passam a utilizar de forma
sistemática uma outra língua deixando de falar a sua, ou seja, são assimilados.
Os grupos minoritários são empurrados para uma posição de desvantagem social e
cultural, e inconscientemente vão assimilando a cultura e a língua do grupo
preponderante. Este comportamento pode constituir, subconscientemente, uma
forma de integração no seio do referido grupo, o que poderá corresponder a uma
forma de dissolução dos valores e identidade do grupo integrado, acarretando
uma perda da identidade cultural e histórica para os seus falantes. É assim que
a oficialização de uma língua maioritária no seio de uma comunidade
linguisticamente diversa condena implicitamente as línguas minoritárias a um
desaparecimento e com ela todo conjunto de valores a elas associados, ou seja,
a extinção da própria minoria enquanto comunidade linguística única.
Com o 25 de Abril de 1974 e independência
em 1974, o(s) crioulo(s) cabo-verdianos ganharam prestígio, afirmação e
abrangência, ao serem abandonados os complexos que outrora ensombravam a sua
expressão (era politicamente incorrecto antes do 25 de Abril de 1974
exprimir-se em crioulo, em situações formais), ao mesmo tempo que, de uma
maneira irrealista, tentou-se relegar o português para um segundo plano. Não é
novidade para ninguém que a partir de 1975 alguns sectores da sociedade de
então defenderam uma revolução linguística em Cabo Verde com a eliminação pura
e simples da língua portuguesa. Esta é uma vã utopia, mas é infelizmente o
argumentário político para quem faz do assunto sério e delicado, a
oficialização do crioulo, uma bandeira de exclusividade. Este é o problema que
assombra o actual debate sobre o crioulo, muito poluído por questões de ordem
ideológica, quando as questões técnicas e políticas deveriam tomar, doravante,
preponderância.
É impossível falar da oficialização do
crioulo e não falar da problemática do português. Uma visão de guerra entre a
língua portuguesa e o crioulo está fora do tempo e da época, não interessa a
ninguém, e mormente os cabo-verdianos. A defesa da língua portuguesa em Cabo
Verde é a defesa do crioulo e a defesa do crioulo é a defesa da língua
portuguesa, pois estas línguas devem ser vistas como gémeas e não numa
perspectiva maternalista ou paternalista de raiz conflituosa. A propósito desta
problemática, o escritor Germano Almeida em tempos afirmou que o Crioulo não
estava ameaçado de extinção em Cabo Verde, mas sim a língua portuguesa (1).
Esta afirmação deveria preocupar muita gente, nomeadamente os responsáveis
políticos, pois a oficialização do crioulo não pode ser vista como uma
escapatória à presumível impossibilidade de o cabo-verdiano exprimir-se
correctamente na língua portuguesa ou noutras línguas. É preciso saber que a
competição internacional do mundo globalizado em que todas as nações e povos
vão estar mergulhados, onde vender serviços e produtos se fará ao ritmo da
internet, o facto de não se dominar línguas, de não se ter um discurso
estruturado, poderá vir a ser penalizante. No séc. XXI, a comunicação escrita e
oral será uma ferramenta essencial, tudo tem que ser apresentado em línguas
internacionais, inglês em geral, ou alternativamente nas grandes línguas que
ligam vastas comunidades linguísticas, o espanhol, o francês, e o português. O
debate da oficialização do crioulo deve portanto incluir o debate de como
operacionalizar a questão do bilinguismo, uma vez que, tendo em conta os
condicionalismos de Cabo Verde, é irrealista ou mesmo utópico encarar
prescindir-se da língua portuguesa como ferramenta de comunicação e trabalho.
Este é um problema que exige uma reflexão muito ponderada, dada a sua
complexidade. Qualquer fuga em frente ou solução voluntarista pode ter
consequências irreversíveis e graves. Não se pode alimentar expectativas
exageradas ou usar demagogia com um assunto tão delicado e que envolve o futuro
do país.
O grande enigma que encerra a
oficialização/padronização do crioulo em Cabo Verde é, na realidade, a forma
como ela vai se processar. A oficialização do crioulo pode ser uma ferramenta
útil para revivificar e redinamizar o crioulo, desde que seja reconhecida a
existência de crioulos minoritários para que sejam utilizados como veículos de
comunicação oral e escrita das diferentes comunidades, e, mais importante
ainda, se se conceder espaço para que eles se afirmem nos diversos sectores da
sociedade. Ela pode, todavia, transformar-se num instrumento de destruição de
identidades, se se optar por uma via abrupta de unificação/fusão artificial dos
crioulos, denominada padronização. Ao longo da história, tem-se verificado
sistematicamente que as tentativas de extinção de uma ou mais línguas num país
são explicadas por razões políticas.
A padronização de uma língua corresponde à
instituição de um conjunto de regras gramaticais por que se vai reger a
utilização da língua. No caso de Cabo Verde, deveria corresponder a instituição
de regras comuns e básicas para todas as versões do crioulo. Todavia, muita
gente não sabe em que é que consiste a padronização ou tem entendido este
processo como a instauração de um crioulo padrão escolhido entre as 9 versões,
desconhecendo-se os contornos deste processo, não estando clara a forma como
vai ser implementado. Um tal projecto de padronização entendido desta forma
acarretaria que, a longo prazo, os crioulos de Cabo Verde fossem forçados a
extinguirem-se (seria decretado oficialmente a sua extinção e a escolha e
eleição do crioulo padrão?), não por falta de falantes mas por serem coagidos a
se suplantarem e/ou a misturarem-se, contribuindo assim, inconscientemente,
para a morte lenta da sua identidade cultural e linguística. Temos que ter bem
presente que uma língua morre quando morre o seu último falante. Este processo
poderá, portanto, acarretar a perda gradual do crioulo falado em cada ilha,
pelo facto de passarem a ter menos preponderância como veículos de comunicação
escrita e passarem a ter um estatuto inferior como língua e pelo facto de se
verem sobrepostas pela língua de um grupo dominante. É um processo que resulta
assim na dissolução cultural da ilha, pela imposição de valores culturais
alheios à sua própria identidade linguística. Ilhas, com fraca densidade populacional,
são ambientes frágeis, que poderão ver o seu panorama linguístico ameaçado.
Seria uma perda para a diversidade cabo-verdiana que os santantonentes
começassem todos a falar sanvicentino ou que estes começassem todos a falar
santiaguense. Assim, a tese oficiosa que pretende a fusão/assimilação das
versões do crioulo de sotavento por uma baseada no crioulo de Santiago e a
fusão/assimilação das versões barlavento por uma baseada no crioulo de S.
Vicente, como preconizado por alguns teóricos, seria a todos os títulos um
erro. Uma questão importante é saber como os ‘especialistas’ irão viabilizar e
protagonizar esta inédita e utópica experiência linguística de laboratório,
levado a cabo em tempo real e à escala do país real, para não falar dos meios e
custos políticos e sociais envolvidos.
Mas se havia alguma dúvida sobre os
verdadeiros propósitos dos mentores da oficialização, elas ficam esclarecidas
quando se questiona sobre a ou as versões do crioulo utilizadas actualmente nos
meios de comunicação social (rádio, televisão), nos aviões etc., ou ensinadas
nos cursos. Outra questão que se coloca é a de saber por que se apresenta
internamente e internacionalmente uma versão do crioulo como sendo a única
genuína e oficial, votando-se as restantes ao silêncio.
Teme-se, portanto, que o fenómeno da
oficialização e padronização venha a espoletar situações que ponham em risco a
existência ou continuidade da diversidade linguística e cultural de Cabo Verde.
Consequentemente, o(s) crioulo(s) cabo-verdiano(s), no sentido da diversidade e
riqueza linguística cabo-verdiana, poderão estar condenados, a longo prazo, se
as gerações futuras forem restringidas à aprendizagem de um único crioulo.
Se a oficialização do crioulo constituiu
até agora um assunto pacífico para todos cabo-verdianos na medida em que
deveria corresponder, em princípio, à valorização da sua língua materna, ela,
todavia, poderá deixar de o ser, se o processo for mal conduzido e se servir
para dividir as pessoas e o país.
Este cenário pode, à primeira vista,
reflectir certo pessimismo, mas a longo prazo é muito susceptível de vir a
acontecer, e só muito tarde se aperceberá do erro cometido, quando já não
haverá possibilidade de arrepiar caminho.
Neste sentido, se compreendem as
preocupações e ansiedades geradas no seio de vários sectores mais esclarecidos
da elite cabo-verdiana.
Devemos todos estar atentos ao desenrolar
do processo de oficialização ou simplesmente parar para reflectir sobre as vias
alternativas para não virmos a estar confrontados com factos consumados de
consequências incontroláveis.
Assim, considero que qualquer oficialização
deve salvaguardar e respeitar os estatutos de cada grupo de falantes do crioulo
e a sua coexistência em pé de igualdade com os demais, pelo que é indispensável
uma fase longa de estudo aprofundado das diferentes versões do crioulo abrindo
aos investigadores um enorme campo de estudos, investigação e produção de
trabalhos com qualidade científica credenciada. A língua portuguesa poderá ser
o refúgio e o amparo contra eventuais tensões regionais, bairrista ou étnicas
de origem linguística no pós-oficialização. Por conseguinte, este processo deve
ser efectuado no quadro do bilinguismo e não pode implicar de maneira nenhuma a
ostracização da língua portuguesa.
No âmbito do que precede,
deve-se levar a cabo investimentos na área do estudo e da investigação dos
crioulos para que a sua implementação como língua oficial tenha o sucesso
desejado e implique a protecção dos crioulos minoritários. É extremamente
importante que este processo não seja levado ao rufar dos tambores, politizado,
fechado numa visão única e comunitária. Deve-se recentrar o debate, torná-lo
abrangente, participativo, democrático e levado a cabo em cada ilha. Todas as
implicações devem ser estudadas, analisando os prós e os contras de cada
decisão. A oficialização deve abranger todas os crioulos, ilha por ilha, sem
discriminação alguma.
Urge pois:
– Valorizar todos os crioulos como
línguas e que isto fique bem definido na constituição de Cabo Verde;
– Ter em consideração que negligenciar
os crioulos considerados minoritários é colocá-los em risco de desaparecimento;
– Promover o acesso igual e
indiscriminado de todos os crioulos aos principais meios de comunicação;
– Promover o uso de todas as versões
do crioulo sempre que ocorrer a necessidade;
– Divulgar ou apresentar ao mundo
todas as versões do crioulo;
– Fazer tudo para que se respeite a
herança linguística de cada comunidade ou ilha, e tomar medidas por forma a
assegurar que a sua língua seja transmitida às gerações futuras, evitando o
risco de ela desaparecer; em cada ilha deve ser ensinado e estudado o crioulo
que nela se fala;
– Fazer um estudo exaustivo e
documentado de todos os crioulos cabo-verdianos e produzir material escrito e
de apoio a todos, nomeadamente material didáctico;
– Fazer uma avaliação dos crioulos em
risco, nomeadamente monitorizar a sua progressão em termos de número de
falantes e grau de utilização, documentação escrita e registo, e incentivar a
sua escrita e aprendizagem para evitar que desapareçam;
– Inventariar e registar os contos,
lendas e tradições de cada ilha;
– Produzir dicionários, gramáticas ou
outros meios didácticos que simultaneamente contemplem os diversos crioulos
falados em Cabo Verde.
Considerando por fim que é impossível
isolar Cabo Verde do Mundo e da Comunidade Lusófona, e que a língua portuguesa
é uma herança do país, considero que é imprescindível:
– Preservar o actual estatuto da
língua portuguesa e melhorar o seu ensino;
– Generalizar o bilinguismo em Cabo Verde
e adoptar medidas para que todos os cabo-verdianos expressem correntemente em
português e que dominem o inglês e eventualmente o francês/espanhol.
Convinha deixar claro que embora seja
favorável à instauração do bilinguismo em Cabo Verde, mesmo assim continuo
céptica em relação à eventual adopção num futuro próximo do crioulo no sistema educativo cabo-verdiano, não somente devido às
dificuldades que um processo feito a pressa enferma e enfrentaria, mas também
pela falta de transparência e diálogo sobre o mesmo, já viciado por alguma
deriva etnicista, inspirando portanto alguma desconfiança e apreensão. Também
porque duvido da sua viabilidade actual tendo em conta os constrangimentos do
país, dos custos/benefícios desta estratégia, quando se perspectiva a inserção
do país na comunidade Lusófona e no Mundo.
3/09/3013
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