Quando a
Inglaterra Achou/Redescobriu S. Vivente: fim da sociedade escravocrata e início
do Cabo Verde moderno (Janeiro de 2014)
(Das
vicissitudes do passado ao Cabo Verde moderno
A Inglaterra redescobriu portanto
Cabo Verde e achou S. Vicente no início do século XIX, construiu Mindelo no
momento em que Cabo Verde e Portugal entravam numa encruzilhada histórica, e em
que era necessário redefinir uma vocação e um novo conceito estratégico para o
arquipélago. Toda a história de Cabo Verde mudou a partir de 1838 quando a companhia inglesa East
India implantou-se em S.
Vicente, ou melhor, quando a Royal Mail Steam Packet iniciou a instalação de
depósitos de carvão para o abastecimento da navegação
que ali passa com destino ao Atlântico Sul, a partir de 1850
(3,4,5,6). Com a criação de
um ponto de fixação do império britânico em S. Vicente e no meio do Atlântico,
a Inglaterra conquistou um ponto estratégico para as comunicações e o serviço
ultramarinos, Cabo Verde voltou à luz da ribalta, ganhando uma importância
geoestratégica perdida, pelo efeito induzido pela própria presença da principal
potência mundial. Este evento teve um impacto socio-económico
revolucionário no arquipélago, marcou a ruptura com a
antiga sociedade,
estruturalmente tradicional, rural, que ainda vigorava nas ilhas mais povoadas,
em especial Santiago. Nelas, as relações económicas semi-feudais e uma
hierarquia estritamente rácica baseada na cor da pele decorrentes da história
escravocrata era a característica principal. Cabo Verde feudal foi assim
bruscamente catapultado para a modernidade pelo simples jogo da presença
inglesa, pelo importante movimento de populações interno provocado pela ‘industrialização’
de S. Vicente e a eclosão de novas relações de produção no arquipélago. Foi
assim um acto libertador, de ruptura com o passado. Marcou o fim inexorável de
uma época muito marcada pela ilha de Santiago, e o início da sua progressiva
marginalização e esquecimento. Nascia um novo Cabo
Verde e consagrava-se a
nova estrela do arquipélago, a nova ‘capital’ Mindelo
(razão porque a Metrópole tentou transferir, em vão, para S. Vicente a capital
de Cabo Verde para dar um novo ímpeto socio-económico à colónia (5,6)). Mindelo
era cidade livre das teias do passado, cosmopolita, aberta ao mundo, centro
intelectual, cultural e económica do país.
A presença inglesa em S. Vicente
tornou-o um ponto de passagem obrigatória entre a Europa e a África, e uma
porta de entrada para o Mundo para os cabo-verdianos. A cidade do Mindelo
constituiu o ponto de fractura e de conflito entre o Cabo Verde colonial e o
pós-colonial, entre o passado e o futuro, o mundo rural e o urbano, o progresso
e a conservação, o moderno e a tradição, e passou a ser o rosto do conformismo,
da irreverência e da contestação. Doravante Cabo Verde passou a estar dividido
em dois mundos: o urbano, laico, operário, liberal progressista, centrado na
ilha de S. Vicente, e o Cabo Verde profundo, rural, retrógrado, conservador,
profundamente, católico, localizado das restantes ilhas do arquipélago. Quanto
maior era a situação de interioridade de uma ilha pior era o caso, situação que
até hoje perdura.
Um novo Mundo abria-se assim em S.
Vicente aos cabo-verdianos, o Eldorado ou Terra Prometida, o sonho
cabo-verdiano.
Vão confluir para a ilha milhares de crioulos
de todos os estratos sociais e de todos os pontos do arquipélago (5), que irão
formar os germes desta nova sociedade cabo-verdiana liberta dos grilhões e das
sequelas do passado, formando os germes da futura nação crioula que um dia
poderia nascer.
Juntam-se nesta aventura emigrantes
de vários pontos do mundo, alguns judeus, portugueses, ingleses, italianos,
alemães, indianos, árabes. S. Vicente nasce, assim, ilha mundializada, liberal,
nobre, ecléctica, cosmopolita, onde floresceram múltiplas actividades liberais.
Nela os cabo-verdianos adoptarão um estilo de vida citadino, matizado por
valores europeus, nomeadamente portugueses e ingleses. O impacto destas
transformações constitui uma autêntica revolução em Cabo Verde. A alavancagem
para um Cabo Verde moderno e contemporâneo deu-se portanto a partir de S.
Vicente.
Estavam assim postas em causa as
bases ideológicas e sociais sobre as quais assentava a tradicional sociedade
escravocrata ancorada em Santiago, e um novo conceito de Cabo-Verde estava a
nascer onde poderiam conviver todas as raças, brancos, pretos, amarelos e
mestiços, independentemente da condição socio-económica.
Estavam criadas as condições para que
os próprios cabo-verdianos impulsionados pela dinâmica e a ousadia mindelenses,
revigorada na revolução do 25 de Abril de 1974 e na nova ordem mundial
nascente, redescobrissem Cabo Verde e ousassem contra todos as probabilidades
desafiar o destino e sonhar um país. Uma nova e extraordinária aventura, mas
com riscos e lágrimas para a S. Vicente e a sua população (mas não para uma
certa elite frívola mindelense que se mudou com armas e bagagens para o novo
eldorado), iria recomeçar em Cabo Verde. A Ilha apostou, jogou dignamente o seu
papel, colocou todas as cartas na mesa, mas perdeu no fim. Uma revolução social
e política que aí tinha começado foi mais uma vez subvertida e só podia tê-la
sido por razões que veremos. Tornou-se aos olhos da sua própria elite,
paradoxalmente e ironicamente num envergonhado problema pós-colonial,
artificialmente re-inventado para a nova ideologia, quando por ironia do
destino mudaram-se os tempos e as vontades em seu desfavor. Este artigo que
aqui termina é pois o pano de fundo para novo e próximo:
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