José Fortes Lopes
Segundo notícias recentes, o novo
governo de Cabo Verde vai levar ao Parlamento, em inícios de 2017, um diploma
para a aprovação de um Estatuto Especial para a cidade da Praia.
Alegadamente, tal iniciativa decorre
de “um compromisso que o povo de Cabo Verde tem para com a sua cidade capital”
(?), conforme se exprimiu recentemente o primeiro-ministro, pelo que lhe serão
atribuídos recursos financeiros especiais inerentes ao estatuto em causa, a juntarem-se aos privilégios
de ser a capital de Cabo Verde e àquilo que por lei compete aos municípios em
geral. Acresce que o presidente da câmara será equiparado a ministro e é
previsível a equipa de vereação veja também melhorado o seu estatuto. Portanto como podemos concluir o que está em
causa é um Estatuto Especialíssimo, já que a Praia, capital de Cabo Verde aufere
já de Estatuto Especial, incluindo todos os benefícios políticos e económicos que
este estatuto lhe confere. Este seria o presente perfeito oferecido aos
Fundamentalistas, que realizariam assim o mito do Grande Santiago quinhentista,
e a secundirização das restantes ilhas, desclassificando automaticamente a 2ª
cidade de Cabo Verde, Mindelo.
Recordemos que não obstante Cabo
Verde ser um país arquipelágio, todo aparelho do Estado, o essencial dos
recursos humanos, os serviços, as empresas, as actividades primárias e
secundárias, os financiamentos internacionais,
que antes, até há algumas décadas, estavam de certo modo dispersos pelo
arquipélago, nomeadamente em S. Vicente, estão hoje concentrados praticamente
ou exclusivamente na capital de Cabo Verde, fruto de uma política radical de concentração económica, social e cultural
de um país no seu centro. A situação de orfandade que vive a 2ª cidade do país, à braços com
problemas estruturais e sociais, relacionados com situação de desemprego
crónico, resultantes da inexistência de perspectivas económicas, e vitíma do
centralismo e da burocracia estatal, reforça ainda mais o sentimento de
injustiça desta pretensão.
Como
é sabido o PAICV e o MPD estão de acordo para a aprovação do estatuto. Por
isso, não estranha que a posição do PAICV relativamente ao projecto de
Regionalização que o MPD propõe submeter, talvez, em 2017 (mas de certeza
depois da aprovação do estatuto para a capital), esteja envolto em mistério,
havendo até quem preveja que este partido se vá lavar as mãos deste processo,
como tem feito até agora, atirando as responsabilidade para o povo, através da
proposta de um hipotético referendo, de resultados imprevisíveis. O PAICV só é
corajoso e musculado quando está no poder!! Para além disso, sempre que os seus
interesses egoistas partidários estão em jogo esquiva-se das suas
responsabilidades. Não surpreende também que uma certa elite pensante, deputados
e políticos de S. Vicente, assim como os das restantes ilhas, a maior parte
deles residindo há décadas na capital, totalmente insensíveis e alheios aos
problemas das populações dos seus locais de origem, por questões de disciplina partidária,
obediência aos ditames da Praia e laços umbilicais, darão o seu aval a este
projecto iníquo.
Eduardo Oliveira, um observador
bastante atento às políticas do novo poder, acha mesmo espantoso que "... o estatuto seja um compromisso que o povo
de Cabo Verde tem para com a cidade capital." “o legislador ou
legisladores, ao fazerem constar no artigo 10 da Constituição, ponto 02, a
prerrogativa que concedeu este estatuto à Praia, legalizaram mais uma aldrabice
a que os povos das ilhas terão que se sujeitar, trabalhando para o bem-estar
dos habitantes desta ilha/cidade, que se orgulha dos privilégios que lhe foram
acordados desde a independência” e conclui "Eles comem tudo, eles comem
tudo, e não deixam nada".
Para Adriano Miranda “Deixa de ser um compromisso dos políticos da
Praia (juízes em causa própria) para ser do povo cabo-verdiano. Isto não deve
passar em branco porque tem foros de uma autêntica provocação e insulto ao povo
das outras ilhas”. Como vêem, o princípio da subsidiariedade, que é um dos que
devem presidir à descentralização, vai começar a ser aplicado é a favor da
Praia. Sim, logo de começo, porque depois pode não sobrar nada para as ilhas da
periferia. Compreendem agora a minha pouca fé no modelo região-ilha?” Por estas e outras
razões é que uma certa desconfiança paira sobre a questão da regionalização.
Embora o novo governo eleito
defendesse uma ruptura com as políticas do precedente regime, fundamentalmente
nada mudou em meio ano de poder, para além de que se constata uma grande
continuidade ideológica e a manutenção das políticas
centralistas que vinham sendo
seguidas. Assim, temos assistido da parte deste novo governo, a uma
surpreendente continuidade das políticas anteriores, uma catadupa de anúncios e
pacotes financeiros milionários, única e exclusivamente endereçados à ilha de
Santiago, quando existem em Cabo Verde populações periféricas isoladas a viver
em situação de extrema vulnerabilidade. É preciso não esquecer que nas duas
últimas décadas Cabo Verde recebeu ajudas avultadas da parte de governos
estrangeiros, ditos parceiros de desenvolvimento, à cabeça o americano,
nomeadamente os recentes Millenium
Challenge Accounts, os dois
maiores pacotes financeiros jamais concedidos por um país amigo. Foram quase meio bilião de
dólares consumidos praticamente na ilha de Santiago, sem contar com as ajudas de
montante similar recebidas da União Europeia, que seguem todos invariavelmente o
mesmo destino. E nesta contabilidade dá-se de barato o conjunto de
investimentos que a ditadura do PAIGC/CV realizou na mesma ilha, cujo objectivo
justicialista seria ressarci-la do alegado atraso a que fora sujeito durante o
colonialismo. Só que estas políticas, mesmo que tivessem real fundamento
político, a sua eficácia social e economica é duvidosas, para além de já durarem
tempo demais, mais de 40 anos e sem fim à vista. Apesar disso, os problemas da
ilha de Santiago e da capital aumentaram exponencialmente com o crescimento
desordenado daí resultante, o que obriga a atirar cada vez mais recursos para o
que se tornou um permanente buraco sem fundo, que se escava cada dia mais,
fruto da absurda concentração humana e financeira operada no mesmo lugar. Assim
não surpreende o estado de abandono da periferia de Cabo Verde e a situação de
decadência de S. Vicente, a que foi até à independência (malfadada pelas
consequências catastróficas que teve para a ilha) o principal motor de Cabo
Verde.
É contra as políticas
centralistas que se têm movido os regionalistas da Diáspora, contrariamente à
maioria dos regionalistas residentes em Cabo Verde que parecem contentar-se com
o mínimo, desde que se acorde uma regionalização minimalista ou fictícia que contemple
a ilha de S. Vicente, independentemente do facto de se garantirem ou não a
descentralização e as condições políticas e financeiras para levar a ilha à
senda do progresso.
Deduz-se que
para muitos, sobretudo os frouxos de ânimo e vontade, a regionalização poderá
ser a moeda de troca perfeita para viabilizar o Estatuto Especial para a Praia.
A partir do momento em que o governo concede esta “esmola” a S. Vicente, a luta
para uma maior dignificação da ilha e do seu povo, deveria terminar e
voltaríamos ao tradicional mutismo e demissão que caracterizam a vida social e
política mindelense e cabo-verdiana, aceitando-se assim pacatamente a versão
“soft” do centralismo e da discriminação que o governo do MpD parece intentar
prosseguir com pezinhos de lã. Consideramos pois, que a única via
para resover os problemas que a Capital Praia enfrenta é pela da Deconcentração
humana, da Descentralização e da Regionalização.
Sobre
a Regionalização Eduardo Monteiro é peremptório, “Santiago de há muito foi regionalizada em duas regiões, Norte
e Sul, e também com a criação de vários municípios, tudo no intuito
de engordar a mesma criatura centralizando os recursos na mesma ilha, hoje
designada Republica de Santiago, enquanto que as restantes, nomeadamente S.Vicente, vão-se
minguando, empobrecendo cada vez mais. Se a regionalização for aprovada, mesmo
servindo como a moeda de troca, já será uma vitória?” . Tendo em conta
que a regionalização pode atribuir duas regiões à ilha de Santiago, Norte
e Sul, o que parece não ser contestado pelos regionalistas, seria razoável
o governo integrar a problemática do tal estatuto no quadro da reforma em vista.
A ética política mandaria mesmo deixar cair o projecto de estatuto especial
para a Praia, fosse qual fosse.
Consideramos
pois inaceitável, a falácia de pretender resolver os problemas da Praia e
Santiago, que eles próprios criaram, atirando mais dinheiros e benefícios
especiais à câmara municipal.
Os municípios dessa
ilha dum modo geral têm vindo a ser mais privilegiados do que outros pelos
governos centrais, e alguns deles até com pouca relevância no panorama
autárquico. Porém, com este Estatuto
Especial pretende-se agora formalizar no papel um autêntico esbulho aos
cabo-verdianos de todas as ilhas, canalizando uma percentagem permanente dos
seus impostos para pagar o que não passa de uma mordomia.
Convém notar que a nossa
posição em relação à proposta de estatuto especial é coerente com as posições
que vimos tomando baseadas em princípios de sustentabilidade, não só
determinados pelo vector económico como também ético e moral, sobre a forma de
governar um arquipélago insustentável e no limite da viabilidade, como é Cabo
Verde. É assim que fomos contra o projecto megalómano de transformar a cidade
na Praia numa Cidade Administrativa, um Manhattan cabo-verdiano (uma dádiva
bilionária que iria endividar o país por várias décadas, e que felizmente a
crise internacional travou). É a mesma coerência que nos guia quando reclamámos
maior sinergia económica entre várias ilhas de modo a melhor gerir os parcos
recursos de que dispõe Cabo Verde. Opomo-nos ao centralismo cultural e
linguístico (à morte anunciada das 9 versões de
crioulo e da língua portuguesa em Cabo Verde), uma ameaça permanente à diversidade
cultural e linguística cabo-verdiana.
Com os argumentos apresentados em
defesa deste estatuto, pode-se concluir que, afinal, o povo deste pobre arquipélago
de Cabo Verde teria um compromisso financeiro com o regime (aparentemente deu
um cheque em branco aos partidos aquando do seu voto), que
consistiria em investir na resolução dos problemas engendrados pelo caos humano e urbano criados pelo
próprio centralismo na capital, em 41 anos de independência. Esta prensão é tanto
mais injusta quando sabe-se que todos vão pagar, e quem beneficiará no fundo, será a mesma elite cada
vez mais bulímica e pretensiosa. Uma solução mais absurda e paradoxal para um
problema criado não pode existir!!
A política de impor valores
de cariz étnico-cultural a todo o país, de conceder arbitrariamente estatutos
especiais e de direccionar mais regalias e a fatia do leão dos recursos sempre para
uma mesma a ilha, a de Santiago, tarde ou cedo vai instigar o debate nacional
sobre a necessidade de uma federalização de Cabo Verde, como única hipótese que
restará para a reposição da igualdade de direitos e oportunidades com que as
populações das nove ilhas sonharam aquando da independência.
23 de
Dezembro de 2016
José Fortes
Lopes