3ª Parte: Por uma Regionalização e Reformas com
Acordos e um Pacto de Regime
(3ª Parte Referendo Não! Não nesta condições e conjuntura)
Como era talvez de esperar, noticia-se
que Carlos Veiga e José Maria Neves estão em convergência no sentido de haver
em Cabo Verde uma “regionalização administrativa”. “Na prática, falta um ou
outro aspecto, o que torna a regionalização possível”, foi o que veio a lume
com esta desarmante vacuidade. Pronto,
já decidiram e tudo no segredo dos deuses! Ainda por cima, haverá referendo e governadores!
Exit debates e estudos! Para quê
tanta excitação?!
A ser verdade esta informação, ela confirma
o facto de o MPD e o PAICV obedecerem invariavelmente à sua base maioritária, radicada
em Santiago/Praia, sem terem em conta a realidade regional de Cabo Verde. Estão
de acordo sobre os princípios, discordando só da forma. Assim se percebe o silêncio/blackout
até hoje mantido pelos partidos do arco do poder, sobre a matéria. Constitui-se
assim a Santa Aliança para a defesa do centralismo e evita-se o debate profundo
sobre uma reforma da máquina do Estado que interfira com o centralismo, este
autêntico abcesso que mina e entrava o país.
Um eventual acordo estratégico entre o MPD
e o PAICV sobre o princípio de uma regionalização administrativa do país faz adensar
as dúvidas relativas a uma identidade doutrinária centralista entre dois
partidos. “Querem regionalização? Então tomem lá um Governador e um Referendo.”
“Agora, por favor, não queremos ouvir falar da reforma do Estado centralista:
descentralização, desconcentração, desburocratização do poder central, Não.
Isto não, não tocamos nos privilégios e prerrogativas. O país está bem e
recomenda-se, muito bem mesmo, não precisa de reformas!”
Este hipotético acordo esconde, portanto,
uma aversão às reformas e à modernização do país. Desengane-se quem ainda tinha
dúvidas.
Com uma regionalização puramente
administrativa, os partidos do poder parecem em sintonia com a ideia de criar
“cadeiras” para nelas colocarem uma espécie de fantoches sem poderes concretos,
facilmente manipuláveis, à
semelhança do que foi feito nos anos 90, o que contribuiria logo à partida para
o descrédito de um cargo que se revestirá da maior importância no poder local
das futuras regiões. A este propósito,
deve-se lembrar que foi o governo presidido por Carlos Veiga quem criou
nos anos 90 o cargo de governador e foi o governo de José Maria Neves que o
extinguiu, após a sua eleição. Assim, uma regionalização efectuada da maneira
como pretendem alguns políticos e algumas elites só poderá saldar-se num
rotundo falhanço, esvaziando-se de importância e frustrando as expectativas das
populações.
Nenhum adepto da regionalização deve
convencer-se de que o processo é automático, que basta um acordo de partidos, a
nomeação de pessoas e um decreto. Seria enganar os cidadãos pretender isso. Não
pode haver regionalização sem um debate profundo no país para um acordo sério e
verdadeiro sobre as reformas a empreender. O princípio da regionalização
política, contrariamente à administrativa, diz-nos que a fonte do poder das
regiões emana da vontade popular, das populações locais, e não das escolhas do
poder central ou das elites dominantes.
Terá, pois, de haver transferência de
competências e de soberania do Estado central para as regiões criadas. Como o
Estado não pode mais crescer, sobretudo em tempos de racionalização e
austeridade, a regionalização deverá ter custo aproximadamente zero, pelo que
só pode ser feita com base num reequacionamento e numa reorganização do Estado
central, tendente à sua redução. Neste figurino, o Estado ficaria com os
instrumentos essenciais de soberania, tais como a Defesa e Segurança, as
Finanças e as Relações Exteriores, ao passo que outras competências, se não a
maioria, seriam transferidas para as regiões, tal como acontece nas grandes
nações regionalizadas. Estaremos neste figurino a falar de um modelo parecido
com os modelos federais alemão ou americano.
Porque, a ir avante o referendo, acredita-se
que a regionalização seria, logo no primeiro round, derrotada na secretaria dos partidos e do Estado, com toda a
máquina propagandística, servida por uma comunicação domesticada e por dinheiros
de fácil angariação, a funcionar em surdina mas em pleno regime dos seus
pistons para desacreditar os méritos de uma regionalização plena, virtuosa e
esperançosa. Na realidade, o que o sistema não quer é debater a premência de uma
real reforma do Estado que ponha em causa o conforto das elites centralizadoras.
Sem esta reforma efectiva (1-Descentralização; 2- Desburocratização; 3-Regionalização),
a regionalização, a ser meramente administrativa, será uma miragem do que
poderia ser. Pois de nada serve a regionalização se aquilo que está na raiz dos
problemas e da situação do país e de S. Vicente se mantiver intacto. É sobre
esta evidência que aparentemente se calam os partidos, num mutismo que se torna
ruidoso demais para não ser ouvido.
De resto, um rápido olhar analítico leva-nos a
aduzir que o quadro decorrente da situação social e política em Cabo Verde é em
tudo similar à dos países do ex-bloco soviético onde emergiram democracias
formais despóticas, situação que gerou oligarquias parasitárias de tipo mafioso,
e que gravitam em torno das economias nacionais, sendo o exemplo mais flagrante
o caciquismo russo que emergiu da ruína política do fim do sistema soviético. Extremamente
vulneráveis politicamente, esses países têm em comum a tremenda herança de
terem vivido debaixo de ditaduras de partido único e de terem efectuado
transições atabalhoadas para a democracia, e de possuírem classes médias e
opinião pública pouco desenvolvidas. A democratização nesses países está
confiscada pelas novas elites dominantes, oligarquias de novos-ricos, jogos de
poder e interesses diversos, que digladiam pela conquista dos poderes, e são
extremamente reaccionárias à qualquer reforma dos sistemas. Todos geraram
sistemas centralizados decalcados do sistema soviético, a que estamparam uma
fachada democrática, paradoxalmente sob os auspícios de políticas ultraneoliberais.
Que não se retire daqui qualquer extrapolação senão pela similitude de algumas
evidências.
Pelo que precede, concluo, assim, que envolver
o povo num barulho referendário sem ter feito o trabalho de casa é tentar matar
a ideia da regionalização. Não existem condições materiais e políticas para a realização
de referendos em Cabo Verde. A
regionalização e a reforma do Estado não podem nestas condições ser
referendadas.
A argumentação de Onésimo Silveira não podia
ser mais justa ao condenar a ideia do referendo: “está implícita a falta
de confiança por parte dos promotores do referendo; no fundo, querem transferir
para o povo essa responsabilidade, quando os próprios políticos, com base num
diálogo sereno e maduro, podem, perfeitamente, decidir qual a melhor regionalização
que convém ao País”. As reformas terão que ser
assumidas por toda a nação, incluindo a classe política e a sociedade civil, e
corresponder a um compromisso para com Cabo Verde: elas só serão viáveis através de acordos
e de um pacto de regime. Daí que o papel do Presidente da República na
dinamização e supervisão deste processo seja crucial.
Só após
a regionalização e as reformas do Estado, que traduzirão a maior democratização
alguma vez operada no país, é que se poderão criar
condições para a organização de futuros referendos sobre qualquer matéria. Como
disse aos nossos bravos do Mindelo, mantenham-se firmes, unidos e prontos para
a refrega cívica, em prol da regionalização de Cabo Verde, pois muita água vai
correr debaixo da ponte. Não se rendam
nem se deixem convencer por manhas ou artimanhas. Aguardem serenamente a
resposta do governo e dos partidos. Que saiam das vossas trincheiras. Todas as cartas estão na mesa.
(FIM)
José Fortes Lopes
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