PONDO ALGUNS PONTOS NOS ii
O “laissez faire, laissez passer” de Adam Smith, que
originou o liberalismo económico e a economia de mercado, teve grande sucesso
enquanto houve o respeito de alguma ética que impunha entraves à realização de
operações especulativas. J. J. Rousseau, reticente quanto à sua vertente social
que permitia aprofundar as diferenças entre os indivíduos, não o aprovava, mas
Voltaire, valorizando a sua eficácia na criação de bens a distribuir, dava-lhe
o seu apoio.
O capitalismo disso fortalecido teve uma fase mais ou
menos humana, não pela sua índole intrínseca, mas por medo do comunismo
imperante na União Soviética e países satélites que defendia equidade na
distribuição da riqueza e benefícios sociais a todos, particularmente aos
fautores dessa riqueza, os trabalhadores. Para que houvesse essa justiça
social, as grandes empresas estratégicas dos países deviam pertencer aos
Estados e não ao privado, para que o princípio marxista da justa distribuição
fosse aplicado.
Nos países capitalistas, as organizações sindicais e
profissionais tinham bastante poder e influência e conseguiam impor-se,
utilizando a greve como uma arma de último recurso para fazer valer os direitos
adquiridos, após duras batalhas, e as reivindicações dos trabalhadores
relativas a salários de acordo com o rendimento do seu labor e enriquecimento
das empresas onde trabalham.
Com a implosão da União Soviética, o consequente
descrédito do comunismo e o abastardamento do socialismo noutros países, o
capitalismo considerou-se vencedor, deixou de temer o gongon comunista e socialista e perdeu toda a vergonha e o verniz
que encobria a sua faceta maligna, exploradora, egoísta e depredadora. Nessa sabura capitalista, todos os dias temos
de suportar sábios nas televisões e nos jornais rebolando-se na lama do
discurso neoliberal.
A doutrina do choque da Escola de Chicago de Friedman, isto é, da chamada destruição
construtiva, avalizada pelo teórico-mor do neoliberalismo, F. Hayek, Prémio
Nobel de Economia e apologista da economia de mercado com Estado mínimo em
economia, isto é, com a mínima intervenção do Estado, por haver, como dizia,
uma regulação automática do mercado pela livre concorrência, como
que uma mão invisível reguladora, competindo tão-somente ao Estado fazer
funcionar a concorrência quando, por qualquer motivo anómalo, ela não estivesse
a funcionar adequadamente.
Com a destruição construtiva, ou teoria do choque, as
empresas de pequenas dimensões ou pouco eficientes (a maior parte, pequenas e
médias empresas) desapareceriam devido à concorrência das maiores, o que era
previsível e mesmo salutar para os consumidores porque vingariam as melhores e
mais eficientes capazes de produzir em grande quantidade e a baixo preço. Pouco
importava para os defensores dessa doutrina o desemprego criado, por permitir
abundância de mão-de-obra, sempre disponível, que se sujeitaria a salários mais
baixos dada a perda de força dos sindicatos e a diminuição de greves.
Obviamente
que, posta em prática essa estratégia, os preços excessivamente baixos
liquidaram as empresas concorrentes de menores dimensões e poder económico, subiram
as mais poderosas, desaparecendo os concorrentes (fenómeno chamado dumping, devido ao caracter fraudulento
da baixa de preços); os direitos dos trabalhadores foram desaparecendo por os
sindicatos terem perdido força e influência em situações de desemprego e
excesso de mão-de-obra, sendo mais fácil, nestas condições, encontrar
fura-greves desesperados que aceitam qualquer vil salário. Os valores morais em
crise, só os “parvos” (leia-se, honestos) é que não aproveitam as oportunidades
criadas pelo neoliberalismo selvagem que a passividade estatal tem propiciado e
tolerado. Houve, sem dúvida, uma subversão da divisão dos poderes, tal como a
democracia os tinha consagrado. Montesquieu contorce-se no seu túmulo.
Disso
resultou a crise em que vivemos e a necessidade que os Estados tiveram de intervir
com injecção massiva de milhões e milhões de dólares, ou euros, para evitar a
catástrofe. Mesmo assim, milhões de europeus e americanos perderam os seus
empregos, as suas casas, as suas vidas, as suas empresas para que os governos
esquecessem a economia e tratassem de ir em socorro dos bancos. Torna-se
evidente que as facilidades, a desregulação da economia e as liberdades
concedidas à economia e finanças levaram a que bancos e outras instâncias
financeiras entrassem na especulação financeira, sempre no fito de obter mais e
mais lucros com fundos existentes e inexistentes, virtuais, fictícios (economia de casino). Como declarou Lula
da Silva numa entrevista recente publicada no Diário de Notícias, “o que faliu foi a economia fictícia,
fraudulenta dos especuladores e não a economia produtiva, real, dos países e
dos povos”, porque os países onde não houve especulação financeira não estão em
crise. Essa foi a ocasião soberana desperdiçada para meter nos eixos o sistema
financeiro mundial, penalizando fortemente os especuladores e metendo na cadeia
os mais venais.
Será
que condeno o liberalismo civilizado, onde existe individualismo igualitário,
justiça relativa, em que as diferenças e desigualdades só são aceitáveis se
permitirem elevação individual do nível de vida dos desfavorecidos? Claro que
não, porque nesse liberalismo o Estado não abdica da sua função de controlo da
economia e finanças, da moderação de apetites de gulosos e glutões e
salvaguarda a existência digna que mereça ser vivida dos desfavorecidos curando
da vertente social. Já advertia Adam Simth, nos seus famosos livros A Riqueza das Nações e A Teoria dos Sentimentos Morais, que “no
espírito comercial, mercantilista, as inteligências murcham, a elevação do
espírito torna-se impossível, a instrução é dispensada”, o que vem acontecendo
em muitos países onde o mercantilismo se apoderou da informação, da educação,
da saúde, justiça, ciência, arte e até de religiões, mormente de seitas
religiosas que encontraram o seu fundo de negócio na exploração da credulidade
humana e do medo às penas eternas no Inferno e temporárias no Purgatório.
Foi
recentemente revelado, depois de expirar o prazo do secretismo oficial, que
Margaret Tatcher quis pôr fim ao Serviço
Nacional de Saúde Inglês, o
primeiro sistema social de saúde que serviu de modelo, com sucesso, a alguns países
da Europa e algures. De resto, não precisamos de ir muito longe; em Portugal, nos
nossos dias, não fora a rejeição total do povo e de todas as forças vivas do
país, da política do governo de liquidar o Serviço
Nacional de Saúde, já se teria consumado essa tragédia. As políticas
sociais beneficiando a Educação, Saúde e Segurança Social estão sofrendo duros
golpes, atestando à evidência as intenções do Governo. Até o Norte de Portugal,
grande vítima da crise, protestando contra o centralismo burocrático do poder
lisboeta, reclama a legitimação democrática dos órgãos dirigentes da Área Metropolitana do Porto com eleições
directas como forma de criar uma voz com autoridade para falar em nome da região.
Vejam lá se nós também não temos razão em reclamar a regionalização face ao centralismo da Praia!... A situação de S.
Vicente (e de outras ilhas) é pior do que a de Porto, por ser mais antiga. Já
custa suportar a falta de solidariedade nacional; as outras ilhas não podem ser
apenas motivo de folclore político. Só a esperança em dias melhores pode
justificar os sacrifícios que vimos sofrendo, e a regionalização possui o germe
dessa esperança.
É
portanto necessário voltar a uma política de valores, em que as pessoas estejam
no centro das preocupações e não o lucro a qualquer preço, o qual nos trouxe o
mercantilismo do neoliberalismo e a globalização.
Há urgência na substituição do tráfico de influências pelo princípio marxista
de a cada um segundo as suas necessidades, o seu mérito e competência.
A
globalização agravou mais a situação por se prestar a fraudes. Ela só funciona,
de vento-em-popa, para os ricos, para os países industrializados que têm muito
para exportar e recebem, como vimos, os lucros, sem entraves, dos países para
onde exportam, exigindo destes condições para exportar que eles não respeitaram
no passado e alguns continuam a não respeitar.
Todavia,
o feitiço está a virar-se contra o feiticeiro, dado que, pelas regras da
globalização e da OMC, os países ricos do Norte não podem opor-se às
importações vindas dos países chamados emergentes – aqueles que através de políticas
sensatas e honestas se libertaram dos condicionalismos impostos pelos países
industrializados e entraram na via do desenvolvimento endógeno, como a China,
India, Brasil, etc., – que têm apresentado produtos a preços imbatíveis na
concorrência, levando mesmo à falência de algumas indústrias e empresas do
Norte. Outrossim, a China, por exemplo, aceitou instalar indústrias de multinacionais
estrangeiras no seu território, que utilizam mão-de-obra muito mais barata e
praticamente sem direitos laborais, com lucros fabulosos para essas empresas,
mas causando desemprego nos seus países de origem (Europa e EUA), já que o
capitalismo não tem pátria, aliás, a sua pátria é o local onde obtém mais
lucro. Só que a China e a India já dominam a alta tecnologia do Norte e
poderão, de um momento para outro, nacionalizar essas empresas passando a
produzir, elas próprias, esses produtos ou similares. A China está aprendendo
com a Europa a construção do Estado social e já se nota melhoria nítida
relativa a salários, previdência social e assistência médica que não existiam, tornando
assim menos atractivas às empresas capitalistas a transferência das fábricas
para a China, continuando, no entanto, a crescer a sua economia, ao contrário
da dos países do Norte que estão em recessão.
Um
último ponto nos ii: os paraísos fiscais
ou offshores.
Paraísos
fiscais são bancos com características especiais, isentos de toda a regulação e
fiscalização, onde se pode depositar dinheiro sem identificação do seu
proprietário, com lucros mais elevados do que nos bancos comerciais, pouca
despesa, para fugir ao pagamento de impostos no país de origem e branqueamento
de dinheiro sujo. Estima-se haver nas offshores entre 13 a 19 milhões de
milhões de dólares dedicados inteiramente a actividades especulativas!
Localizam-se junto dos grandes centros financeiros e foram criados por
europeus: na Suiça e Luxemburgo, para servir a Europa; nas Antilhas, para
servir os EUA; em Barhein, para o Norte de África e países do Gofo Pérsico; em
pequenas ilhas do Pacífico, para a Ásia. Nestes paraísos fiscais entra toda a
casta de dinheiro, geralmente, ou em maior quantidade, dinheiro da droga, venda
de armas, fundos para o terrorismo, roubos de erários públicos, etc. Com a
desregulação das finanças (Consenso de
Washington), os especuladores podem tudo fazer, mas quando dão com os
burrinhos em água, é o Estado, os cidadãos, a pagar a conta através de aumentos
de impostos, como vem acontecendo na Europa e EUA. Em Portugal há o escândalo
do BPN – um caso de polícia que foi entregue a tribunais por lidar com
criminosos de colarinho branco -, e agora o Governo injectou 1.1000 mil milhões
de euros no Banif, ficando seu dono com
99,2% das suas acções, quando, para justificar a privatização da Caixa Geral de Depósitos, considerou o Estado mau gestor. Quem é que entende
isso, quando se alega falta de fundos para socorrer empresas produtivas em
apuros, se lançaram no desemprego centenas de milhares de funcionários e
impostos a torto-e-a-direito?
Na
Reunião do G20, aquando da bronca com
o L. Brothers, que as famosas agências de notação de risco davam pontuação máxima, houve consenso nas mediadas a
serem urgentemente tomadas para evitar a repetição de crise semelhante: nova
regulamentação do sistema financeiro internacional, aumento de transparência
nos processos financeiros, reforço dos controlos sobre as transações, abolição
dos paraísos fiscais, etc., mas até agora, como declarou Lula da Silva na
entrevista referida, não se avançou praticamente nada no tocante à necessidade
e urgência de reformar as finanças globais.
Se
houvesse ética e moralidade no mundo, esses paraísos fiscais deveriam ser
proibidos, extintos. Mas nunca se conseguiu verdadeiro consenso para isso, dado
haver muito dinheiro sujo para ser branqueado ou escondido de multinacionais,
traficantes de drogas e armas e de governantes venais. Se o manancial de
dinheiro das offshores voltasse aos bancos comerciais donde partiram, de que
são sucursais, desapareceria a crise de um dia para outro, e não haveria
necessidade de austeridade à custa dos cidadãos, que não foram responsáveis por
ela. Se aos bancos comerciais de alguns países do Norte que foram recapitalizados
à custa do erário público, portanto da sociedade, se tivesse exigido que fossem
buscar o dinheiro nas suas offshores, em vez de serem os Estados a fazê-lo, seguramente
que não teria havido crise. Mas, não, porque já há multinacionais e bancos com
muito mais dinheiro e poder do que Estados, e estadistas subalternizados a
essas multinacionais e bancos, isto é, ao poder financeiro dominante.
Repito:
há que voltar a uma política de valores, princípios e padrões em que as pessoas
estejam no centro das preocupações, não o lucro a qualquer preço, com Estados a
dominarem a economia e as finanças e não banqueiros especuladores e os ricos,
aqueles que criaram a crise e, pasme-se! foram encarregados de a corrigir, o
que nos parece ser o mesmo que mandar a raposa guardar o galinheiro. Antes do
liberalismo selvagem a economia estava ao serviço das pessoas e da satisfação
das necessidades básicas de uma comunidade, pelo que se chamava de economia política, dado que havia um
poder político que a controlava e defendia dos instintos predadores dos mais
ricos, poderosos e desonestos.
Parede, Janeiro de
2013 Arsénio Fermino de Pina
(Pediatra
e sócio honorário da Adeco)