quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

                                           Ainda sobre o polémico Estatuto Especial
                                                      José Fortes Lopes

Segundo notícias recentes, o novo governo de Cabo Verde vai levar ao Parlamento, em inícios de 2017, um diploma para a aprovação de um Estatuto Especial para a cidade da Praia.
Alegadamente, tal iniciativa decorre de “um compromisso que o povo de Cabo Verde tem para com a sua cidade capital” (?), conforme se exprimiu recentemente o primeiro-ministro, pelo que lhe serão atribuídos recursos financeiros especiais inerentes ao estatuto em causa, a juntarem-se aos privilégios de ser a capital de Cabo Verde e àquilo que por lei compete aos municípios em geral. Acresce que o presidente da câmara será equiparado a ministro e é previsível a equipa de vereação veja também melhorado o seu estatuto.  Portanto como podemos concluir o que está em causa é um Estatuto Especialíssimo, já que a Praia, capital de Cabo Verde aufere já de Estatuto Especial,  incluindo  todos os benefícios políticos e económicos que este estatuto lhe confere. Este seria o presente perfeito oferecido aos Fundamentalistas, que realizariam assim o mito do Grande Santiago quinhentista, e a secundirização das restantes ilhas, desclassificando automaticamente a 2ª cidade de Cabo Verde, Mindelo.
Recordemos que não obstante Cabo Verde ser um país arquipelágio, todo aparelho do Estado, o essencial dos recursos humanos, os serviços, as empresas, as actividades primárias e secundárias, os financiamentos internacionais,  que antes, até há algumas décadas, estavam de certo modo dispersos pelo arquipélago, nomeadamente em S. Vicente, estão hoje concentrados praticamente ou exclusivamente na capital de Cabo Verde, fruto de uma política radical  de concentração económica, social e cultural de um país no seu centro. A situação de orfandade que  vive a 2ª cidade do país, à braços com problemas estruturais e sociais, relacionados com situação de desemprego crónico, resultantes da inexistência de perspectivas económicas, e vitíma do centralismo e da burocracia estatal, reforça ainda mais o sentimento de injustiça desta pretensão.
Como é sabido o PAICV e o MPD estão de acordo para a aprovação do estatuto. Por isso, não estranha que a posição do PAICV relativamente ao projecto de Regionalização que o MPD propõe submeter, talvez, em 2017 (mas de certeza depois da aprovação do estatuto para a capital), esteja envolto em mistério, havendo até quem preveja que este partido se vá lavar as mãos deste processo, como tem feito até agora, atirando as responsabilidade para o povo, através da proposta de um hipotético referendo, de resultados imprevisíveis. O PAICV só é corajoso e musculado quando está no poder!! Para além disso, sempre que os seus interesses egoistas partidários estão em jogo esquiva-se das suas responsabilidades. Não surpreende também que uma certa elite pensante, deputados e políticos de S. Vicente, assim como os das restantes ilhas, a maior parte deles residindo há décadas na capital, totalmente insensíveis e alheios aos problemas das populações dos seus locais de origem,  por questões de disciplina partidária, obediência aos ditames da Praia e laços umbilicais, darão o seu aval a este projecto iníquo.
 Eduardo Oliveira, um observador bastante atento às políticas do novo poder, acha mesmo espantoso que "... o estatuto seja um compromisso que o povo de Cabo Verde tem para com a cidade capital." “o legislador ou legisladores, ao fazerem constar no artigo 10 da Constituição, ponto 02, a prerrogativa que concedeu este estatuto à Praia, legalizaram mais uma aldrabice a que os povos das ilhas terão que se sujeitar, trabalhando para o bem-estar dos habitantes desta ilha/cidade, que se orgulha dos privilégios que lhe foram acordados desde a independência” e conclui "Eles comem tudo, eles comem tudo, e não deixam nada".
Para Adriano Miranda “Deixa de ser um compromisso dos políticos da Praia (juízes em causa própria) para ser do povo cabo-verdiano. Isto não deve passar em branco porque tem foros de uma autêntica provocação e insulto ao povo das outras ilhas”. Como vêem, o princípio da subsidiariedade, que é um dos que devem presidir à descentralização, vai começar a ser aplicado é a favor da Praia. Sim, logo de começo, porque depois pode não sobrar nada para as ilhas da periferia. Compreendem agora a minha pouca fé no modelo região-ilha?” Por estas e outras razões é que uma certa desconfiança paira sobre a questão da regionalização. 
Embora o novo governo eleito defendesse uma ruptura com as políticas do precedente regime, fundamentalmente nada mudou em meio ano de poder, para além de que se constata uma grande continuidade ideológica e a manutenção das políticas centralistas que vinham sendo seguidas. Assim, temos assistido da parte deste novo governo, a uma surpreendente continuidade das políticas anteriores, uma catadupa de anúncios e pacotes financeiros milionários, única e exclusivamente endereçados à ilha de Santiago, quando existem em Cabo Verde populações periféricas isoladas a viver em situação de extrema vulnerabilidade. É preciso não esquecer que nas duas últimas décadas Cabo Verde recebeu ajudas avultadas da parte de governos estrangeiros, ditos parceiros de desenvolvimento, à cabeça o americano, nomeadamente os recentes Millenium Challenge  Accounts, os dois maiores pacotes financeiros jamais concedidos por um país amigo. Foram quase meio bilião de dólares consumidos praticamente na ilha de Santiago, sem contar com as ajudas de montante similar recebidas da União Europeia, que seguem todos invariavelmente o mesmo destino. E nesta contabilidade dá-se de barato o conjunto de investimentos que a ditadura do PAIGC/CV realizou na mesma ilha, cujo objectivo justicialista seria ressarci-la do alegado atraso a que fora sujeito durante o colonialismo. Só que estas políticas, mesmo que tivessem real fundamento político, a sua eficácia social e economica é duvidosas, para além de já durarem tempo demais, mais de 40 anos e sem fim à vista. Apesar disso, os problemas da ilha de Santiago e da capital aumentaram exponencialmente com o crescimento desordenado daí resultante, o que obriga a atirar cada vez mais recursos para o que se tornou um permanente buraco sem fundo, que se escava cada dia mais, fruto da absurda concentração humana e financeira operada no mesmo lugar. Assim não surpreende o estado de abandono da periferia de Cabo Verde e a situação de decadência de S. Vicente, a que foi até à independência (malfadada pelas consequências catastróficas que teve para a ilha) o principal motor de Cabo Verde. 
É contra as políticas centralistas que se têm movido os regionalistas da Diáspora, contrariamente à maioria dos regionalistas residentes em Cabo Verde que parecem contentar-se com o mínimo, desde que se acorde uma regionalização minimalista ou fictícia que contemple a ilha de S. Vicente, independentemente do facto de se garantirem ou não a descentralização e as condições políticas e financeiras para levar a ilha à senda do progresso.
Deduz-se que para muitos, sobretudo os frouxos de ânimo e vontade, a regionalização poderá ser a moeda de troca perfeita para viabilizar o Estatuto Especial para a Praia. A partir do momento em que o governo concede esta “esmola” a S. Vicente, a luta para uma maior dignificação da ilha e do seu povo, deveria terminar e voltaríamos ao tradicional mutismo e demissão que caracterizam a vida social e política mindelense e cabo-verdiana, aceitando-se assim pacatamente a versão “soft” do centralismo e da discriminação que o governo do MpD parece intentar prosseguir com pezinhos de lã. Consideramos pois, que a única via para resover os problemas que a Capital Praia enfrenta é pela da Deconcentração humana, da Descentralização e da Regionalização.

  Sobre a Regionalização Eduardo Monteiro é peremptório, “Santiago de há muito foi regionalizada em duas regiões, Norte e Sul, e também com a criação de vários municípios, tudo no intuito de engordar a mesma criatura centralizando os recursos na mesma ilha, hoje designada Republica de Santiago, enquanto que as restantes, nomeadamente S.Vicente, vão-se minguando, empobrecendo cada vez mais. Se a regionalização for aprovada, mesmo servindo como a moeda de troca, já será uma vitória?” . Tendo em conta que a regionalização pode atribuir duas regiões à ilha de Santiago, Norte e Sul, o que parece não ser contestado pelos regionalistas, seria razoável o governo integrar a problemática do tal estatuto no quadro da reforma em vista. A ética política mandaria mesmo deixar cair o projecto de estatuto especial para a Praia, fosse qual fosse. 
Consideramos pois inaceitável, a falácia de pretender resolver os problemas da Praia e Santiago, que eles próprios criaram, atirando mais dinheiros e benefícios especiais à câmara municipal.
Os municípios dessa ilha dum modo geral têm vindo a ser mais privilegiados do que outros pelos governos centrais, e alguns deles até com pouca relevância no panorama autárquico.  Porém, com este Estatuto Especial pretende-se agora formalizar no papel um autêntico esbulho aos cabo-verdianos de todas as ilhas, canalizando uma percentagem permanente dos seus impostos para pagar o que não passa de uma mordomia.
Convém notar que a nossa posição em relação à proposta de estatuto especial é coerente com as posições que vimos tomando baseadas em princípios de sustentabilidade, não só determinados pelo vector económico como também ético e moral, sobre a forma de governar um arquipélago insustentável e no limite da viabilidade, como é Cabo Verde. É assim que fomos contra o projecto megalómano de transformar a cidade na Praia numa Cidade Administrativa, um Manhattan cabo-verdiano (uma dádiva bilionária que iria endividar o país por várias décadas, e que felizmente a crise internacional travou). É a mesma coerência que nos guia quando reclamámos maior sinergia económica entre várias ilhas de modo a melhor gerir os parcos recursos de que dispõe Cabo Verde. Opomo-nos ao centralismo cultural e linguístico  morte anunciada das 9 versões de crioulo e da língua portuguesa em Cabo Verde), uma ameaça permanente à diversidade cultural e linguística cabo-verdiana. 
Com os argumentos apresentados em defesa deste estatuto, pode-se concluir que, afinal, o povo deste pobre arquipélago de Cabo Verde teria um compromisso financeiro com o regime (aparentemente deu um cheque em branco aos partidos aquando do seu voto), que consistiria em investir na resolução dos problemas engendrados pelo caos humano e urbano criados pelo próprio centralismo na capital, em 41 anos de independência. Esta prensão é tanto mais injusta quando sabe-se que todos vão pagar, e quem  beneficiará no fundo, será a mesma elite cada vez mais bulímica e pretensiosa. Uma solução mais absurda e paradoxal para um problema criado não pode existir!!

A política de impor valores de cariz étnico-cultural a todo o país, de conceder arbitrariamente estatutos especiais e de direccionar mais regalias e a fatia do leão dos recursos sempre para uma mesma a ilha, a de Santiago, tarde ou cedo vai instigar o debate nacional sobre a necessidade de uma federalização de Cabo Verde, como única hipótese que restará para a reposição da igualdade de direitos e oportunidades com que as populações das nove ilhas sonharam aquando da independência.
23 de Dezembro de 2016
José Fortes Lopes


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Sobre a inoportunidade e a impertinência de Estatutos Especiais em Cabo Verde: Perguntas e Respostas (continuação)
    
                              Estatuto Especial, uma redundância. E se a moda pega?


                                                  José Fortes Lopes (artigo publicado em  Junho de 2016)

     Independentemente dos quadros legais forjados para os legitimar, os Estatutos Especiais são inaceitáveis. É óbvio que o que se prevê para a Praia teria que ser incluído no debate geral das reformas e objecto de um escrutínio transparente, sem o que somos colocados perante um facto consumado e atentatório dos princípios mais elementares da ética democrática. Por outro lado, caso um estatuto especial pudesse ser, justificadamente, atribuído a uma parcela do território, só o poderia ser a título provisório, nunca definitivo, por um período temporal limitado (3 a 5 anos), até à resolução dos problemas que levaram à sua concessão. Se virmos bem, haveria pelo menos meia dúzia de argumentos a jogar a favor de um estatuto especial à cidade do Mindelo, a 2ª cidade do país, a que mereceu, muito justamente, ser considerada a capital cultural de Cabo Verde. E não haveria também argumentos casuísticos a justificar a atribuição de um estatuto especial às comunidades de ilhas ultraperiféricas como Maio e Brava? Em suma, todas as cidades de Cabo Verde são “especiais” em si, por uma razão ou por outra.
     A questão que se coloca é o porquê do atribuir à capital de um país um estatuto especial, para além dos dividendos de toda a ordem que já colhe pela própria condição de capital. O estatuto especial para uma cidade-capital é uma perfeita redundância, um novo estatuto em cima de outro, que se traduz no acréscimo de mais uma peça à terrível e perniciosa engrenagem do centralismo. Afinal, ao invés da prometida descentralização, pretende-se mais do mesmo, por mais que alguém queira deitar poeira aos olhos dos incautos.  Além disso, a cidade da Praia, já por si prenhe de benefícios, se está a rebentar pelas costuras é pelo erro original cometido na concepção do Estado cabo-verdiano. O que faz sentido é corrigir o erro na sua causa original, aliviando, entre outras medidas, a indevida superlotação da capital, e não a aplicação de um fermento para o caucionamento da enormidade social em que ela se transformou. Insistir nesse Estatuto não deixará de ser altamente lesivo para os interesses e a dignidade das outras ilhas do arquipélago que foram negligenciadas e reclamam atenção.
     Ademais, é importante não esquecer que o actual partido no poder tem uma responsabilidade acrescida perante os cabo-verdianos, por se ter apresentado ao eleitorado como um partido renovado, prometendo romper com as práticas negativas que remontam ao regime anterior. O governo sabe bem que se ascendeu ao poder, deve-o em parte significativa às energias cívicas dispersas pelas ilhas e pela Diáspora, que lhe permitiram conquistar uma expressiva votação eleitoral em todo país, nomeadamente na ilha de S. Vicente. E não pode ignorar que a sua vitória teve o sinal claro da rejeição das políticas do seu antecessor.

     Estatuto Especial mais centralização: mais Praia e menos Cabo Verde?

     A resposta é afirmativa e não deixa margem para dúvidas, bastando anotar que as políticas empreendidas ao longo destes 41 anos consistiram no empolamento do centro e no enfraquecimento das periferias. Aliás, tudo isso em perfeita coerência com a afirmação pública do presidente do PAIGC em 1975, quando sustentou que os investimentos tinham de passar a privilegiar a ilha de Santiago e a capital para se poderem ressarcir da menorização a que foram sujeitas durante o colonialismo. E que, em consequência, a ilha de S. Vicente tinha de se preparar para tempos de sacrifício. Não deixou de ser um agradecimento condigno a uma ilha que jogou um papel determinante, durante o ano de 1974, na ascenção de Cabo Verde à Independência e que levou o PAIGC ao poder.
    Interessará, a bem da verdade, demonstrar a falsidade daquela tese, e nesse sentido nada como revisitar a história e fazer uma breve e sucinta análise comparativa entre as realidades sociais nas duas mais importantes ilhas do arquipélago. A ilha de S. Vicente, a partir do século XIX, passou a ser o pulmão da economia do país, contribuindo para cerca 75% das receitas da colónia, graças à actividade do seu porto e aos investimentos industriais e comerciais feitos por entidades privadas. O empreendedorismo económico e a dinâmica da sociedade civil na ilha do Porto Grande permitiram ganhos e benefícios assinaláveis para todo o território, evitando que Portugal tivesse de estipular verbas mais substanciais para a administração da colónia. Graças ao dinamismo económico da ilha, Cabo Verde era uma colónia auto-sustentável até meados do século passado.
     Diferentemente, a ilha de Santiago e a capital da colónia viviam quase exclusivamente à custa do orçamento do Estado, ou seja, do contributo de S. Vicente. A capital da colónia estava instalada na Praia, não pela importância social da cidade, mas pela tradição histórica, depois pela inércia política, não obstante ter sido decretada a transferência da capital para MIndelo. No entanto, não obstante ser a mais contemplada em termos orçamentais, a cidade da Praia estava estagnada na sua pacatez provinciana, sem vitalidade cívica e incapaz de gerar desenvolvimento e progresso, cuja dimensão Jonas Wahnon ilustra perfeitamente (1): “uma pequena cidade composta apenas por quatro principais ruas e cujo mérito era ter a capital da Província, porque nem como escoadouro natural dos produtos produzidos pela ilha de S.Tiago serve”.
     Se a cidade não registou progressos sociais assinaláveis, dignificando a sua condição de capital, durante a administração colonial, foi pela inoperância ou irrelevância da sociedade civil local, embora beneficiando do privilégio da proximidade da máquina administrativa. Portanto, a diferença entre a cidade da Praia e a do Mindelo provinha do grau diferenciado de iniciativa e criatividade das respectivas elites sociais, umas vivendo prosaicamente à custa do orçamento do Estado, outras produzindo riqueza que revertia em parte significativa para o orçamento do Estado. E contudo, por estranha ironia, a ilha de S. Vicente e a cidade do Mindelo estavam longe de beneficiar de um investimento estatal minimamente condizente com o contributo das suas receitas. É ainda o Jonas Wahnon que o denuncia nos seguintes termos (2): “O que existe realmente - e sabe o Sr. Dr. Bento Levy perfeitamente -, é o desejo sincero de toda a gente, que haja uma aplicação mais útil e de melhor alcance económico dos dinheiros da Província para o bem-estar do seu povo e orgulho de Portugal; o que existe ainda é o desejo de que os indivíduos que se encontram à testa dos serviços públicos na Praia tenham um influência mais benéfica na administração da Província em lugar de pretenderem, por norma “colonialisar" S. Vicente negando-lhe sistematicamente todos os meios de progresso, sem quererem lembrar-se de que, se um dia faltassem à Província as receitas desta ilha, toda a máquina administrativa do arquipélago se desmantelaria.”… Adianta ainda: “Ao contrário do que acontece na Praia, onde as construções urbanas se vêm fazendo (pelo Estado, é claro, da forma, mais acelerada que imaginar se possa, S.Vicente possui um pequeníssimo Tribunal numa casa quási secular que dantes era habitação particular e que não é património do Estado; O Liceu não obstante fundado há 40 anos, funciona num prédio que foi, sucessivamente quartel, correio, Liceu, Câmara, Fazenda e não sei que mais; não possui nenhum prédio para magistrados nem outros funcionários: os cineteatros que existem são particulares, como particulares são quási todas as obras de valorização da cidade; não tem um só hotel; não tem esgoto; não tem água canalizada; a luz é precária; os pavimentos das ruas são uma miséria, não possui estradas dignas deste nome, e os caminhos carroçáveis que existem alguns encontram-se há anos intransitáveis, etc. etc.”.
     Basta este pequeno bosquejo histórico para se dar conta do despudorado atropelo à verdade em que incorreram, e persistem em incorrer, os mentores do discurso oficial que procura vitimizar a cidade da Praia só para justificar privilégios e regalias que não fazem sentido num país que se deseja policêntrico e mais equânime nas suas possibilidades de desenvolvimento. O mainstream de certa narrativa oficial começa a soar como um anátema.
     Já se passaram 40 anos de investimento privilegiado na cidade da Praia, e o resultado está à vista e não ilude ninguém: um urbanismo desordenado e caótico, com uma degradante cintura de bairros de lata, onde vivem famílias em condições sub-humanas, faltando saneamento básico, água canalizada, energia eléctrica etc., e onde grassam fenómenos de delinquência e criminalidade. Desta maneira, a pretensão de um Estatuto Especial é por si só o reconhecimento da incompetência das sucessivas governações autárquicas e da inépcia dos governos centrais. Daí que, em vez de se querer resolver os problemas com mais dinheiro e mais poder, impõe-se é uma séria reflexão sobre as suas verdadeiras causas, as quais estão seguramente associadas à falência do modelo de gestão e organização das nossas cidades e, sobretudo, à política centralista vigente no país desde o arranque da independência. Teria bastado a dispersão do aparelho do Estado e dos serviços públicos para evitar que a cidade da Praia atingisse um sobredimensionamento que é de todo inaceitável e injusto num país arquipelágico.
    De facto, há uma relação de causalidade entre os problemas da cidade da Praia e o centralismo político. Porque são precisamente os excessos de centralismo e a macrocefalia da capital os responsáveis pelo aprofundamento das assimetrias no território. Aliás, é todo este cenário que justificou o surgimento do movimento cívico para a regionalização do país, e que agora não pode deixar de se insurgir e indignar contra a intenção de acrescentar mais pedras e mais alcaides ao castelo do centralismo.
     É de gritante evidência que os centralistas e os Movimentos Pró-Praia estão nos antípodas da estratégia mais correcta para a resolução dos problemas nacionais e para eles tudo se resume ao agigantamento da capital, quando a sensatez política aconselharia o inverso, isto é, ao desmantelamento de uma capital a todos os títulos prejudicial à boa gestão político-administrativa do país. Há nos opositores declarados da regionalização e da descentralização muita hipocrisia e cinismo, com o propósito de desvirtuar as suas mais que comprovadas vantagens, quando os exemplos da sua aplicação no mundo mostram que não há incompatibilidade nenhuma entre a unidade nacional e as reformas que defendemos. Uma certa elite pensante e uma parte da classe política cabo-verdiana têm produzido muita desinformação, talvez por ignorância ou por má-fé, convencendo-se de que podem mistificar a questão junto das populações, já que a esta lhe falta informação objectiva e cultura política. Na realidade, uma regionalização bem conseguida, onde se aplicam os princípios de subsidiariedade, de discriminação positiva e de convergência social, política e económica no arquipélago, só pode resultar no reforço da unidade nacional.
     Amiúde, aparecem, com efeito, vozes a considerar que a regionalização pode fazer perigar a unidade e coesão nacional. Isto surpreende quando são as mesmas pessoas a encabeçar movimentos radicados na ilha de Santiago, como a “Associação Pró-Praia” e a “Voz de Santiago”, defendendo interesses bairristas, e, sem se darem conta, a pugnar para a construção de um estado dentro do próprio Estado, que é o que acontecerá com uma capital concebida para lá dos limites aceitáveis. Mas é nítido que o objectivo é produzir ruído de fundo para abafar a voz dos regionalistas ou então uma manobra de diversão, tudo muito oportuno no momento em que o governo se mostra favorável a um projecto de regionalização. Porém, há uma diferença abismal entre as motivações de uns e outros. Os regionalistas não se focalizam exclusivamente na sua ilha, como se Cabo Verde fosse apenas essa porção do seu território, olham para o país inteiro, por acreditarem que o progresso geral só é possível com aglutinação de vontades e observância daqueles princípios atrás enunciados.
     A este propósito, o Luiz Silva recorda que “a emigração dos Mindelenses na Holanda nunca distinguiu nenhum conterrâneo em função da sua ilha de origem, nem procurou alguma vez relevar o papel que a ilha de S. Vicente teve nesse processo. Criámos o caminho de libertação de Cabo Verde com o nome de Cabo Verde ostentado nas nossas intenções. Fomos norteados pelo espírito de comunhão, de partilha e entreajuda entre todos, bem patente no acolhimento fraterno aos que chegavam, no apoio no alojamento e no tratamento da documentação, para não referir que as nossas associações eram, sublinho, “cabo-verdianas”, como o grupo musical Voz de Cabo Verde. Esta ilha (São Vicente) sempre acolheu gente de todas as ilhas, os seus filhos ajudaram os seus irmãos de outras ilhas a viver dignamente na emigração, e quando a fome ceifava vidas em outras ilhas os lares abriram-se em S. Vicente para partilhar o pouco que havia. Muitos cabo-verdianos oriundos de outras ilhas aqui estudaram e tornaram-se cidadãos do Mundo, e isso deve ser reconhecido. Esta é a legitimidade moral que assiste à ilha quando chama a atenção para decisões políticas que não primam pela solidariedade nacional, equidade e justiça. Estranha-se assim que esta ilha não seja hoje tão bem-amada, como no passado, por gentes de outras ilhas. Até os que estudaram no Liceu de S. Vicente parecem ignorar essa fase da sua juventude, não valorizando o ambiente de camaradagem e bom convívio que encontraram nos mindelenses. Quem já se lembrou de uma iniciativa sobre o centenário do Liceu de S. Vicente que terá lugar em 2017, esta escola que formou gerações de quadros espalhados por Cabo Verde e pelo Mundo!? Agora surgem grupos Pró-Praia, como se tivessem razão para se queixar mais do que as ilhas da periferia, e no entanto os políticos e intelectuais não tomam uma posição para denunciar o que não passa de uma autêntica farsa. 
E contudo São Vicente continua ainda hoje aberto aos ventos do oceano acolhendo gente de todas as ilhas e de todo o Mundo que aí se sente como se na sua terra, sem nenhuma discriminação, muitos ascendendo a funções, tais como deputados, vereadores etc., reservadas noutros sítios a naturais, sem que isso cause qualquer engulho ao povo da nossa ilha. Mas continuamos de pé, caboverdianamente firmes,  e quando criamos um movimento de regionalização o nosso estandarte é o de Cabo Verde, não de São Vicente, porque o objectivo é pôr termo às assimetrias e lutar por um país com igualdade de oportunidades em todas as ilhas”.
     Enfim, Luiz Silva recorda que “a nossa caboverdianidade é inquestionável”, e com justa razão, atesta a legitimidade moral que assiste à ilha de São Vicente para denunciar as políticas que nas últimas décadas cavaram o fosso entre as ilhas e comprometem o futuro com que toda a população cabo-verdiana sonhou. 

(1)    WAHNON, Jonas, “Notas do Canhenho de um Caboverdiano”, Julho/1957
(2)    Idem, Ibidem 

Junho de 2016

José Fortes Lopes 
Sobre a inoportunidade e a impertinência de Estatutos Especiais em Cabo Verde: Perguntas e Respostas (1ª Parte)

José Fortes Lopes (artigo publicado em Junho de 2016)

     Este artigo estava a ser preparado quando surgiu a oportunidade de colaboração no Dossiê Especial do Jornal A Semana, nº 1234, de 10 de Junho de 2016, sobre o Estatuto Administrativo Especial para a Praia - Um Tema de Difícil Digestão. Recorde-se que o actual Governo, em função desde Abril de 2016, prometeu levar à Assembleia Nacional, com o apoio político da líder do PAICV, e da bancada parlamentar deste partido, um diploma que viabilize a atribuição de um Estatuto Administrativo Especial para a cidade da Praia (EAEP).

Um acordo tácito ou táctico entre o MpD e o PAICV?
     Seja qual for natureza intrínseca do acordo partidário sobre este Estatuto, o processo é desde logo questionável do ponto de vista da igualdade de direitos e oportunidades que a Lei Fundamental salvaguarda como princípio inviolável. Invoca-se agora que o EAEP é um direito que ficou consagrado na revisão constitucional de 1999, e que até agora só não foi levado à prática devido a divergências políticas entre o MpD e o PAICV. No entanto,  se os defensores deste Estatuto se escudam na Constituição para reclamar a sua implementação, não parecem incomodados com a possibilidade de ele poder estar ferido de ilegitimidade constitucional.
     Na verdade, como é possível que uma Constituição acolha um estatuto de privilégio violando o normativo genérico que igualiza os seus cidadãos, e implicitamente as comunidades, no plano dos direitos? Se desde 1999 os partidos não se tinham consensualizado sobre esta matéria, é porque provavelmente pairava na sua consciência algum constrangimento ético-político por algo que fora decidido sem a necessária fundamentação no quadro democrático e à margem das prioridades nacionais. Sim, porque não é crível que em 1999 a capital do país estivesse tão assoberbada com problemas urbanísticos insolúveis com a gestão corrente que justificassem uma medida constitucional cautelar. Contudo, se havia já à essa data sinais prenunciadores do crescimento anómalo da capital, a solução mais correcta teria sido cortar a raiz do mal desconcentrando o aparelho do Estado e descentralizando a política nacional. Esta teria sido a solução recomendada pela ciência política moderna e pela racionalidade da administração pública.
     Mas não, fez-se precisamente o contrário: assegurar na letra da Constituição o futuro de uma capital que já se concebia como a única realidade política do país. Tudo feito à socapa, aproveitando uma conjuntura nacional de relativo apaziguamento cívico para satisfazer os anseios de uma nomenclatura política de duas faces mas convenientemente consensual na concentração dos seus interesses partidários e pessoais. Mais uma vez se questiona se a Constituição não foi subrepticiamente armadilhada para servir determinados interesses. Obviamente que ninguém se lembrou na altura de incluir também a Regionalização na Constituição!!!
     Posto isto, é irrecusável não considerar a urgência em atacar este problema como uma apressada medida cautelar face à proposta de regionalização que o primeiro-ministro prometeu levar à discussão no parlamento. A ordem ciciada nos bastidores terá sido, certamente, reforçar antes de mais os privilégios da capital antes que qualquer reforma geral do Estado os ponha em causa. A ser verdade, o cidadão atento terá razões para crer que o país está preso numa teia de falsidades e manipulações tentaculares, com a política nacional divorciada dos princípios e transformada em autêntica falácia. Tácito ou táctico o acordo entre os dois principais partidos, a verdade é que não foi o imperativo nacional a motivar a sua convergência sobre esta matéria mas exactamente aquilo que tem sido a causa dos problemas com que o país se debate – o centralismo e a concentração.
     Mas, mesmo que estivesse em causa um imperativo nacional e não o interesse exclusivo de uma cidade, está a pecar-se de forma flagrante, não só em termos de timing como de oportunidade. É que independentemente da justeza ou não desta medida, mandaria o bom senso que, no mínimo, tudo fosse adiado até conseguir-se levar avante o programa de reformas que o Estado cabo-verdiano reclama. E mesmo assim só depois de alcançar-se algum êxito nas políticas públicas, ao encontro das expectativas criadas no eleitorado pela campanha eleitoral levada a efeito pelo MpD. Não restam dúvidas de que esta proposta está fora do contexto, à revelia do debate sobre as reformas do Estado que o governo assumiu publicamente e com todas as letras. Recorde-se que as linhas de força dessas reformas passam pela descentralização, regionalização e desconcentração do Estado, processo que forçosamente tinha de adiar para as calendas gregas a concessão de qualquer estatuto especial a esta ou outra cidade qualquer. Além do mais, em nenhuma altura da campanha eleitoral se ouviu falar de Estatuto Especial para a Praia, de modo que este assunto bastante polémico, controverso e não consensual tem o efeito de um autêntico murro no estômago do cidadão que está atento aos primeiros passos deste governo.
     A associação Pró-Praia defende que “será justo dotar a Praia de um Estatuto Especial, à 
semelhança de outras paragens do mundo, designadamente Londres, Brasília”. No caso da França, esta afirmação não é verdadeira, pois não é só Paris que goza do (‘statut particulier’, e não ‘statut spécial’) mas sim as três grandes aglomerações francesas: Paris, Marselha e Lyon. Se quiséssemos ‘copiar’ a França, deveríamos fazê-lo como deve ser, e não ser maus copiadores como é nosso hábito, estendendo este estatuto às aglomerações relevantes de Cabo Verde. 
     De qualquer modo, mandaria o bom senso, tendo em conta o novo contexto político, já que o MPD abraçou a causa das Reformas e da Regionalização, que o projecto de Estatuto Especial para a Praia fosse suspenso ou cancelado. Qualquer novo figurino para esta cidade e a sua região metropolitana deveria ser incluído no Pacote Regionalização, tudo reenquadrado na nova arquitectura administrativa que se pretende para Cabo Verde (logo para Santiago). Urge, portanto, emendar a Constituição e abolir esse artigo discriminatório.


Estatuto Especial, moeda de troca da Regionalização?
     Se a intenção é usar a Regionalização como moeda de troca para viabilizar o tal Estatuto Especial para a cidade da Praia, assiste ao cidadão toda a razão para denunciar o que tem todos os contornos de uma mistificação política. Tal é a sua evidência que faz lembrar o gato escondido com o rabo de fora, com o descaro a atingir o limite de nem sequer se cuidar das aparências. Naturalmente que a mais elementar racionalidade política recomendaria que, havendo uma eventual necessidade de resolver o problema da cidade-capital, o mesmo fosse enquadrado de forma transparente e consensual no programa de reformas que a globalidade do país exige. Porque o problema específico da cidade da Praia não é de maior criticidade e urgência que o de ilhas que foram votadas a uma condição de menoridade e onde grassa o desemprego e outros males sociais. A cidade da Praia não é uma realidade social exclusiva e arredada do resto do país; ela tem de ser vista como parcela de um todo que precisa ser repensado, reajustado e reformulado, segundo os parâmetros e exigências da nossa tão necessária e exigível sustentabilidade económica.
     Se não veja-se. Logo na primeira sessão da Assembleia nacional, sem surpresa, o PAICV votou contra o programa do governo, mas, no entanto, mostrou o seu acordo para a aprovação do Estatuto Especial para a Praia, o que prova que a política cabo-verdiana está dominada pelo lobby concentrado nessa cidade, relegando para uma prioridade menor o vasto e complexo conjunto dos problemas nacionais. Os dois principais partidos naturalmente que divergem relativamente aos seus programas políticos, se não na sua substância pelo menos na forma, mas quando está em causa o interesse da cidade e da ilha onde erigiram o poder concentrado, aí não há divergência, pois dão-se as mãos e as intenções se entrelaçam.
     Ademais, é preciso lembrar que quando o PAICV esteve no poder, não avançou com o “dossier” talvez por considerar a conjuntura pouco favorável. Acredita-se que, mesmo no seu seio, o projecto não tenha sido consensual, levando ao congelamento ou protelamento da proposta (para após as eleições), por momentânea conveniência política e também pela pressentida oposição de uma parte esclarecida da opinião pública. Não se pode excluir, por outro lado, que tenha havido jogadas políticas de bastidor entre os dois partidos, sopesando as suas prováveis perdas e ganhos eleitorais nas legislativas que se aproximavam, mas salvaguardando um interesse comum que agora se revela com toda a evidência.
     Presume-se que tanto um como outro partido, nas suas íntimas elucubrações, nunca digeriram bem com o insucesso de não se ter viabilizado, em perfeito conluio, o Estatuto, durante o anterior governo, e agora ambos se comprazem com o terreno desminado no seio do PAICV, com a luz verde dada pela nova direcção deste partido. Os dois partidos devem interrogar-se silenciosamente sobre a razão de tanta dilação, tanto tempo desperdiçado antes de conseguirem o desiderato há muito tempo ansiado. Esta é a conjectura que fará qualquer cabo-verdiano que, atónito, assiste a esta imparável e nunca imaginada metamorfose na sua terra: Cabo Verde reduzir-se quase exclusivamente a uma única realidade social e política. A capitalidade, a demografia e a dimensão geográfica são os únicos factores de decisão que pesam no critério dos dois partidos do arco do poder, que decididamente passaram a ignorar a diversidade, a cultura e a história das ilhas. Afinal, estes dois partidos acabam por ser a mesmíssima coisa, os dois saídos da costela do partido pai, o PAIGC. É iniludível que ambos estão na génese do Estado concentrado.

     Os custos e benefícios escondidos do Estatuto Especial
     Ao ler as justificações para a atribuição de Estatuto Especial para a cidade da Praia, ressalta do seu argumentário que, face aos desafios actuais, a capital tem “de ser uma cidade mais inclusiva, que consiga resolver os problemas ainda básicos que existem nos bairros e requalificação urbanas, acesso à água e ao saneamento, melhorar “qualitativamente a qualidade”, e bem assim “ transformar a Praia numa cidade segura”.
     Tenta-se fazer crer ao cidadão que a solução dos problemas da cidade capital passa indeclinavelmente por se lhe afectar um Estatuto Especial, mas ninguém se interroga sobre o que fazer no caso de nem mesmo assim se resolverem os vários problemas que fazem com a Praia se atropele a si mesma. As tarefas de gestão autárquica com que se debate a Praia são as mesmas que se cometem a qualquer câmara municipal em todo o mundo, independentemente da dimensão da urbe, variando apenas o modo de articulação das estruturas executivas e a eficiência do mando político. Ficaremos na expectativa sobre o que fazer uma vez demonstrada a inocuidade deste Estatuto, mesmo com mais recursos disponibilizados (ao que consta, 0,005% das receitas do Estado) e com a atribuição ao presidente da câmara do estatuto de ministro. Perante um provável insucesso, vai-se aumentar o montante dos recursos ou elevar o estatuto do presidente ao do primeiro-ministro? Entretanto, enquanto o Estado tem os olhos, os ouvidos e o sistema nervoso central num único lugar, o resto do país é apenas paisagem física para a composição de uma dimensão territorial que justifique os montantes das ajudas internacionais.
     Há 60 anos Jonas Whanon (1) já acusava a superficialidade da elite administrativa instalada na cidade da Praia, totalmente desgarrada, vivendo numa redoma dourada, ignorando a realidade da ilha e do arquipélago. Escreveu: ” ... talvez tivesse tomado como rivalidade ou paixão de S. Vicente para com a Praia, o facto de todos lamentarem que se esteja ultimamente desenvolvendo a cidade da Praia com inúmeras construções urbanas de preço elevadíssimo (milhares de contos) sem olhar a pobreza do meio e com manifesto desprezo pelas necessidades mais prementes das outras ilhas; nomeadamente S.Vicente, que pouco ou nada vê dos 75% das receitas totais da Província com que contribui anualmente para equilibrar o orçamento....”. “.....O que existe realmente – e sabe o sr. Dr. Bento Levy perfeitamente – é o desejo sincero de toda a gente, que haja uma aplicação mais útil e de melhor alcance económico dos dinheiros da Província para o bem-estar do seu povo e orgulho de Portugal; o que existe ainda é o desejo de que os indivíduos que se encontram à testa dos serviços públicos na Praia tenham uma influência mais benéfica na administração da Província em lugar de pretenderem, por  norma “colonialisar" S. Vicente negando-lhe sistematicamente todos os meios de progresso, sem quererem lembrar-se de que, se um dia faltassem à Província as receitas desta ilha, toda a máquina administrativa do arquipélago se desmantelaria. Os referidos funcionários não se dão conta de quanto maior fôr o desenvolvimento de S.Vicente, maiores serão as suas receitas que irão influir em beneficio de S. Tiago como das demais ilhas suas irmãs. ...”
     Pois é, 60 anos já lá vão e os problemas cresceram exponencialmente e as mentalidades não mudaram, os mesmos preconceitos e a mesma burocracia mesquinha com a máquina emperradora do Estado a travar o progresso e o crescimento mais igualitário do país.
     As soluções que agora pretendem descortinar mediante um estatuto especial, podem ter o efeito semelhante ao medicamento que se aplica para tratar a doença e que só acaba por a agravar. O caos urbanístico da Praia e todos os problemas funcionais e sociais que se lhe associam, têm uma relação directa com o centralismo e a concentração do Estado, tanto mais censurável quanto é perfeitamente claro que tudo isso foi à custa de milhões de dólares investidos ao longo de quarenta anos e que nem sequer curaram do desenvolvimento equilibrado dentro da própria ilha de Santiago.
     A cidade da Praia é hoje o espelho do que não se deve fazer e que só tem paralelo com o que se passa em certas capitais da África continental. Os cabo-verdianos bem podiam ter emulado o exemplo dos Açores e das Canárias, suas irmãs da Macaronésia, onde prevaleceram princípios de outra ordem para promover o desenvolvimento do território. A Praia tinha inevitavelmente de se tornar na aberração que hoje se lhe reconhece e se pretende corrigir por artes mágicas com um estatuto especial. Mas o que verdadeiramente está em equação é alimentar os “lobbies”, as empresas passivas e pouco empreendedoras que vivem à sombra do Estado absorvendo inutilmente recursos que deviam ser primacialmente direccionados para o investimento. É indisfarçável que este desejado Estatuto resulta da pressão das elites que se especializaram em transacionar influências e comprar favores e posições junto do poder. Como vem sendo denunciado frequentemente, o poder em Cabo Verde está  capturado pelas elites, que as mais das vezes submetem o interesse da colectividade aos dos partidos e corporações, mercê das fragilidades e alçapões que propositadamente criam nas engrenagens do aparelho do Estado. É esta mesma elite nascida do radicalismo, que cultivou todos os “ismos” e domina hoje a escola do Pensamento Único, que se mostra timorata ou hesitante  em relação às reformas de que carece Cabo Verde, mas sempre vigilante e actuante quando se trata da defesa do seu feudo.  Tudo o que se concentra, se reúne e se circunscreve num reduto, mais tarde ou mais cedo constrói as suas próprias redes de protecção e auto-defesa, desliga-se do exterior e entra num estado de autêntico autismo. Passa a existir para acudir prioritariamente aos seus interesses, faz ouvidos moucos a tudo o que contraria a sua visão da realidade, ignora o que está para lá do seu estreito horizonte. O mundo resume-se à dimensão da ilha e do bairro. É nisto que se transformou o país, Cabo Verde.
     Portanto, os cabo-verdianos não podem aceitar mais esta imposição do centro do poder político, que, olhando para o espelho e deparando com o monstro que construíu e constrói todos os dias, reclama agora um estatuto que lhe confere privilégios suplementares e de forma permanente, o que só pode ser classificado como um esbulho eterno de dinheiros que devem ser aplicados com critérios de justiça e igualdade para o desenvolvimento do país integral.


(1)    WAHNON, Jonas, “Notas do Canhenho de um Caboverdiano”, Julho/1957

Junho de 2016
José Fortes Lopes


"Notas do canhenho de um caboverdiano"
                 Jonas Wahnon 1957 (artigo re-publicado em  Junho de 2016))


..."Uma carta de Jonas Wahnon, um importante comerciante da praça mindelense (proprietário da célebre padaria que ficava na Chã de Cemitério em S. Vicente) datada de 60 anos, ao seu amigo Bento Levy um importante advogado e político, natural da Praia-Santiago, e influente deputado de Cabo Verde na então Assembleia Nacional em Lisboa, em pleno regime de Estado Novo. Ambas as figuras de destaque foram homenageadas nos Blogues ArrozCatum e Praia de Bote

Sob este titulo, vem publicado no nº 93 do "Cabo Verde” um extenso artigo da autoria do Exmo. Sr . Dr. Bento  Levy, no qual, entre vários assuntos,   este  s r.  não só  insinua  que existe da parte  dos habitantes de S. Vicente uma grande rivalidade com a Praia, senão também que, pessoas responsáveis, devido à paixão que as move, teriam tentado ou vão tentar a mudança da Capital da província para S. Vicente.
O sr. Dr. Bento Levy atirou pois, a luva  sobre duas questões, uma das quais, a transferência bastante oportuna e pede que “responda quem  tiver... resposta” . -. . . .
Pela parte que me toca, aceito o repto, esperando que outros se me seguirão breve na resposta que também tiveram, por haver chegado o momento de S.Vicente acordar e sacudir de si os parasitas que vêm impedindo o seu progresso e o progresso desta Província, não obstante o carinho que lhes vem dispensando o Governo da Nação.
0 sr. Dr. Bento Levy é uma criatura que merece maior consideração, e por isso me repugna acreditar que, intencionalmente, tenha querido desvirtuar os factos, pretendendo criar um problema – o da rivalidade  com a Praia, que jamais  existiu no espírito dos habitantes de S. Vicente –, apenas com o propósito deliberado de estabeIecer confusão e colocar os incautos em posição perante o estudo dos problemas que enfrenta Cabo Verde. 
E o sr. Dr. Bento Levy se desse ao trabalho de estabelecer paralelo entre as duas cidades, Praia e S.Vicente, logo veria o erro que labora, pois nunca S.Vicente poderia alimentar qualquer rivalidade com a Praia. O inverso é que seria admissível. Senão, vejamos:
S.Vicente como é de todos sabido – e o sr. Dr. Bento Levy o ignora,  contribui para o erário com cerca de 75% das receitas totais da Provincia de Cabo Verde. Isto quer dizer, sem a mais leve contestacão, que S.Vicente é que alimenta a quase totalidade da máquina  administrativa do arquipélago, inclusivamente  a da Praia, não obstante ser a ilha de S.Tiago o seu maior centro populacional, mas também, diga-se de passagem o maior centro de pessoas analfabetas.
S.Vicente é a única ilha desta Província pela qual passam diariamente, sem interrupção, muitas dezenas, senão centenas de estrangeiros e nacionais ou sejam os passageiros e os tripulantes dos inúmeros vapores de todo o mundo que escalam o seu porto.
S.Vicente é a única ilha visitada pelos mais altos vultos políticos nacionais e estrangeiros, como sejam Presidentes de Repúblicas, Reis, Príncipes, Ministros, Embaixadores,  e t c . ,
Bem como jornalistas de todas as nacionalidades, professores, cientistas, turistas, possivelmente, até observadores, salvo as duas vezes em que Sua Exª Presidente da nossa República bem como a sua comitiva também visitara a Praia.
S.Vicente é a única ilha do arquipélago visitada frequentemente pelos maiores e mais importantes navios de guerra de todo o mundo, que  transportam os mais  destacados oficiais (almirantes, comodores, etc.).
S. Vicente é a única ilha de Cabo Verde que possui instalações para o abastecimento de combustíveis à navegação, bem como Instalações de cabo-submarino  que a ligam e ligam Cabo Verde a todas as partes do mundo e cujos valores se poderão calcular em centenas de milhares de contos.
S. Vicente é a única ilha do arquiplago que se encontra em permanente contacto com o exterior, através dos navios paquetes outros vapores que escalam diariamente o seu porto.
S. Vicente é a única ilha que possui valor militar, pela sua situação geográfica e pelos valores materiais avultadíssimos que nela se contêm.
Em S. Vicente,  por isso, é que se encontram instalados o Comando Militar de Cabo Verde e a maioir concentração de forças militares e aquartelamentos da Província.
Em S.Vicente  é que se encontram instalados os consulados de quási todas as nações.
En S.Vicente é que, devido à sua irrefutável importância, o governo da nação vem investindo dezenas de milhares de contos  na construção de um cais acostável; e finalmente
S. Vicente é a única ilha do arquipélago à qual todos – nacionais e estrangeiros – se referem quando tenham de mencionar a terra portuguesa do Atlântico qua liga a Europa às Américas ou quando se tenha que referir o elo que liga Brazil a Portugal.
0 sr. Dr. Bento  Levy talvez tivesse tomado como rivalidade ou paixão de S. Vicente para com a Praia, o facto de  todos lamentarem que se esteja ultimamente desenvolvendo a cidade da Praia com inúmeras construções urbanas de preço elevadíssimo (milhares de contos) sem olhar a pobreza do meio e com manifesto desprezo pelas necessidades mais prementes das outras ilhas; nomeadamente  S.Vicente, que pouco ou nada vê dos 75% das receitas totais da Província com que contribui anualmente para equilibrar o orçamento.
Talvez tivesse tomado como rivalidade, o facto de se lhe haver referido durante a sua estadia em que a todos agradaria aqui, ver a ilha de Santiago devidamente apetrechada com boas estradas, bons portos, celeiros, etc, em lugar dessas obras de fachada que já se construíram ou se vêm construindo na Praia em ritmo acelerado, obras sem significado algum para o fomento dessa ilha nem da Província, antes constituindo verdadeiro peso morto na sua economia, para único gáudio dos habitantes dessa cidade, que são, praticamente, as únicas pessoas que as vêem, pois estranhos, só se foram os tripulantes de dois pequenos vapores da Cuf que escalam mensalmente o porto.
Talvez ainda tivesse o Dr. Bento Levy tomado como rivalidade, o facto de havermos enumerado as referidas obras, as quais são mais ou menos constituídas pelos seguintes:
Um palácio da Saga, um grandioso palácio de Justiça (que só retretes dizem possuir 18), um grandiosíssimo Liceu para a instalação da delegacia do Liceu Gil Eanes instituída ultimamente na Praia (consta que com vista à transferência da Sede que se encontra instalada em S. Vicente), um cineteatro, prédio para magistrados, inúmeros prédios para outros funcionários, blocos de casas para particulares, etc, além de varios automóveis distribuidos  a quási todos os chefes de serviços, como se coubesse ao Estado construir de novo uma cidade, onde os particulares pouco ou nada vêm fazendo para o seu desenvolvimento como se esta Província andasse a nadar em dinheiro e já não houvesse mais nada que fazer para o fomento das ilhas.
Pelo que, pois, se vê, o sr. Dr. Levy ou está enganado ou quer enganar os outros. Não existe, nunca existiu nem podia mesmo existir rivalidade de S.Vicente com a Praia, uma pequena cidade composta apenas por quatro pequenas ruas e cujo mérito  é ter a capital da Província, porque nem como escoadouro natural dos produtos produzidos pela ilha de S.Tiago serve.
O que existe realmente – e sabe o sr. Dr. Bento Levy perfeitamente – é o desejo sincero de toda a gente, que haja uma aplicação mais útil e de melhor alcance económico dos dinheiros da Província para o bem-estar do seu povo e orgulho de Portugal; o que existe ainda é o desejo de que os indivíduos que se encontram à testa dos serviços públicos na Praia tenham uma influência mais benéfica na administração da Província em lugar de pretenderem, por  norma “colonialisar" S. Vicente negando-lhe sistematicamente todos os meios de progresso, sem quererem lembrar-se de que, se um dia faltassem à Província as receitas desta ilha, toda a máquina administrativa do arquipélago se desmantelaria.
Os referidos funcionários não se dão conta de quanto maior fôr o desenvolvimento de S.Vicente, maiores serão as suas receitas que irão influir em beneficio de S. Tiago como das demais ilhas suas irmãs.
Ao contrário do que acontece na Praia, onde as construções urbanas se vêm fazendo (pelo Estado, é claro, da forma mais acelerada que imaginar se possa, S.Vicente possui um pequeníssimo Tribunal numa casa quási  secular que dantes era habitação particular e que não é património do Estado; O Liceu não obstante fundado há  40 anos, funciona num prédio que foi, sucessivamente quartel, correio, Liceu, Câmara, Fazenda e não sei que mais; não possui nenhum prédio para magistrados nem outros funcionários: os cineteatros que existem são particulares, como particulares são  quási todas as obras de valorização da cidade; não tem um só hotel; não tem esgoto; não tem água canalizada; a luz é precária; os pavimentos das ruas são uma miséria, não possue estradas dignas deste nome, e os caminhos carroçáveis que existem  aIguns encontram-se há anos intransitáveis, etc. etc.
A burocracia da Praia não quer compreender que sendo S.Vicente a sala de visitas da Província de Cabo Verde, a qual, por força, manifesta perante estranhos tudo quanto de bom ou de Mal pratica a nossa administração pública, tem, necessariamente, de merecer mais e melhores cuidados, sobretudo para evitar que observadores mal intencionados, nesta época conturbada do mundo se tenham de referir às Provincias ultramarinas de Portugal pelo que veêm nesta ilha, aquilatandos-as todas por igual.
Quanta à mudança da capital da Provincia de para S. Vicente, pensa-se nisso efectivamente e oportunamente se apresentarão respectivas razões aos poderes Centrais na Metrópole para resolverem como fôr mais conveniente.  Mas pensa-se nisso não por rivalidade com a Praia nem por paixão como insinua o sr. Dr. Bento Levy no seu infelicíssimo artigo. Pensa-se por estar dentro da sua boa lógica, está dentro da sua boa razão e porque a Capital, a continuar na cidade da Praia como até aqui, apenas contribuirá como tem sempre contribuído com o exclusivismo desta cidade, para a estagnação da Província e o retrocesso de sua maior fonte de receita.
S. Vicente, o que não admite dúvidas, é a ilha economicamente mais importante da Província de Cabo Verde,  a que possui maiores valores materiais e culturais, a que se encontra em permanente contacto com estrangeiros e com a metrópole através do magnífico e afamado porto, e é onde as necessidades burocráticas, digam o que disserem, mais se fazem sentir, e a permanência do governador mais seria de desejar.
A Praia fica-lhe distante, separada por mar 160 milhas, sendo tão escassas as suas comunicações que ainda há pouco tempo era muito mais fácil a comunicação de S. Vicente com a Metrópole ou com o Japão do que com ela.
Além disso, o intercâmbio comercial com as outras ilhas de Sotavento, nomeadamente o Fogo e a Brava, é muito maior com S. Vicente, que todos preferem, pois o comércio com S. Vicente é muito mais vasto, os seus preços são mais acessiveis, existem mais facilidades de crédito, etc.
 Assim, nada justifica que a Capital da Província se mantenha Praia. Não há  duas opiniões a este respeito salvo a do sr. Dr. Sento Levy. Isto não é ter rivalidade com a Praia nem com os habitantes de S. Tiago. Tão pouco se encontra o remédio no maior intercâmbio entre as populações das duas ilhas, o que de nada valeria com o de nada tem valido, sabido que a deslocação de S. Vicente até Praia tem sido mais frequente do que imagina o sr. Dr. Bento Levy.
Afirmar o contrário será pelo gosto apenas de estabelecer um ambiente de permanente desconfiança entre todos, o que, agora, conforme declara o sr. Dr. Bento Levy no seu artigo, poderá, efectivamente, “gerar incompreensão e provocar até ressentimentos”.
É o que se me oferece dizer por enquanto, a bem de Cabo Verde e da Nação a que me honro e orgulho de pertencer.

                                                                              S. Vicente  5 de Julho de 1957
                                                                                              Jonas Wahnon
                                                                                              S. Vicente

                         Cabo Verde

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O “CRIOULÊS”, O PORTUGUÊS E O CRIOULO

Adriano Miranda Lima


    Tive ocasião de ler um interessante artigo da autoria da Drª Ondina Ferreira, intitulado “CRIOULÊS”, publicado no jornal “Expresso das Ilhas”, de 10 de Maio do corrente. Escreve a autora: “Tem vindo a insinuar-se discretamente, paulatinamente, diria, quase envergonhadamente, mas sempre em crescendo, uma nova língua – chamemo-la “Crioulês”, por comodidade de expressão – uma forma particular de comunicar e de se fazer entender, utilizada, sobretudo, nos “media”, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores da terra, que, parecendo, não querer exprimir-se nem em Crioulo, nem em Português, ou fugindo a isto, optam e fazem-no através desta espécie, híbrida, de compromisso, para uma fala situada entre o Crioulo e o Português.”
    Contudo, esta revelação não constituiu qualquer surpresa para mim, apesar de não estar a viver em Cabo Verde há longos anos. É que, em 2003, estando de visita à minha ilha natal, S. Vicente, acompanhei pela rádio nacional uma mesa redonda em que esteve presente o Director Geral das Alfândegas e um representante do Ministério das Finanças. Estava em discussão a implementação de um novo regime fiscal e aduaneiro e recordo-me bem de que a língua veicular utilizada pelos intervenientes era mais ou menos o “Crioulês”, conforme a designa Ondina Ferreira. O debate destinava-se a esclarecer o público e a terminologia técnica predominava na interlocução, como o impunha a natureza específica dos assuntos em presença. Em consequência disso, os vocábulos resultavam na sua quase totalidade em Português, só fugindo, de um modo geral, à norma idiomática, as partículas de ligação, os prenomes e artigos, normalmente invariáveis em género, e as flexões verbais. Contudo, quem distraidamente estivesse a ouvir o debate e não conhecesse a origem dos intervenientes, seria à partida induzido a identificar uma conversação em língua portuguesa, e só instigando mais a audição notaria as destoantes particularidades do acessório linguístico. Isto porque, mesmo que se não quisesse, a matéria em discussão, predominantemente técnica, não podia evitar o uso alargado do vocabulário (ou jargão) técnico português, porquanto o Crioulo, até agora, não lhe encontrou qualquer tradução ou sucedâneo.
    Tenho de confessar que acompanhei o debate com atenção porque o Director Geral das Alfândegas foi um estimado colega de liceu e a oportunidade de o ouvir servia para eu matar as saudades daquele que foi um bom companheiro de carteira. Mas houve um momento em que pensei: “Que diabo, se o intuito é facilitar a compreensão do cidadão comum menos instruído, consegue-se o mesmo desiderato falando integralmente em Português.” Porque a dificuldade da percepção radicava, não no acessório formal da linguagem, mas sim naquela terminologia técnica, que em princípio seria inacessível a grande parte dos ouvintes. É claro que tive oportunidade de assistir nos “media” a outras mais intervenções em “Crioulês”, mas o referido debate, pela sua duração, funcionou para mim como uma espécie de ensaio revelador de uma nova forma de comunicar, daí que, repito, não me tenha surpreendido o conteúdo do artigo de Ondina Ferreira.
    A autora refere que o “Crioulês” resulta de um processo iniciado há, sensivelmente, 30 anos, vindo, no entanto, à luz, com mais notoriedade e efusão, por alturas dos anos quentes de 1974 e 1975, quando se tornaram correntes os comícios políticos. Concordo efectivamente que o período de afirmação revolucionária possa ter determinado a eclosão do que já estava em fase larvar algum tempo antes. Mas sou inclinado a situá-lo em data muito mais recuada, visto lembrar-me perfeitamente de que, já no meu tempo do liceu, era comum utilizarmos um recurso linguístico similar ao “Crioulês” para abordar algumas questões escolares. Por exemplo, a seguir às provas escritas de qualquer disciplina, era frequente confrontarmos as respostas e soluções dadas por cada um e, nessas alturas, libertos do formalismo impositivo da sala de aula, o Português puro deixava de ser a língua veicular dos nossos pontos de vista porque o Crioulo logo se encarregava de tomar conta de algumas particularidades do discurso, ainda que o vocabulário presente fosse maioritariamente em língua portuguesa, por razões que são tão óbvias como as que se aplicam aos exemplos citados por Ondina Ferreira e ao caso do debate por mim referido. É por este motivo que sou levado a situar a origem do “Crioulês” em data provavelmente muito anterior à da independência, se bem que a necessidade imediata de comunicação pública possa ter ocasionado o momento decisivo para libertá-lo da sua timidez, emprestando-lhe uma roupagem pseudo-formalizante.
    Como interpretar o fenómeno do “Crioulês” numa altura em que vem sendo ventilada a oficialização do Crioulo e sua ascensão a língua do Estado? O “Crioulês” pode considerar-se um elemento de real interesse no laboratório de ensaio onde decorrerão os estudos e as ponderações de ordem linguística que irão propiciar os primeiros contornos da nova língua oficial do Estado de Cabo Verde? Não me parece. Esta nova linguagem, que tanto pode designar-se “Crioulês” como “Portucriol”, por mais próxima do Português que do Crioulo, não tem a integridade genética da língua de berço cabo-verdiana e, portanto, pouco relevo deverá assumir na definição da personalidade morfológica, semântica e fonética daquela que, como é pretensão de alguns, poderá vir a ser, ou não, a principal língua oficial do país. Caso contrário, pouco sentido faria banir o Português como língua oficial, ou secundarizar a sua importância, já que entre ele e o “Crioulês” não existe um diferencial linguístico muito significativo ao nível do vocabulário.
    Estará o “Crioulês” próximo de alguma linguagem de compromisso que Baltasar Lopes ou Teixeira de Sousa, além de outros, podem ter insinuado em algumas formas de expressão, respectivamente, nos romances Chiquinho e Ilhéu de Contenda? Também não me parece. Por enquanto, o “Crioulês” apenas se tem limitado à comunicação verbal, ao passo que nos citados romances ganha forma um conluio entre o português formal e alguma fala popular, ou seja, de raiz crioula, que é algo distinto do “Crioulês”. É evidente a diferença entre o “Crioulês” e aquilo que é uma manifestação diatópica. Naqueles romances, o que existe é, pois, algum vocabulário e expressão de matriz regional, que surgem apenas em determinados contextos socioculturais, não tendo lugar na comunicação mais erudita. Neles, o diálogo entre os personagens de estratos culturais mais altos é sempre em Português padrão e nas circunstâncias apropriadas com doses de conveniente erudição. Mas em caso algum se nota deriva à norma do Português, como no “Crioulês”.
    A propósito, pergunto a razão por que o cabo-verdiano é o único povo de entre os PALOP que parece ter, como sempre teve, um certo constrangimento em utilizar de forma natural a língua portuguesa, ao não encará-la apenas como aquilo que ela é: uma simples língua veicular. E isto acontece mesmo nos casos em que se domina a língua com natural desenvoltura. Tem graça recordar-me agora das cartas que em criança o meu pai me escrevia do estrangeiro e em que não se cansava de advertir: “Adriano, procura falar sempre em português, mas falar sem receio, sem vergonha, e com à vontade”. É evidente que a recomendação era perfeitamente inútil porque não me via em circunstância alguma a conversar em português com os meus companheiros de escola ou de brincadeira. Mas a resposta à questão atrás aflorada bem sabemos qual é. O Crioulo não é apenas o instrumento idiomático “que acompanha o ilhéu desde o berço até à tumba”, como bem disse Baltasar Lopes, é também uma das marcas inconfundíveis da sua cultura. Só que a situação de bilinguismo em que o cabo-verdiano vive cria-lhe um conflito psicológico permanente, em que o Crioulo é o refúgio natural e imprescindível e a língua portuguesa uma vizinha com quem tem de conviver. Este problema parece irresolúvel, porque a língua cabo-verdiana, qualquer que seja, e mesmo que venha a tornar-se oficial, nunca poderá abdicar da estreita convivência com o Português, até porque, segundo parece anunciado, este continuará como segunda língua oficial. Esta salvaguarda configurará certamente uma das condições estatutárias, ou pelo menos de ordem cultural, para que Cabo Verde possa continuar a ser membro natural da CPLP, ainda que com alguns traços dissonantes, com todo o seu significado real e simbólico. Mas uma comunidade com mais de 200 milhões de falantes em Português, veiculando a sétima ou oitava língua hoje mais falada no mundo, pode gerar uma acção centrípeta cujo efeito não será certamente despiciendo. Só o futuro o dirá, mas os sociolinguistas têm de estar atentos.
    Provavelmente, o “Crioulês” pouco vem acrescentar ao panorama linguístico cabo-verdiano, porque é mais fácil antevermos cenários, ou hipotéticas resoluções administrativas, visualizando o comportamento da língua apenas na esfera da comunicação verbal. Por enquanto, é onde apenas medra o Crioulo e o “Crioulês”. O imbróglio surge quando entramos no terreno da escrita.
    Por tudo isto, não fazer uma aposta forte e assumida no ensino e na comunicação em Português só vai estorvar o futuro do nosso povo, já que os nossos parceiros pelo mundo fora, a começar pela CPLP, não irão certamente aprender o Crioulo ou o “Crioulês” só para nos compreenderem.

2014

                                                 
OFICIALIZAÇÃO DO CRIOULO: REFLEXÃO SOBRE AS SUAS CONSEQUÊNCIAS

Adriano Miranda Lima


    Em texto publicado anteriormente (princípios de 2005), tive ocasião de expressar a minha opinião sobre esta temática. Não dispondo à data de nenhuma informação concreta sobre as intenções em vista, limitei-me a uma abordagem das consequências perigosas de uma provável subalternização da actual língua oficial.
    Entretanto, tive oportunidade de ler o livro “A Construção do Bilinguismo”, da autoria do Dr. Manuel Veiga, passando assim a conhecer o essencial do seu pensamento sobre uma proposta viabilizadora do projecto. No seu trabalho ensaístico, aliás rico de conceitos e com elevado nível de exposição, o autor mostra uma visão rasgada e decidida sobre o caminho a seguir, servida pelo seu múnus académico e profissional em Linguística e Literatura. Contudo, espera-se que haja pluralidade na discussão desta questão tão séria como implicativa com o futuro de Cabo Verde.
    Confesso que a leitura do trabalho em apreço não faz regredir ou inflectir as minhas considerações anteriores. Retomo o tema, mantendo a minha análise ainda centrada mais nas prováveis consequências futuras do projecto do que na discussão conceptual. Antes de mais, ressalve-se que não está em causa qualquer medida tendente a prestigiar o nosso Crioulo. Julgo inatacável esse propósito, por ser do senso comum que ao Crioulo devem ser dadas condições para o seu progresso evolutivo, de modo a tornar-se, num tempo futuro, e se possível, uma língua capaz de mais altos voos na literatura e na comunicação formal. O Dr. Manuel Veiga propõe um plano para a consecução desse objectivo, mas nele não deixo de ver o risco provável de uma alienação futura da língua portuguesa ou do apagamento da sua importância no panorama linguístico cabo-verdiano. Aliás, não é uma leitura subliminar que nos diz que o Português passará à condição de “língua segunda, co-oficial e regional”. São as próprias palavras do autor que o estipulam.
    Assim, se a promoção do Crioulo for um sucesso em todos os domínios da sua funcionalidade como instrumento de comunicação, do que duvido, há razão fundada para presumir que não sobrará espaço para o Português, por um natural processo glotofágico que se inicia, susceptível entre línguas com substância matricial comum. Na verdade, o Crioulo é um dialecto românico.
    A afirmação sobre a desejada complementaridade entre as duas línguas, sustentada por Manuel Veiga com um enunciado de boas intenções, perde, no entanto, eficácia perante a dinâmica subjacente ao projecto dedicado ao Crioulo, em contraponto com a indefinição do verdadeiro espaço que competirá ao Português no ensino. É um facto que noutro passo da obra se diz: “Para o Português, a primeira etapa (da construção do bilinguismo) será a implementação do rigor do seu ensino com a metodologia de língua segunda e a introdução do rigor na sua aprendizagem”. Mas, há aqui, indisfarçável, um laivo de incoerência. Com efeito, se a carga horária passa a ser repartida, restando saber em que proporção, é inevitável que o Português não mais passará a dispor das condições inerentes ao ensino de primeira língua que antes detinha. E assim, é lícito interrogar como é que uma língua desde sempre aprendida logo no primeiro ano da escolaridade e veículo de todo o ensino posterior até aos mais elevados graus, passará, como língua segunda, apenas por “acrescido rigor”, conforme as palavras do Manuel Veiga, a reunir um mínimo de condições para se manter como ferramenta linguística eficaz. Isto parece simples panaceia para lograr um milagre. Mais, se enquanto primeira língua do ensino não consegue conquistar espaço preferencial no quotidiano informal dos cabo-verdianos, como pode prever-se que, depois de despromovida, vai conseguir esse desiderato e manter-se ainda como instrumento eficaz para outras funções nobres, como língua para o exterior?
    Claro que todas estas dúvidas só se colocam na antevisão de um cenário de sucesso absoluto das medidas propugnadas a respeito do Crioulo. O que mais se receia é que venha a criar-se uma situação ainda mais ingrata do que a de diglossia. Ou seja, não se consegue um verdadeiro triunfo com a promoção do Crioulo e entretanto comprometem-se os alicerces das estruturas seculares que sustentavam o ensino do Português. Seria uma autêntica regressão no tempo, que nos deixaria porventura numa situação de trágica inferioridade em relação aos nossos irmãos dos PALOP.
    Em suma, é iniludível o prejuízo que a língua portuguesa vai sofrer no quadro proposto para a construção do bilinguismo, não obstante as intenções propaladas no sentido da sua preservação. Entretanto, seja qual for o projecto a aprovar, atente-se na seguinte realidade:

 ̶  A CPLP (cerca de 240 milhões de almas) é tão vasta quanto diversificada na sua natureza antropocultural. Nenhum dos seus membros parece interessado em alterar a sua língua oficial ou condicionar o seu estatuto. Pelo contrário,  em Angola e em Moçambique há sinais de uma aposta na língua portuguesa, havendo dados oficiais que indicam ter a sua expansão crescido em Moçambique de 10 para 40% desde a independência;

  ̶  Informação oriunda do “Departamento para os Assuntos do Ensino da língua Portuguesa nos EUA” refere que há 3 milhões de descendentes de portugueses, brasileiros e cabo-verdianos a frequentar o ensino da língua portuguesa naquele país, essencialmente das 2ª e 3ª gerações; e que os descendentes de portugueses e cabo-verdianos constituem 80% daquele efectivo;

 ̶  Recente concurso de língua portuguesa promovido em Portugal pelo Jornal Expresso teve a participação de um número relativamente elevado de participantes cabo-verdianos, talvez o maior entre os PALOP, facto muito realçado e comentado na imprensa local;

  ̶  Fala-se em negociações em curso para que Cabo Verde venha a usufruir de um estatuto especial junto da União Europeia. Portugal tem irrecusavelmente deveres morais históricos para com Cabo Verde. O uso de uma língua de Estado comum é uma condição basilar para a unidade de discursos circunstanciais e de estratégias visando objectivos de interesse recíproco ou proveitos indirectos para Cabo Verde;

  ̶  É previsível que Angola e Moçambique, sobretudo o primeiro país, venham, no futuro, a tornar-se países de especial interesse para o incremento de relações de intercâmbio e cooperação com Cabo Verde, e bem assim prováveis destinos para o escoamento de quadros especializados cabo-verdianos;

   ̶  A preferência dos nossos estudantes por estabelecimentos de ensino superior portugueses é um facto assente. Portugal é também destino privilegiado da nossa emigração, ou o mais a jeito, onde existe uma importante comunidade;

  ̶  Desde há alguns anos, canais televisivos portugueses e brasileiros levam às populações cabo-verdianas densos pacotes de informação noticiosa e inúmeras telenovelas de emissão diária produzidas naqueles países de língua portuguesa. Ainda é cedo para estudar e contabilizar o impacte deste fenómeno no contexto linguístico local, sendo de crer que não será inócua a sua influência na linguagem corrente.

    A língua comum é, pois, a razão para uma escolha e uma preferência, uma vantagem inalienável, o elemento aglutinador para a união que gera a força.
    Toda esta realidade recomendará prudência face a esta afirmação do Dr. Manuel Veiga: “Com o Crioulo é que Cabo Verde marca a sua diferença no mundo”. Isto é muito discutível, pois a afirmação parece não julgar suficiente a imagem intrínseca do povo. O Crioulo é o único selo da sua fidelidade? Não senhor, o povo cabo-verdiano pode ostentar ao mundo outras imagens de marca da sua identidade, porventura mais gratificantes, como a sua imagem de povo pobre mas rico de sentimentos; de povo maltratado pelo destino mas esperançado no futuro; de povo prisioneiro da insularidade mas aberto à universalidade; enfim, de povo pacífico, convivente e comprometido com o humanismo.
    O mundo actual é globalizante em função de variáveis que infelizmente os países pequenos ou de pouco peso económico não controlam. Mas a ideia de que a afirmação da identidade é um contrapeso da globalização pode simplesmente subentender um sentimento de auto-compensação psicológica. Com efeito, a identidade de um povo pode hoje reforçar-se mais pelo seu contributo civilizacional nos espaços comunitários em que intervém do que pela exteriorização de símbolos de suposta afirmação identitária. No caso de Cabo Verde, o dispor uma língua compartilhada por cerca de 240 milhões de almas é um trunfo que se sobrepõe a outras cartas do baralho.
    Nada me move contra a promoção do Crioulo, nem podia mover, convenhamos. Ele é a minha língua materna, aquela que aprendi ainda no berço. Contudo, diga-se o que se disser, na idade escolar a língua portuguesa entra no quotidiano infantil sem grandes sobressaltos ou traumas psicológicos. No meu caso pessoal, e certamente no de outros alunos no passado, iniciei o ensino primário com uma professora portuguesa, que não tinha o Crioulo como coadjuvante do seu magistério. Como foi isso possível? Em minha opinião, a resposta é esta. Se o Português foi língua mãe nos primórdios da formação do nosso Crioulo, com o andar dos tempos as duas línguas se tornaram uma espécie de irmãs, embora uma delas menos presente no convívio. Mas bastou isso para que o cabo-verdiano retivesse o essencial do Português no seu espírito.    Mesmo as crianças e os adultos analfabetos que não o falam correctamente percebem-no de forma intuitiva. Alguém disse que a linguagem é a revelação da sombra do pensamento. Acrescentaria que o Crioulo se revela instantaneamente e em primeiro lugar, enquanto o Português jaz ali, oculto nessa sombra, imiscuindo-se na intelecção da linguagem e dando sinais vitais da sua existência.
    Não há muito tempo, vi na RTP África uma reportagem sobre a alfabetização de adultos na ilha de Santiago e comoveu-me a imagem de pessoas idosas visivelmente felizes por aprenderem a ler e a escrever o Português. Este apontamento humano desmente por si só a afirmação de que é preciso descolonizar mentalidades para abrir espaço para a imposição do Crioulo, como já li algures. Não, o povo cabo-verdiano já exorcizou todos os fantasmas opressores do passado. Fê-lo com a sua liberdade interior e com a sua superioridade moral. Sem complexos e sem ressentimentos. Com isso, a língua portuguesa também se libertou de marcas odiosas, se é que uma língua alguma vez as pode ostentar.
    Admito e acho bem que o Crioulo mereça ser objecto de estudo e de investigação em órgãos institucionais competentes. E de ser apoiado em todo o seu percurso evolutivo com vista a permitir leituras adequadas e oportunas sobre o seu verdadeiro futuro no contexto linguístico cabo-verdiano. Mas não creio que deva ser com prejuízo do Português. Pelo contrário, este deve ser objecto de uma atenção renovada, de modo a embeber-se mais profundamente no húmus nacional, para eventualmente dele colher a sabura de certas palavras e expressões do nosso Crioulo. Não se veja aqui qualquer sentimento apologético em relação ao Português e em detrimento da língua materna. Mas penso que há momentos da História em que a visão pragmática deve ser a mandatária das nossas acções.
    Não queiramos andar mais depressa do que a História. Deixemos assentar a poeira para melhor enxergarmos o caminho do futuro. Por enquanto, a língua portuguesa é o melhor bordão da nossa jornada pelo mundo.

2014