quinta-feira, 28 de março de 2013


O Debate da Regionalização e a renovação política de Onésimo Silveira

(Da Génese do Centralismo em Cabo Verde ao Debate da Regionalização: 3ª Parte)

 


Como vimos precedentemente há uma tentativa de capturar e desnaturar o debate da regionalização em favor de uma ala centralista e conservadora, que congrega uma agenda etnocentrista ou fundamentalista e uma outra de interesses políticos associados às redes de privilégios sociopolíticos e económicos do país, adversos a qualquer mudança ou reforma.

Amilcar Cabral só poderia estar envergonhado com os ditos actuais herdeiros e seguidores.

O conceito de “Regionalização Administrativa” seria assim o denominador comum, a ‘reforma’ mínima aceitável aos olhos dos diferentes grupos que controlam o poder actualmente no país. Esta seria a ‘reforma na continuidade’ de um sistema já cansado e que governa o país há décadas, usando substancialmente variantes do mesmo e esgotado conceito de desenvolvimento, aquilo que é designado hoje eufemisticamente de Pensamento Único, e que em Cabo Verde toma a forma de um supra-partido único transversal à toda sociedade.

Pode dizer-se que o Onésimo Silveira é seguramente um gato político, porquanto já teve várias vidas políticas (costuma-se dizer que os gatos têm sete vidas). Estaremos perante o seu sétimo combate ou o último pulo do gato? A regionalização, uma das suas bandeiras, poderá ser uma excelente oportunidade para o velho nacionalista e político mostrar os seus dotes de combatente, deixando assim uma herança política, com a sua marca, à sua ilha natal e ao país. A ver vamos.

Teria sido interessante a participação conjunta neste debate, de outro velho nacionalista, Leitão da Graça, líder da extinta UPICV, um natural de Santiago, defensor da regionalização, e que acabou de declarar na Inforpress “A regionalização é uma coisa boa e, por isso, sempre fui a favor”, disse, lamentando que até ao momento este facto não tenha ainda acontecido em Cabo Verde. Na sua opinião, o PAIGC (hoje PAICV) sempre teve medo da regionalização. Hoje, gaba-se de ter escrito, em panfletos, apelando à autonomia das ilhas. Para Leitão da Graça, com a regionalização não significa que a unidade do país possa estar em causa.” (In Inforpress) (6).

Onésimo Silveira aparece, assim, quer queira quer não, como figura crucial neste debate, um ‘pivot’ fundamental entre as diferentes tendências e modelos em discussão e o provável interlocutor nas eventuais futuras negociações.

É assim que o Onésimo Silveira é apanhado (involuntariamente?) nesta ratoeira conceptual inventada pelos sectores conservadores do PAICV. Ao fazer questão de vincar, nos últimos artigos, a defesa de uma “Regionalização Administrativa”, em vez da “Regionalização” “tout court” (4), incorreu involuntariamente ou desnecessariamente em contradição com as teses que defendeu no colóquio/“atelier” sobre a Regionalização, de 9 a 11 de Abril de 2007, que serviu para o enterro do projecto. Este evento, segundo a então Ministra da Presidência do Concelho de Ministros, Reforma do Estado e Defesa, Cristina Fontes “visava consensualizar os conceitos em torno da matéria da descentralização, desconcentração, ou até mesmo regionalização”, que “o Governo tinha a sua posição, mas que estava aberto para ouvir as outras opiniões existentes; mas que defendia um “Estado suficiente", não havendo lugar para centralismos ou posições que ponham em causa o Estado unitário em Cabo Verde” (2). Adriano Miranda Lima (2) nos reporta, baseando-se em notícias então publicadas, que Onésimo Silveira ter-se-á mostrado favorável a uma «Região Política», indo assim na altura contra algumas correntes redutoras ou conservadoras do conceito de regionalização. Mais, Silveira, num conceito mais ambicioso, quiçá de ressonâncias futuristas, defendeu «a existência de regiões fora do território nacional, coincidentes com a geografia em que estão inseridas as comunidades emigradas», oferecendo assim um tema de estudo ao companheiro Luiz Silva, sobre o qual se vem debruçando entusiasticamente. Neste mesmo colóquio, José Maria Neves, como se estivesse exorcizando o fantasma de qualquer transformação orgânica no país que atente contra o poder dominante e total concentrado na ilha capital, afirmou aceitar unicamente o reforço do municipalismo. Apontou um conjunto de argumentos que, em sua opinião, desaconselhariam a criação de regiões políticas autónomas, a começar no facto de não haver enquadramento constitucional (2). Imaginem o nível do argumento! Será que os outros países (Marrocos, por exemplo) teriam já esse enquadramento quando realizaram tal reforma (5)? A resposta é obviamente não. Este dilema de causalidade é uma questão clássica, facilmente ultrapassável se houver vontade e determinação política. Na realidade, reformas desta natureza necessitam grandes homens ou homens de carácter (George Washington, James Madison, Charles de Gaulle, François Mitterrand, Nelson Mandela, Rei do Marrocos, etc), um conceito e um projecto novo, como aconteceram nos momentos cruciais e nos países em que elas foram levadas avante (4,5). Portanto, não brinquemos com conceitos e não tentemos separar artificialmente a regionalização em duas componentes, a administrativa e a política, pois estaremos a incorrer em pura manipulação conceptual, com o único intuito de atrair ‘eleitorado’ e enganar os incautos. Pois se ambos os prós e os contra da regionalização, que defendem processos conceptualmente diferentes, ‘desatarem’ a chamar a reforma pelo mesmo nome, regionalização administrativa, no fim, o povo, que queremos esclarecer cabalmente, ficará refém de uma ambiguidade que produzirá um efeito inverso, e a confusão política nesta matéria será total e instalada para muito tempo. Por esta e outras razões é que apontei a inoportunidade da realização, no presente contexto, de um referendo sobre uma matéria tão séria e sensível. Como os franceses dizem “Il faut appeler un chat, un chat”, ou seja, falemos de regionalização ‘tout court’ (4, 5). Isto leva-nos a apelar a realização de estudos consistentes, debates e campanhas diversos para esclarecer as pessoas e separar as águas. Mas não há meio de o PM declarar oficialmente a abertura dos trabalhos e do debate, todo convencido de que anda a ganhar tempo para que tudo acabe em águas de bacalhau. Ou não terá ele coragem nem estofo para liderar este processo!?

Mas foi todavia na Workshop sobre Reforma do Estado, Justiça e Segurança realizada no âmbito da Conferência Nacional do PAICV de 28 a 3 de Setembro 2012, que uma ala do PAICV iniciou uma ofensiva ideológica contra a regionalização, que culminou no recente Conselho de Ministros no Mindelo. O PM assinalou como inaceitável qualquer veleidade política à reforma, apresentando ao país o modelo pré-cozinhado, chamado de Regionalização Administrativa, correspondendo, na visão José Maria Neves e dos sectores mais conservadores do PAICV, simplesmente, ao reforço do municipalismo, ou seja, aquilo que qualificam de “supra-municipalismo”, terminologia bastante ambígua para este debate, e que também Onésimo Silveira resolveu, aparentemente, adoptar.

Mesmo assim, a pobreza do argumentário dos que estão contra a regionalização é aflitiva e resume-se, quando não se recorre a ataques baixos e de carácter pessoal, a afirmações e generalidades de La Palisse, do tipo: “A maioria das pessoas que têm intervindo dizem claramente que a regionalização política é um disparate em Cabo Verde, por ser um país de apenas cerca de 4.033 quilómetros quadrados e menos de meio milhão de habitantes”. Como refere Adriano Miranda Lima (2), os responsáveis do Governo recorrem normalmente a um discurso circular, feito de generalidades e lugares comuns, sempre que têm de pronunciar-se sobre o assunto, enquanto o centralismo ostenta uma dureza de pedra e cal, o que demonstra que a política, não raras vezes, pode ser a mais perfeita arte de dissimulação. Mas como desde o colóquio realizado na Praia o assunto parece ter arrefecido nos meios oficiais, ou adiado para as calendas gregas, é caso para imaginar que José Maria Neves teria aspergido água benta sobre o retábulo do colóquio, para exorcizar o fantasma de qualquer transformação orgânica no país que atente contra o poder dominante e total concentrado na ilha capital”. E “A verdade é que não se vê uma firme vontade política, da parte do poder, de reformar o modelo organizativo do país, quando as actuais circunstâncias nacionais e internacionais aconselham a repensar o presente” (3). Na realidade, do que JMN e os sectores conservadores da sociedade cabo-verdiana não querem ouvir falar é de reformas do sistema económico e político do país, a que uma verdadeira regionalização forçosamente obrigará, pois como facilmente se compreenderá, ela vai mexer com interesses instalados, das elites, dos grupos de pressão, dos agentes políticos e económicos, todos confortavelmente refastelados na poltrona da centralização. Agarram ao centralismo como um cão ao seu osso. Portanto para eles nada de protagonismo para S. Vicente e outras ilhas. Na realidade, muitos outros que não partilham desta visão centralista estão convencidos que o centralismo é a fonte actual do poder e a mãe de muitos dos problemas actuais de Cabo Verde.

 

 

 

JMN tem-se, portanto, desdobrado em esforços para diluir ou esvaziar o conteúdo do debate sobre a regionalização, após ter prometido a sua realização e a abertura de um Livro Branco. É por estes sinais inquietantes que o leitor comum pode confundir-se com essa insuficiente explicitação do pensamento do Onésimo Silveira, e indo mesmo ao extremo de nelas poder descortinar, quiçá injustamente, uma tentativa de aproximação conciliatória às dúbias intenções do governo, o que, a confirmar-se, voltaria a ser altamente comprometedor da credibilidade daquele político mindelense. Por conseguinte, é de toda a conveniência que o Onésimo Silveira evite esta similitude expressiva entre ele e o JMN em matéria de regionalização, ou que afaste as eventuais suspeitas da existência de uma aliança objectiva ou de um acordo implícito sobre o modelo de regionalização minimalista ou de compromisso, antes de qualquer debate, o que a ser verdade frustraria as pessoas que deram o corpo a este combate de cidadania. Todavia, desenganem-se os opositores se pensam que exista alguma divergência de fundo sobre a regionalização entre a maior parte dos regionalistas, incluindo Onésimo Silveira. Inclusivamente, até se pode conceber que determinados líderes possam vir a concluir que afinal determinado modelo que tinham defendido já não será o mais adaptável ao nosso circunstancialismo, mudando, por isso, de opinião, mas sem abdicar da sua crença na irreversibilidade da reforma. Não devemos ser dogmáticos nem sectários, pois costuma-se dizer que só os burros é que não mudam de opinião, pelo que estaremos abertos ao debate e a eventuais futuros compromissos, desde que haja honestidade intelectual na posição das pessoas.

Na realidade, defender, a priori, uma regionalização minimalista limitada a um formato meramente administrativo, que sintetizasse a linha dos actuais detractores da reforma, tentando assim definir de antemão os contornos do futuro debate, que deveria ser alargado e participativo, constitui uma tentativa de condicioná-lo e de antecipar as conclusões do mesmo, muito ao gosto dos partidos do poder de matriz centralista e autoritária. Esta atitude não facilitará a criação de uma plataforma de entendimento consensual sobre o modelo de descentralização e regionalização mais adequado à realidade cabo-verdiana, para a elaboração de propostas concretas sobre o futuro político, administrativo e económico de Cabo Verde. Pois, embora o aval de experiências bem-sucedidas no Mundo, não existe uma doutrina uniforme sobre a descentralização, nem verdades axiomáticas sobre esta matéria, muito menos teorias dogmáticas, comprovado está que o estudo e o planeamento de uma descentralização/regionalização envolvem uma série de variáveis, que são pertença da substância complexa e multiforme do problema, e que elas são do âmbito político, geográfico, demográfico, económico e histórico-cultural (3). 

 Sugiro, assim, ao Onésimo que clarifique melhor o seu pensamento, porque, como se costuma dizer, à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer ser séria. Isto quer dizer apenas que pode este político estar a incorrer num risco involuntário e absolutamente desnecessário, que levará outros a murmurar: “Naquele país, falar de regionalização (política e administrativa) é quase um crime de lesa-pátria ou um acto de desobediência cívica à doutrina centralista do PAICV, partido que muitas vezes sente-se dono e polícia da consciência do país”.

Em todo o caso, e dando-lhe o benefício da dúvida, quero crer que, contrariamente ao JNM, aquilo que Onésimo propugna para Cabo Verde, em geral, e a ilha de S. Vicente, em particular, é a regionalização no seu significado conceptual mais amplo e mais completo: eleição de órgãos representativos e governativos próprios e certo grau de autonomia financeira e de decisão política. De resto, tem sido por demais evidente em todos os artigos já publicados sobre regionalização (Arsénio de Pina, Adriano Miranda Lima, António Pascoal Santos, Luiz Silva, da minha própria pessoa, e vários outros jovens autores como Aldirley Gomes) e da posição já expressa por vários políticos locais e nacionais, que o conceito envolve um carácter político e simultaneamente administrativo bem como uma autonomia que, citando Adriano Miranda Lima (1), “corresponderá à amplitude que for conferida à transferência de autoridade político-administrativa, que quanto maior é, mais efectiva torna a autonomia. Uma autonomia configura responsabilidades político-administrativas próprias no espaço jurisdicional de um poder local e circunscrita a certas áreas de governação, que excluem normalmente as que têm uma relação directa com a soberania e são da estrita dependência do governo central.”

Voltando ao princípio desta narrativa (1ª parte), vimos que a antiga administração colonial, já na sua fase final, pensou num figurino administrativo diferente para o arquipélago de Cabo Verde e chegou a indigitar um governador para o Grupo Barlavento, o que revela já na altura uma correcta percepção das consequências político-administrativas da descontinuidade territorial da colónia e da necessidade de uma resposta adequada e mais próxima dos interesses daquelas ilhas. O companheiro e conterrâneo Adriano Miranda Lima, que foi vizinho em Tomar do governador então digitado, Dr. Jerónimo Graça (falecido em 2011), confirma que ouviu directamente da sua boca o facto aqui referido.

É verdade que tal solução não corresponderia propriamente ao que hoje defendemos actualmente para o país – a regionalização – mas constituía certamente o primeiro lance de um olhar realista para os problemas do arquipélago. Na realidade, a iniciativa do governo do MPD nos anos 90 seguiu, em certa medida, a lógica subjacente ao projecto da administração colonial, e se não fosse abortada por questões de ordem ideológica, estaríamos hoje a desfrutar em todo o arquipélago do seu impacto socioeconómico e quiçá político. Todavia, na presente conjuntura, essa regionalização minimalista já está fora do contexto, ultrapassada no seu ‘timing’, na medida em que como referi precedentemente, a sua concretização actual só serviria para matar a ideia e o conteúdo da regionalização, servindo exclusivamente os interesses de uma oligarquia política e económica bem instalada no conforto do poder, que tudo fará para abafar qualquer ‘radiografia’ do país, debate e tratamento dos problemas candentes da sociedade cabo-verdiana contemporânea. Ontem como hoje, a solução dos problemas de Cabo Verde requer o equilíbrio entre o factor geoeconómico e o político “tout court”, o primado da racionalidade sobre a obtusidade mental. Nenhuma decisão sobre a regionalização deverá ser tomada sem uma ampla discussão envolvendo os principais actores e a sociedade civil. Tão pouco será possível introduzir esta reforma e as que vêm anexadas, sem as preceder de um debate sobre o acervo de mudanças profundas e necessárias que o país reclama. Pois a regionalização, mormente a minimalista, sendo parte da solução, não será de certeza a panaceia para os muitos problemas graves e crónicos que já assolam o país. (FIM)

 

PS: A experiência de regionalização em curso em Marrocos (5), da iniciativa e impulsionada pelo próprio rei (que não pode ser acusado de querer dividir o seu país), e já em fase avançada de implementação, prova ser uma reforma natural e que merece a nossa atenção, desmonta as inverdades e fantasmas que, infelizmente, alguns querem construir em torno da problemática. Esta reforma é já prova de maturidade política de um país como o Marrocos.

 

(1)    LIMA, Adriano, “Descentralização Político-Administrativa (Entre a teoria e a realidade prática) – 1ª Parte”, Liberal Online, Fevereiro de 2012

(2)    LIMA, Adriano, A Regionalização em Cabo Verde: Recentrar o tema na agenda Nacional. Liberal Online, Fevereiro de 2012

(3)    Fortes Lopes, José, “Reacção do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde aos recentes desenvolvimentos políticos em Cabo Verde”. Notícias do Norte & Liberal Online, de Outubro de 2012.

(4)    La Régionalisation, une histoire de plus d’un demi-siècle. Association des Régions de France (A.R.F.) http://www.arf.asso.fr/histoire-du-fait-regional.

(5)    La Commission Consultative de la Régionalisation (CCR), Maroc:

-http://www.regionalisationavancee.ma/PageFR.aspx?id=5;       

-http://www.diplomatie.ma/Regionalisationavancee/tabid/220/language/fr-FR/Default.aspx;                  

-http://www.libe.ma/La-question-de-la-regionalisation-au-Maroc_a9519.html. 

(6)    http://noticias.sapo.cv/vida/noticias/artigo/1307828.html#showcomment

 

 

José Fortes Lopes

sábado, 23 de março de 2013


Do Colóquio/“Atelier” sobre a regionalização em 2007 ao Conselho de Ministro de 2013 em Mindelo: O enterro e a ressurreição da Regionalização Administrativa.

 

(Da Génese do Centralismo em Cabo Verde ao Debate da Regionalização: 2ª Parte)

 

Na primeira parte concluímos que estaríamos perante um confronto sobre os caminhos futuros para o país, entre um modelo conservador, centralista, partidarista, dirigista, fechado ao mundo não respeitador da diversidade e um modelo progressista, descentralizado democrático, regionalista, aberto ao mundo e respeitador dos valores da diversidade assim como os globais da cabo-verdianidade.

No meio disto tudo, decorre o debate sobre a Regionalização em crescente efervescência, o Grupo de Dinamização activa-se no Mindelo e os mais novos começam a vir a terreiro e a aderir entusiasticamente à ideia da mudança, emprestando-lhe o entusiasmo e a generosidade que são timbre da juventude e flor da esperança. O governo, por seu turno, de forma sorrateira, arma uma mise-en-scène e “contra-ataca” reunindo um conselho de ministros em S. Vicente, como querendo alardear uma intenção de abertura para a descentralização, durante o qual anuncia ‘projectos estruturais’, entre outros o Cluster do Mar e as polémicas obras na Laginha. Simples expediente dilatório para manter o muro de silêncio e o tabu à volta da Regionalização, mas que já não convence os que entendem que o caminho a seguir é o de uma verdadeira democratização política, social e económica do país, a única via para a alavancagem do futuro e para um desenvolvimento sustentável.

Mas não, em vez disso, assistimos a promessas de projectos grandiosos e votos piedosos para transformar Cabo Verde num país desenvolvido até 2030, quando depois de 40 anos de independência a sua estrutura permanece a de um país extremamente vulnerável, reciclador de esmolas, e no limite da viabilidade. Após ter anunciado há meses que já ia abrir o famoso Livro Branco e promover um debate alargado, parece que o Primeiro-Ministro arrepiou caminho e volveu-se a numa postura mais expectante, como que a ver no que param as modas. Todo o investimento em curso neste momento parece canalizado para desmontar, descredibilizar ou esvaziar a ideia da Regionalização, quando se pensava, conforme promessa feita, que o José Maria Neves ia orientar o seu partido no sentido de contribuir para o debate de ideias sobre a reforma em causa. Ao mesmo tempo, lança uma grande confusão conceptual sobre a Regionalização, baralhando o debate, ao defender a sua vertente exclusivamente Administrativa, pura hipocrisia de quem pretende iludir o cidadão sobre a natureza de um processo que é simultaneamente administrativo e político. É o mesmo que com muito empenho e zelo defende inoportunamente o projecto de Estatuto Especial para a capital, quando qualquer desatento percebe que esta iniciativa só poderá estar enquadrada numa discussão global no âmbito da Regionalização. Após anos de políticas centralistas, fundamentalistas, não poucas vezes apostando na táctica de dividir para reinar, acusa os regionalistas de quererem dividir o país. Estas alegações são tanto mais falsas e infundadas quanto até hoje não se provou que algum país tenha ficado pior ou dividido após a adopção da Regionalização, que é sempre uma receita vantajosamente aplicada em países com descontinuidade territorial e cambiantes culturais mais ou menos diferenciados no seu espaço. Como referi em artigos anteriores, na maioria dos países a Regionalização foi de tal maneira aprofundada e bem conseguida que as Regiões acabaram por ser consideradas entidades políticas ‘tout-cout’, com amplas latitudes políticas e administrativas, acabando o Estado Central por reservar-se a um carácter federador de Regiões, como é o caso da Alemanha, dos EUA ou da Espanha, e limitado ao exercício da soberania. Portanto, nada de criar papões neste debate. De resto, chegou o momento em que os centralistas e os conservadores devem dar o corpo ao manifesto anti-regionalista e apresentarem argumentos científicos convincentes que possam validar as suas teses sobre a eficácia e a bondade do centralismo e a inoperância da Reforma que propomos, pois de nada serve ataques pessoais ou argumentos falaciosos. Como já dissemos, estamos abertos e aguardando uma confrontação e um debate de ideias construtivos sobre estes e outros assuntos atinentes ao futuro de Cabo Verde.

 

É neste contexto que surgem dois artigos de Onésimo Silveira. “Descontinuidade Territorial e Regionalização”, em duas partes subsequentes, onde explana o seu pensamento sobre a Regionalização e anuncia aquilo que não surpreende ninguém, ou seja, que é adepto do modelo Ilha Região, modelo de resto adoptado pelo Grupo Dinamizador no Mindelo, de que ele faz parte, um modelo bastante consensual entre os adeptos da Regionalização em S. Vicente. O que mais surpreendeu foi a sua abordagem ao modelo de Regionalização. A um dado passo do artigo, escreve referindo: “Como autarquia supra-municipal, a região de São Vicente a si mesma lançaria um desafio para o futuro. O da solução dos seus problemas em regime de auto-administração, quer dizer, administrando-se a si própria, já não à distância, mas por intermédio de dirigentes regionalmente eleitos.” Mais adianta: “A regionalização administrativa para São Vicente consistiria numa autarquia local supra municipal, situada, quanto à atribuição de competências, a um nível mais elevado, entre o Município e o Estado. É o nível da região administrativa.”

Somos levados a extrair aqui que o Onésimo Silveira, ao ser cauteloso e mencionar ipsis verbis “Regionalização Administrativa”, está a falar Urbi et Orbi, tentando tranquilizar as pessoas que pensam que os regionalistas pretendem o isolacionismo ou uma independência de S. Vicente, ao mesmo tempo que parece lançar um piscar de olhos aos conservadores moderados, ainda indecisos, já que existem no país, nomeadamente nos partidos, como disse, pessoas professando posições extremamente reaccionárias sobre esta matéria. A estratégia do Onésimo pode justificar-se pelo facto de o projecto de Regionalização ser transversal a toda a sociedade mindelense, independentemente da cor partidária, já que sabemos existirem no PAICV da ilha apoiantes convictos desta reforma tanto na sua ala progressista como na conservadora. Lembremos que JMN e o PAICV declararam-se a favor de uma Regionalização puramente administrativa, ou seja, um modelo de pseudo-regionalização concebido sob a alçada e tutela do governo, e que mais não é que uma falácia sobre o próprio conceito. Teríamos, presume-se, uma não-regionalização, tão-só algum processo de desconcentração do poder político centralizado e que se traduz apenas em nomear um governador civil que em cada ilha se torna o pau-mandado do governo. Lembremos ao leitor que nos anos 90 o MPD teria tentado experimentar a chamada regionalização administrativa com a nomeação de governadores civis para S. Vicente. Foi o governo eleito do PAICV em 2001 e chefiado por JMN quem abortou esta experiência ainda no ovo. É a mesma pessoa, que acossada pelo debate e julgando que os cidadãos têm a memória curta, retira da sua cartola o mesmo projecto que chumbou 10 anos antes. Por estas e outras razões, as pessoas ficam descrentes da política e dos políticos, na medida em que estes demonstram sistematicamente incoerência e inconsistência nas suas posições. Todavia, acredito que o Onésimo Silveira não pretende essa solução e que talvez se tenha apenas enredado nos liames do conceito. Como pessoa bem-intencionada, admito que aquele político e pensador entenda que a designação “regionalização administrativa” contém implícita a armadura política que é o seu verdadeiro substrato conceptual e que se traduz basicamente na escolha eleitoral do poder regional e na detenção de uma larga e autónoma capacidade de decisão sobre os destinos da região. É que, a não ser assim, nada justificaria tanto debate e tanta eloquência discursiva derramada na praça pública. Pois se a Regionalização pudesse ser um puro processo administrativo despido de qualquer carga política, como pretendem os seus detractores, Portugal Continental teria sido sempre um país regionalizado, por ter governadores civis, ou a França não teria implementado nos anos 80 a Regionalização, na medida em que desde Napoleão ela está dividida em Prefeituras, com Prefeitos nomeados pelo governo e obedecendo às directivas centrais. Daí que mesmo depois da Reforma dos anos 80 a França tenha conservado as Prefeituras como instrumento governativo e administrativo do Poder Central, cedendo às prerrogativas do poder local para as Regiões. Assim, em cada Região francesa temos o poder do Estado representado pela pessoa do Prefeito e o poder Regional eleito e pessoa política. Portanto, meus senhores, são dois conceitos distintos, para quem pretenda intencionalmente baralhar as cartas.

 (continua: 3ª Parte: O Debate da Regionalização e a renovação política de Onésimo Silveira)

 

 

(1)    LIMA, Adriano, “Descentralização Político-Administrativa (Entre a teoria e a realidade prática) – 1ª Parte”, Liberal Online, Fevereiro de 2012

(2)    LIMA, Adriano, A Regionalização em Cabo Verde: Recentrar o tema na agenda Nacional. Liberal Online, Fevereiro de 2012

(3)     LOPES, José, “Reacção do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde aos recentes desenvolvimentos políticos em Cabo Verde”. Notícias do Norte & Liberal Online, 9 de Outubro de 2012.

 

 

                                    José Fortes Lopes

 

segunda-feira, 18 de março de 2013


Da Génese do Centralismo em Cabo Verde ao Debate da Regionalização

 

1ª Parte: A Génese da ideologia do Centralismo - a

 

Para percebermos como a problemática da Regionalização é antiga e já olhada com muita acuidade nos finais do século XIX, a leitura dos recentes artigos do Luiz Silva (Cabo Verde: Regionalização e Emigração I,II) publicados no Expresso das Ilhas dá-no-lo a conhecer e mostra-nos que ela é secular. Além disso, o extracto de um email recente nos faz recuar 50 anos no tempo para vermos que a problemática nunca saiu da actualidade. Alguém escreveu e traz informações desconhecidas para a maioria das pessoas: “Naquele país, falar de descentralização é quase um crime….. Herdámos uma administração colonial centralizada que servia muito bem os desígnios dos apoiantes do PAICG, depois CV, por isso não mexeram nela.  Uma curiosidade: Hoje ninguém recorda-se de que ia acontecer uma "descentralização" no tempo colonial. Chegou a ser criado o cargo de governador do Barlavento, (que seria um tal Dr. Graça,  salvo erro) e o chefe de gabinete seria o Chico Dias, mas não chegou a ser ocupado por ter havido o 25 de Abril. Penso que se tivesse sido efectivada esta "descentralização" colonial, a herança administrativa seria outra, pois o Barlavento ter-se-ia habituado ao seu governo local e no Cabo Verde independente teriam de aceitar isso.”

Alguns dirão que são apenas episódios da história colonial, a meter para debaixo do tapete como lixo de má memória, outros alegarão que os colonialistas apenas quereriam dividir para reinar, mas a verdade é que os factos são de real pertinência para uma melhor compreensão da situação do debate em curso sobre a problemática da Regionalização. Este email caiu assim muito a propósito no meio do debate, veiculando uma informação que vem demonstrar que os fundamentos invocados pelos defensores da Regionalização afinal não são de hoje. Vem lembrar-nos de que estava na agenda da administração colonial aquilo que alguns verberam com estranha acidez, o que demonstra que muitas vezes o progressismo nada tem a ver com rótulos ideológicos ou sistemas de dominação política. Significa que o colonialismo na sua fase final tentou “dar o corpo de si” reconhecendo o carácter regional de Cabo Verde? Se foi manobra de última hora ou expediente político puro, não se sabe! Hoje, olhando para trás no tempo só podemo-nos questionar sobre quantos anos teremos perdido ou ainda estaremos a perder, fruto da cegueira e da passividade dos actuais políticos, relativamente a uma reforma que já na época teria sido crucial e de um grande alcance em todo o arquipélago. Mas uma coisa é certa, as autoridades portuguesas entregaram sem delongas os cabo-verdianos às novas autoridades do PAIGC, erigido em partido único, sem se ter acautelado as condições de uma transição democrática em Cabo Verde e nem os interesses das suas populações, incluindo os das débeis forças políticas no terreno. Ambos os actores tinham muita pressa nos seus calendários políticos: as autoridades portuguesas ao tentar o tudo por tudo para desfazerem-se do seu império, que já era a fonte de todos os problemas de Portugal e um empecilho à sua plena reintegração urgente no mundo ocidental, ou melhor na CEE, e os combatentes do Paigc impacientes para alcançarem o poder e enterrarem o machado da luta armada. Nestas coisas costuma-se dizer que a pressa é inimiga da perfeição e amiga do azar. Pois efectivamente, se tivesse havido tempo ‘de ter sido efectivada a "descentralização" colonial, a herança administrativa seria outra, pois o Barlavento ter-se-ia habituado ao seu governo local e no Cabo Verde independente teriam de aceitar isso.” Mas isto são outras histórias, que remetemos para os historiadores, que neste momento apenas nos levariam a especulações e divagações. No entanto, tudo isto vem lembrar-nos de que a situação perniciosa do centralismo, que chegou ao paroxismo hoje em plena democracia, é uma herança colonial.

Os governos sucessivos após a independência sofisticaram o centralismo e, com o advento da democracia dos números, foi consagrado esse epifenómeno sobre todo o espaço cabo-verdiano, através da legitimação eleitoral. S. Vicente terá sido vítima da história e do seu próprio sucesso como foco de contestação do sistema colonial e que em 1974 abraçou quase unanimemente o PAIGC e a causa da independência. Nunca se fez o balanço da acção do centralismo em cerca de 40 anos de independência, vitimando de modo particular S. Vicente, uma ilha onde pairam os efeitos de um autêntico tsunami político, após o sismo político provocado pela brusco colapso do sistema colonial português. A sangria nunca parou e nunca mais S. Vicente se levantou. Vagas incessantes e sucessivas de emigrantes deixaram a ilha depauperada dos seus recursos humanos, desde os mais jovens aos mais experientes. Uma primeira vaga de cabo-verdianos terá debandado devido aos rumores de que o PAIGC seria um partido comunista ou apenas por quererem manter-se português, e incluía “colonos assimilados”, os ditos “contra-revolucionários” ou “catchor de dôs pé”, a pequena burguesia local, apelidada de colonial, constituída basicamente de pequenos funcionários e quadros administrativos. Uma segunda vaga levou carradas de pessoas pertencentes à elite local amedrontadas com o crescendo de um processo revolucionário ameaçador das liberdades, seguida da transferência de funcionários para a ilha-capital para preencher as funções do estado deixadas vacantes pela fuga da administração colonial, que paradoxalmente era constituída por quadros cabo-verdianos. A terceira vaga deu o estoiro final, carregou para a emigração grande parte das forças vivas que restava na ilha, desde pequenos funcionários, trabalhadores artesãos à procura de melhores dias, muitos por não acreditarem no novo regime que se declarava revolucionário e unipartidário. Uma vaga menos importante correspondeu a dos jovens que saíram para iniciar ou prosseguir os seus estudos universitários, e que nunca mais regressariam à sua ilha natal, incluiu estudantes ‘forçados’ ou ‘castigados’ pelo poder, muitos deles jovens elementos recém-integrados no PAIGC, mas já manifestando-se rivais da velha guarda, por isso susceptíveis de constituir perigo para o grupo de Conacri (ou melhor, os elementos não associados aos grupos de Lisboa), o que nos anos 80 levaria a uma depuração política no seio do PAIGC. Com as devidas proporções, poucos locais no mundo terão sofrido tanta ‘sangria’ humana em tão pouco tempo como S. Vicente. Temos assim aqui resumido a génese da queda de S. Vicente e a emergência de um fenómeno atípico e com forte carga ideológica, o centralismo.

 

1ª Parte: A Génese da ideologia do Centralismo - b

Podemos concluir que o PAIGC adaptou-se admiravelmente às condições centralistas criadas pela natureza intrínseca do sistema colonial implantado, aperfeiçoou-o e gerou um novo sistema centralizado político baseado no controlo político das populações, que mais tarde com o advento da democracia formal se transformaria em centralização total. Todavia, é preciso lembrar que embora a capital colonial se situasse na Praia, S. Vicente tinha a sua vida própria, constituída de alternativas e pulsões criadas pelo próprio sistema, de modo que Cabo Verde tinha dois polos importantes na articulação da sua estrutura administrativa. Nada disso foi levado em conta e a transição da ilha de um sistema colonial para um sistema pós-colonial já estava inoculada com o vírus de doença maligna. O PAIGC, afirmando que S. Vicente era o rosto da herança colonial, condenou a ilha a uma penitência de mais de 20 anos, parecendo não desejar tirar partido das suas potencialidades naturais e das estruturas nela deixadas, cuspindo assim no prato que o tinha alimentado, com a adesão quase unânime à causa deste partido em 1974. Ao invés, decidiu fazer tudo de novo, num propósito assumido de arrancar do zero, certamente para apagar quaisquer vestígios indesejáveis do passado. E foi assim que se houve investimentos, alguns até vultuosos, eles revelaram-se improdutivos, quer pelo desaparecimento da antiga elite social e empresarial, quer por não estarem bem configurados com a nova realidade social ou por não estarem integrados em sectores com potencial minimamente assegurado.

Com efeito, contrariamente ao que muitos detractores hoje afirmam, o estado actual de S. Vicente não se deve à falência dos modelos de desenvolvimento por incompetência ou inépcia da sociedade local, mas ao facto de a ilha ter perdido a força anímica que advinha da massa crítica social, que se exilou por causa da nova conjuntura política. Além disso, a dinâmica política independentista instaurada no país fez questão de arredar de S. Vicente todo e qualquer simbolismo representativo que poderia galvanizar a ilha para uma participação partilhada na discussão do novo rumo nacional. A instalação na ilha de alguns órgãos ou instituições de soberania teria bastado como sinal de confiança para que se operasse paulatinamente a renovação natural da massa crítica perdida. Mas, como nada disso aconteceu, faltando as condições de fixação para os poucos quadros que ficaram e os que se foram formando, estes, à falta de outra alternativa, tiveram de rumar à capital, onde se concentrava a máquina do Estado. Doravante seria um êxodo não justificado por causas políticas mas por uma simples questão de sobrevivência.

O evento da democracia e da instauração do regime pluripartidário resultaram de um novo tsunami político, que constituiu a contestação ao sistema todo-poderoso de partido único e à hegemonia total do PAICV em Cabo Verde, após o sismo político provocado pela brusco colapso do sistema comunista soviético. Aqui também não houve tempo para uma transição democrática que acautelasse os interesses de uma democratização do sistema cabo-verdiano. É assim que a oposição exilada no estrangeiro, nomeadamente a UCID e outros grupos, ficou de fora do processo, quando foram esses os primeiros a lutar pela instauração da democracia em Cabo Verde. A estrutura do poder permanecia na mesma elite que fundou o sistema de partido único e hostil a todos intrusos, nomeadamente estrangeirados, termo xenófobo inventado nos anos 80, carregado de hostilidade em relação aos emigrantes e à diáspora, vistas como ameaças potenciais. Onésimo Silveira, um estrangeirado rejeitado pelas elites locais, apesar de ter conseguido encontrar a sua via, entrou num colete-de-forças que se fechava em seu torno pelas pressões do PAICV e do MPD, ao mesmo tempo que viu acossada a sua política autárquica na Câmara de S. Vicente pelas políticas centralistas, ou asfixiantes, do governo do MPD. Onésimo Silveira terá cometido inúmeros erros políticos derivados dessa situação política algo esquizofrénica criada pelo próprio processo de abertura. Com a perda do poder pelo MPD, entrou em força um governo de tendência fundamentalista com o ADN santacatarinense, reivindicando um retorno ao irredentismo e ao africanismo, tentando valorizar em exclusivo tudo o que tem origem na ilha de Santiago, costumes, língua, folclore, etc. Ingenuamente, o Onésimo Silveira terá servido como embaixador daquilo que ele hoje paradoxalmente denuncia e condena sem dó nem piedade - as políticas hegemónicas do regime. Este foi um erro estratégico que ainda paga caro, e que muitos acreditam ter sido uma armadilha montada para o desacreditar ou esvaziar o seu capital político. De qualquer maneira, são elementos próximos do regime que hoje usam este facto como arma de arremesso para atacar ferozmente a credibilidade de Onésimo, agora que tomou a dianteira do debate e aparecendo cada vez mais como interlocutor conveniente do regime. Onésimo é sem dúvida a pessoa que mais tem desmontado as políticas hegemónicas deste governo no plano cultural e da língua, um regime que introduziu um discurso messiânico, cantando que ‘Uma vez era Cabo Verde: Santiago e Cidade Velha’, o que soa mal nos ouvidos de muitos cabo-verdianos, nomeadamente do Onésimo. 

Com efeito, toda a política do país está hoje centrada na ilha-capital e dirigida para ela, absorvendo os recursos humanos e financeiros com chocante exclusividade, de modo que tudo o que é de moderno e bom tem ali lugar privilegiado, com o objectivo único de servir a ilha e o empoderamento dos seus habitantes e da sua cultura, tida como o centro único e unificado de Cabo Verde. S. Vicente, o pólo natural da região Norte e sempre rival da capital, está relegado para segundo plano, votado a uma total irrelevância política, enquanto os mindelenses emigrados na Praia regem a partitura dos seus interesses pessoais, adoptando uma postura cada vez mais indigna ou subserviente, induzindo a abulia cívico-política da população da sua ilha. Portanto, colaboram com o apagamento do chão onde nasceram quando não incentivam inconscientemente atitudes contrárias ao seu próprio interesse, na medida em que muitos deles verberam quem ousa dizer que o rei vai nu, num claro apoio ao centralismo político e à marginalização da sua ilha. Este é o panorama actual do confronto entre os novos progressistas (incluindo regionalistas e reformistas), que reclamam reformas e um novo paradigma para Cabo Verde, e os ‘actuais reaccionários’ às reformas, incluindo centralistas, as elites fidelizadas que giram em torno dos círculos de poder, todos pactuadas com os fundamentalistas que detêm o poder actualmente. Os reformistas, ao proporem uma visão diferente para Cabo Verde, não coincidente com a dos fundamentalistas e conservadores reaccionários, tornam-se alvos da sua ira, sofrendo contra-ataques ferozes só porque defensores da ideia da regionalização, e não poucas vezes com catalinárias furibundas a atingir o carácter das pessoas com a insinuação de que o que pretendem é dividir Cabo Verde e arranjar trampolim para atingir o poder. Comportam-se como autênticos fátuas electrónicos, sem outra atitude que não a da intolerância irracional e demolidora, sem outra mensagem que não a da manutenção de um status-quo que apenas favorece quem o promoveu e dele tira proveito, lembrando os velhos tempos do fanatismo ideológico. Estamos pois perante um confronto ideológico sobre os caminhos futuros a seguir para Cabo Verde, entre o modelo centralista, dirigista, autoritário, quase pessoalizado, com contornos perigosamente étnicos, e um modelo regionalista, descentralizado, democrático, aberto e respeitador dos valores globais e seculares da cabo-verdianidade como uma visão para o futuro. (Continua: 2ª Parte: O Debate da Regionalização.)
José F. Lopes

quinta-feira, 7 de março de 2013

CABO VERDE: REGIONALIZAÇÃO E EMIGRAÇÃO

 

Um texto de Luiz Silva

 

  

 

Todos os partidos políticos já se pronunciaram a favor da Regionalização em Cabo Verde. Estão todos convencidos de que a realidade geo-económica e cultural das nossas ilhas não se coaduna com o centralismo político e económico do Estado imposto pelos governos sucessivos após a Independência do país. O movimento regionalista aparece assim numa procura de reinvenção de Cabo Verde, com um modelo político e económico onde todos os Cabo-verdianos se sintam parte integrante da Nação cabo-verdiana e não excluídos, como sucede com uma franja do povo das ilhas e também da diáspora.


 

Será que a Regionalização poderá contribuir para pôr termo às assimetrias económicas, sociais e culturais resultantes do centralismo do Estado, que somente provocou desequilíbrios internos, bairrismos, alienações e até falsidades históricas?  A Regionalização será para os emigrantes uma oportunidade de terem voz e palavra na gestão política e económica de Cabo Verde, dada a sua participação na construção do país?

 

Uma leitura histórica dos combates dos emigrantes por Cabo Verde, desde há mais de dois séculos, feita com clareza e profundidade, confirma que a contribuição dos emigrantes não se limita simplesmente às remessas. A sua contribuição nos aspectos social e cultural foi muito importante. Os emigrantes cabo-verdianos, para além de serem potenciais investidores, são também portadores de uma grande experiência política vivida em vários países do mundo, onde o regionalismo e o federalismo imperam com muita eficiência e com resultados benéficos para o país. A emigração poderia ser mais uma região mais ao largo, exigindo também uma política especial no plano regional e dependendo da ilha ou região de origem.

 

Origens do movimento regionalista em Cabo Verde

 

O movimento regionalista em Cabo Verde não é de hoje: sob influência do movimento regionalista nordestino brasileiro, nasceu em Cabo Verde, nos princípios do século XX, um movimento regionalista cabo-verdiano liderado pelo grande poeta-compositor de mornas e homem político Eugénio Tavares (Brava - 1868/1930), sem dúvida o maior militante da nossa emigração para a América, como também aquele que denunciou, com elevada coragem, a emigração para São Tomé e Príncipe. Sobre o regionalismo escrevia Eugénio Tavares no n° 205/1915 da Voz de Cabo Verde, num artigo intitulado “Usurpação da Função Pública: “Regionalismo é um sentimento de dignidade. Logo, excessos regionalistas, dado aqui vicejassem, mais não podiam ser que excessos de dignidade. E excessos de dignidade, mesmo quando prejudicam, honram.”

 

Ainda sob influência do movimento regionalista nordestino surgia em 1936, em São Vicente, a revista Claridade que, ao nível da literatura e do ensaio, definiu as linhas mestras da caboverdianidade, hoje mundialmente reconhecidas. Aliás, foi o antigo Presidente da República de Cabo Verde, Aristides Pereira (1924/2011), que em 1986, no Simpósio da Claridade, considerava a essa revista como o símbolo da verdadeira independência cultural de Cabo Verde.

 

Mas após a Independência, o partido único, encostado a uma filosofia que excluía a diversidade de opiniões e os emigrantes da Nação, não permitia qualquer veleidade regionalista para aqueles que viviam no próprio país. Aliás, a ideia de alguns comerciantes mindelenses de se organizarem em sindicato fora dos cânones do partido único levou alguns patrícios às masmorras do Quartel de João Ribeiro em São Vicente. Mas o movimento regionalista manteve-se intacto na diáspora, desenvolvendo actividades sociais e culturais, que foram importantes para manter a coesão das nossas comunidades.

 

A abertura política em Cabo Verde, graças ao combate dos emigrantes, permite, agora, um debate sobre a Regionalização, esperando-se assim encontrar um novo modelo de gestão da Nação na sua diversidade, de forma a que receba uma maior contribuição dos emigrantes em todas as áreas.

 

A emigração na criação da Nação

 

A emigração é antes de mais uma questão local ou regional antes de ser nacional. Desde o século XIX que os cabo-verdianos vêm criando comunidades no estrangeiro. Os primeiros emigrantes trabalhavam no mar alto, na pesca da baleia, indo um grande número desses heróicos marinheiros fixar-se no leste dos Estados Unidos em cidades crioulas como New Bedford, Providence, Pawtuket. Para ali levaram a sua música e criaram as suas associações de solidariedade, sem as quais não teria sido possível organizar essas comunidades. A nossa literatura romanesca é um verdadeiro testemunho dessa emigração. O nosso “Chiquinho”, romance iniciático de Baltasar Lopes, é acima de tudo a história de um percurso migratório para os Estados Unidos de um Sãonicolense, com um projecto de emigrar para conseguir bens materiais e culturais: trabalhar de noite e estudar de dia, pensando na sua ilha e à procura de mecanismos para a sua transformação política e económica após o seu regresso.

 

Ali nos Estados Unidos, em contacto com os movimentos cívicos, os Cabo-verdianos repensaram o seu percurso no espaço colonial português, marcado pela escravatura e a colonização. Daí se lançaram na invenção da Nação cabo-verdiana, que em várias etapas foi tomando corpo, a ponto da existência da Nação cabo-verdiana anteceder a independência do país. A lição dos movimentos de emancipação dos negros americanos fizeram compreender aos emigrantes cabo-verdianos que somente com a construção de uma nação independente seria possível ultrapassar-se as sequelas da escravatura e do colonialismo.

 

Os emigrantes cabo-verdianos dos Estados Unidos, ao regressarem à terra, não só trouxeram dólares mas também valores morais e uma elevada consciência da dignidade e da justiça. A eles se deve as transformações sociais e culturais em certas ilhas nos fins do século XIX e princípios do século XX. Foi na América (New Bedford), no ano de 1900, que o emigrante Eugénio Tavares clamou no seu jornal Alvorada: « África aos Africanos » ou a « África terá o seu Monroe », referindo-se à doutrina Monroe que interditava os ingleses de intervirem no espaço americano. Os Cabo-verdianos dos Estados Unidos participaram na Primeira Guerra Mundial num batalhão estrangeiro, mas na Segunda Guerra Mundial combateram num batalhão cabo-verdiano, provando que a Nação cabo-verdiana já existia, enquanto que Portugal mantinha a sua neutralidade na luta contra o fascismo. Mas depois que a “América fechou as portas à nossa expansão”, segundo o poeta Jorge Barbosa, surgiu a emigração para o Senegal, um país africano amigo, que fraternamente soube acolher os cabo-verdianos e que se solidarizou com Cabo Verde nos anos das secas e das fomes, como também no plano político para a sua independência.

 

A frentes de luta da emigração pela emancipação da Nação

 

Mas, sem dúvida, foi a emigração para a Holanda, a partir dos anos cinquenta, que veio notoriamente a transformar as ilhas nos planos económico, cultural e político e criar as condições necessárias para a fundação de um Estado independente. O projecto de emigração para a Holanda nasceu com a chegada, nos anos cinquenta, de uma dezena de Cabo-verdianos, todos saídos clandestinamente do Porto Grande de São Vicente. A fuga através do Porto Grande era a resposta política dos Cabo-verdianos à partida forçada para as roças de São Tomé e Príncipe e ao regime colonial impostos pelo governo português. Esse pequeno grupo de apóstolos da emigração, consciente da situação em que se vivia em Cabo Verde, fez um apelo aos comerciantes mindelenses, no sentido de enviarem trabalhadores para os barcos holandeses e de outras nacionalidades que necessitavam de mão-de-obra. Houve mesmo reuniões de comerciantes e intelectuais, entre os quais se destacam Mateus Santos (Matigim, pai de Constantino Delgado), Manuel Matos, Baltazar Lopes e o próprio administrador Luís Rendal, com o fim de se criar um fundo para o envio de jovens cabo-verdianos para a Holanda. Mesmo assim não faltaram agiotas a proporem empréstimos com juros a 100%, como ficou glosado numa coladera de Frank Cavaquinho. Mas também houve gente de bom coração que emprestou dinheiro sem qualquer juro aos jovens candidatos à emigração.

 

O grupo da Holanda criou hotéis para receber os emigrantes (o primeiro foi o Hotel Delta, de Constantino Delgado), loja para fornecimento de vestuário para enfrentar o frio e os temporais no mar alto (de Djunga de Biluca) . Quinzenalmente desembarcavam na estação de comboio de Roterdão centenas de Cabo-verdianos que eram acolhidos nos hotéis crioulos, iniciados na vida marítima e depois colocados nos barcos através de amigos e agentes, a quem tinham de pagar para os embarcar. Os melhores marítimos, técnicos, incluindo estudantes liceais que fugiam à guerra colonial, chegavam a Roterdão para mostrarem ao mundo que eram “the best sailors of de world”, no dizer do poeta Osvaldo Osório.

 

O apelo do grupo dos apóstolos da emigração para a Holanda estendeu-se a todos os cantos e rincões das outras ilhas e também às colónias de emigração, ao tempo, Senegal, Angola, Brasil, Argentina e mesmo os Estados Unidos. Alguns desses heróis ainda estão vivos e os que morreram ficaram na memória do povo. Merecem estátuas, condecorações e que os seus nomes sejam dados a avenidas, porque libertaram o povo de Cabo Verde das secas e das fomes, do caminho e das roças de São Tomé e Príncipe e deram um grande contributo para a independência. Cito alguns nomes de memória: Eduardo de Bia Dideal, Constantino Delgado, Djunga de Biluca, Manuel Cassidy, Domingos Paps, Arnaldo de Tadô, Sidónio Antunes e outros que não consegui identificar. Os emigrantes lamentam que pelo 5 de Julho, data da Independência, se esqueça também de homenagear os emigrantes pelo seu papel determinante na Independência nacional.

 

Existe uma tendência em Cabo Verde em menosprezar-se as competências dos emigrantes. Ora, acontece que no caso da Holanda, os candidatos eram seleccionados entre os melhores profissionais e exigia-se-lhes uma certa conduta moral reconhecida na sociedade. Outras vezes a escolha recaía sobre um elemento mais bem formado da família, visto a missão ser de grande importância económica, como também a de defender o bom nome de Cabo Verde. Foi graças a essa atitude selectiva e também ao apoio de administradores, como Luis Rendall e Adalberto Oliveira « Minito », que os emigrantes cabo-verdianos da Holanda realizaram o sonho de transformar Cabo Verde.

 

O sacrifício foi enorme  e ainda a Nação Cabo-verdiana não teve consciência disso: houve emigrantes para a Holanda que trabalharam cinco anos nos barcos, sem tomarem um dia de férias, para poderem financiar a vinda dos seus irmãos e outros familiares. Os exemplos são muitos : conheci uma família de oito irmãos que se associaram para enviarem o irmão mais velho para a Holanda e, em três anos, todos os irmãos tinham emigrado para esse país com as respectivas famílias. Em todas as famílias, quando o pai ou o filho mais velho emigrasse para a Holanda a situação social mudava radicalmente e os irmãos podiam assim prosseguir os estudos liceais e mesmo universitários.

 

A passagem por um país como a Holanda, onde as estruturas sociais exigem uma certa moralidade, serviu de modelo a muitos patrícios que se deram ao exercício de recompor as suas famílias pelo casamento, educar devidamente os seus filhos, dignificando-se por uma nova postura de estar e viver na sociedade. O casamento, que era próprio de famílias pertencentes à pequena burguesia, democratizou-se e a maioria dos emigrantes de regresso ao país casavam-se, diminuindo assim o número de filhos ilegítimos, fenómeno corrente na sociedade cabo-verdiana. Mas os casamentos que até então era um acto religoso feito na Igreja católica, quase imposto pelo regime colonial, passaram a ser, na sua a maioria, feitos no Registo Civil.  Este facto explica-se pela influência dos emigrantes vindos de países protestantes e também do racionalismo cristão crescente no seio das comunidades emigradas, importado da ilha de S. Vicente ou directamente do Brasil, ou ainda por uma manifesta atitude de repúdio contra a Igreja católica pelo seu apoio ao regime colonial que conduzia uma guerra em três frentes na África e que impunha uma severa censura às manifestações culturais e políticas cabo-verdianas.

 

Deve-se no entanto aqui deixar bem explícito que, após a independência, graças ao aparecimento de um novo clero cabo-verdiano, a Igreja católica fez a sua própria evolução política e deu um grande contributo para a abertura política. O seu jornal Terra Nova, dirigido pelo frei António Fidalgo Barros, foi o verdadeiro porta-voz da oposição e da defesa dos direitos dos emigrantes.

 

Até 1968, a presença de Cabo-verdianos em Portugal limitava-se a altos funcionários públicos, estudantes universitários e desportistas. Foi somente com a diminuição da mão-de-obra na construção civil e nas minas, na sequência da guerra colonial e da emigração portuguesa para França e Alemanha, que Portugal se tornou numa terra de emigração para os cabo-verdianos de todas as classes. Sem qualquer preparação e formação, eram recrutados no interior das ilhas com falsas promessas de salários, em condições similares à da emigração para São Tomé e Príncipe. As condições de trabalho eram horríveis, os alojamentos eram insalubres e frios, quando não eram obrigados a viverem em barracas e em zonas degradadas. Actualmente no Bairro de Santa Filomena na Amadora são frequentemente  expulsos das suas residências, sem que o Governo de Cabo Verde reaja. Isto faz-nos lembrar da situação dos portugueses nos bidonvilles da região parisiense nos anos sessenta do século passado, onde várias formas de resistência e de solidariedade foram criadas para vencerem as condições de vida e de trabalho (Alfredo Margarido – Éloge des bidonvilles).

 

Mas o mais triste na história da emigração cabo-verdiana em Portugal é que este país foi o único, na história da descolonização, a retirar a nacionalidade portuguesa aos originários das suas colónias, a menos que provassem ter origem portuguesa “continental” ou uma residência de cinco anos em Portugal. O próprio Salazar nunca faria isso, pois teria na memória o facto de ter enviado para as prisões de Caxias e do Tarrafal centenas e centenas de africanos, por terem reivindicado a sua nacionalidade africana. O acordo da independência, entre Cabo Verde e Portugal, à imagem do que aconteceu com os outros países colonizadores europeus, previa que os cidadãos das colónias, que reunissem os requisitos para conservarem a nacionalidade portuguesa, teriam um período de dois anos para escolherem a nacionalidade da sua preferência. Ora, aconteceu que, quinze dias após a independência, a comunidade cabo-verdiana foi informada pelo Consulado de Portugal em Paris e Versalhes de que teriam recebido um telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal a bloquear a concessão de passaportes aos naturais de Cabo Verde. O silêncio do governo de Cabo Verde demonstrou que havia um conluio entre os dois governos para estrangular a emigração cabo-verdiana que contestava a unidade Guiné-Cabo Verde através das suas associações. Mesmo aos funcionários oriundos das “províncias do ultramar” não eram renovados os documentos de identidade, se não pudessem provar a origem portuguesa ou a presença de cinco anos em Portugal. Essa decisão do governo português teve repercussões graves em toda a emigração cabo-verdiana na Europa. Na Holanda, foi o caso da Neddloyd que licenciou centenas e centenas de Cabo-verdianos por se lhes ter retirado a nacionalidade portuguesa. Muitos deles foram morrer de frio e sede na Rua de São Bento em Lisboa com a revolta contra Portugal estrangulada no peito. Que foi feito do dinheiro pago para a concessão dos passaportes portugueses e das taxas militares obrigatórias para os Cabo-verdianos? Em França, tivemos que esperar até 1981, com a vitória de François Miterrand, para que os emigrantes cabo-verdianos, apoiados pela Associação Solidariedade Cabo-verdiana, fossem legalizados. Queria aqui mesmo testemunhar a minha admiração e respeito pela Senhora De Saint Michel, assistente social, que lutou encarecidamente para legalizar os Cabo-verdianos em França.

 

Não podemos também aqui ignorar a trágica emigração para São Tomé, iniciada desde 1861 e retomada em 1902 e anos seguintes e que foi denunciada por Eugénio Tavares e Sena Barcelos. Essa forçada emigração foi retomada nos fins dos anos 40 e mais uma vez denunciada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Luis Romano, Amílcar Cabral, Ovídio Martins Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, entre outros, a cujas vozes se juntaram em particular as dos nossos trovadores Jorge Monteiro (Jotamont), Lela de Maninha, Abílio Duarte, Manuel de Novas. Um grande número desses irmãos ainda hoje ali continua, quando no “contrato” havia uma cláusula que estipulava o regresso após três anos de sacrifícios. Esses irmãos foram abandonados nas roças de São Tomé e nem Cabo Verde e nem Portugal assumiram o seu regresso. O governo de Cabo Verde poderia ter pedido a intervenção das Nações Unidas para o regresso desses Cabo-verdianos, tanto mais que o líder nacionalista Amílcar Cabral denunciara em seu tempo essa deportação para as roças de São Tomé junto das Nações Unidas. Aliás o PAIGC/CV anda a trair os seus próprios estatutos datados de 1960 que previam no seu artigo 3° : o regresso imediato dos Cabo-verdianos das roças de São Tomé e Príncipe.

 

Porém, a culpa por estes factos não pode ser simplesmente atribuída ao governo de Cabo Verde. Como compreender o actual silêncio dos intelectuais que nos anos cinquenta denunciavam corajosamente a emigração forçada para São Tomé e Príncipe? E os municípios que se interessam pelas comunidades nos países ricos, porque não se interessam também pela situação dos emigrantes dos países pobres como os da África, em particular de São Tomé e Príncipe? Ou será que somente se ocupam dos emigrantes com capacidade de investimento? Haverá uma união sagrada entre os partidos, os municípios e os intelectuais para silenciar o drama dos Cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe que são enganados nos períodos eleitorais? A Associação dos Municípios nunca organizou um simpósio ou um debate sobre a emigração. Os presidentes dos municípios gostam de geminações para poderem viajar gratuitamente e ser hospedados em hotéis de luxo, mas esquecem-se de que os embaixadores dos municípios nas terras de emigração são os emigrantes.

 

Cabo Verde é hoje um país moderno, reinventado por uma larga participação da sua emigração, incluindo antigos deportados de S. Tomé e Príncipe que graças à solidariedade dos amigos e irmãos conseguiram chegar à Holanda. Em todos os cantos das ilhas os emigrantes plantaram casas, árvores, escolas, financiaram a formação de quadros, investiram em vários sectores económicos e, com a experiência e o saber adquiridos, trouxeram valores que enriqueceram a caboverdianidade.

 

Emigração e luta de libertação nacional

 

Desde o ano de 1962 Amilcar Cabral aproximou-se da emigração na Holanda, como já fizera em Dakar, no Senegal. Segundo Djunga de Biluca, o professor António Saint Aubyn (Totô) e o Dr. Jorge Humberto, (Nhunha), na época jogador de futebol no Inter de Milão, foram os primeiros militantes da independência de Cabo Verde a deslocarem-se em nome do PAIGC para conscientizar os emigrantes a favor da luta pela independência. Mas foi em França, em 1964 (no próximo ano festeja-se os 50 anos da partida do grupo de Mozelle) que o PAIGC recrutou os primeiros combatentes para os maquis da Guiné Bissau.

 

No chão da Holanda nascia, em 1966, o conjunto A Voz de Cabo Verde, expressão máxima da cultura musical da nossa emigração, graças a um grupo de artistas  que tão bem souberam levar o nome de Cabo Verde além fronteiras. Foram eles: Bana, com a sua cálida e maviosa voz, Luis Morais, genial clarinetista, Morgadinho, grande compositor de mornas mas também o melhor trompetista cabo-verdiano, e, ainda, Toi de Bibia, Jean da Lomba, Frank Cavaquinho e Chico Serra. Outros músicos seguiram as pisadas da Voz de Cabo Verde, como Humbertona, Valdemar Lopes da Silva, Baltasar Barros “Nhô Baltas” e tantos outros artistas que passaram por Roterdão e que fizeram da música um engajamento político. Destacam-se, na promoção do grupo, o editor Djunga de Biluca, proprietário da editora Morabeza, Constantino Delgado, o financiador do grupo e ainda Djosa de Bernarda, que apoiou o grupo durante a estada na Holanda, bem como Zó Barbosa, na altura Presidente do Círculo dos Estudantes da Universidade de Lovaina, na Bélgica, que acolheu o grupo durante o período em que esteve à espera do visto para voltar a entrar na Holanda. Graças aos seus emigrantes, em especial os músicos, Cabo Verde é mundialmente conhecido e tem recebido ajudas internacionais dos países onde labutam os Cabo-verdianos. O sucesso musical de Cesária Évora deve-se também ao sacrifício dos emigrantes, cuja solidariedade foi determinante no lançamento da carreira internacional da nossa Diva de Pés Descalços.

 

Emigração e associativismo

 

Outro contributo da emigração para a dignificação da nação e para a causa independentista veio do movimento associativo que nasceu em 1968 na Holanda com o objectivo de defender os interesses da comunidade emigrante, numa ruptura total com o sistema colonial. Este modelo associativo iria estender-se a todas as comunidades caboverdianas na Europa. O seu jornal “Nôs Vida” foi o porta-voz das revindicações dos emigrantes, merecendo ser reeditado num volume. Contou com a colaboração de escritores cabo-verdianos em França, Brasil, Estados Unidos e de muitos anónimos. Foi também um jornal ao serviço da luta pela independência de Cabo Verde. Perante isto, não se pode falar de emigração simplesmente em termos económicos. E o erro de se insistir numa simples leitura económica da emigração impede tanto aos nossos historiadores como aos nossos políticos de situarem a nossa emigração no seu contexto político. Dizia Alfredo Margarido que a emigração é antes de tudo uma questão política, pois são os erros políticos que determinam as crises e forçam os homens a emigrarem.

 

O movimento associativo, que conheceu dias de glória antes e depois da Independência, desapareceu da cena da emigração devido à sua marginalização pelo Estado cabo-verdiano. Restam aquelas associações que estão coladas aos partidos políticos e que vivem das subvenções do Estado de Cabo Verde. O governo e os municípios precisam de repensar na criação de um movimento associativo que, por um lado, vise a defesa dos emigrantes e, por outro, esteja directamente comprometido com o investimento em Cabo Verde. E para isso devem ser formados dirigentes para essas associações, como acontece nos antigos países de leste e na África mediterrânica. Aliás Portugal, segundo o Luso Jornal de França, está a organizar nos seus consulados formações para dirigentes associativos.

 

A emigração no contexto da regionalização

 

Cabo Verde não foi para a independência com riquezas materiais, mas encontrou um país reconstruído pelos emigrantes que também tinham participado na formação de quadros e na evolução social e cultural da sociedade. A sua única riqueza, dizia o Presidente Aristides Pereira, era o homem cabo-verdiano com a sua coragem, inteligência e tenacidade. Mas o emigrante poderia ter feito mais se os governos sucessivos tivessem tido em conta as suas aspirações e a  realidade dos países onde vivem. A Regionalização será pois uma grande oportunidade de se repensar Cabo Verde sem excluir os emigrantes e uma uma ocasião de pensarmos numa verdadeita política de emigração, porque ao contrário do turista, a falsa galinha de ouro de Cabo Verde que nada deixa no país, o emigrante partilha tudo o que leva, para além do seu habitual investimento. Em termos económicos não é fácil avaliar-se a contribuição do emigrante: o dinheiro vai com ele no seu bolso, as encomendas são enviadas de barco, os bilhetes de avião que paga são dos mais caros do mundo, é explorado nas Alfândegas, coisas que nunca poderão ser contabilizadas. Recentemente, o economista cabo-verdiano João Estevão declarou que as transferências dos emigrantes teriam diminuído de 10%. Conheço bem a crise económica que se vive na Europa e especialmente em Portugal. Mas há outras causas: nunca houve uma verdadeira política de emigração para rentabilizar as economias dos emigrantes. A criação de um Ministério das Comunidades, um exagero, não resolve o problema. O que exigimos há mais de trinta anos é a criação do Conselho das Comunidades, autónomo, eleito pelos emigrantes e onde estes poderão ter voz e palavra nas escolhas das políticas de emigração. Já está provado que os dois deputados da emigração, sem ideias próprias, nunca tiveram palavra na Assembleia Nacional. Sabe-se por outro lado que os emigrantes que tinham investido em Cabo Verde estão a vender os seus bens, preferindo regressar, devido à falta de segurança, roubos dos seus bens, problemas de saúde, etc.

 

Uma outra revindicação dos emigrantes é a criação de um Banco de Emigrantes em Cabo Verde com tentáculos nos consulados e embaixadas, com a participação dos emigrantes a 70% e do Estado cabo-verdiano a 30%, para efeito de fiscalização. O Mali, a Mauritânia e Marrocos instalaram bancos em consulados e embaixadas, funcionando aos sábados e domingos, o que muitas vezes tem salvo esses países da crise económica. Este banco teria em conta a política monetária dos países de origem dos capitais e, a exemplo da Argélia, daria vantagens aos Cabo-verdianos emigrados nesses países. A verdade é que os países de emigração têm também políticas para captar as economias dos emigrantes, a começar por créditos para compra de casa, mobiliário, taxas de juros favoráveis, etc., para que as economias dos emigrantes não saiam do respectivo país. E este banco de emigrantes, dando verdadeiras vantagens aos emigrantes, traria uma maior capacidade de intervenção destes na vida económica de Cabo Verde.

 

Com mais de sessenta anos de emigração para a Holanda com uma história económica, social e cultural importante, não é admissível o facto de não haver um Centro Cultural Holandês em Cabo Verde e em especial em São Vicente, onde nasceu a emigração para a Holanda. As relações entre Cabo Verde e a Holanda nunca se limitaram simplesmente a relações comestíveis. Precisamos de um Centro Cultural Holandês à imagem dos centros culturais português e francês, onde o povo cabo-verdiano possa conhecer os valores económicos, culturais e sociais desse país.

 

Ao nível do ensino liceal e técnico, porque é que as línguas dos países de emigração, como o holandês e o italiano, não podem ser ensinadas como disciplinas de opção, o que facilitaria não só o intercâmbio cultural como também o conhecimento e a história dos países de emigração? Em verdade, o ensino das línguas em Cabo Verde não acompanha a política de emigração e nem está contemplado no projecto de  globalização em que Cabo Verde pretende inserir-se.

 

Nunca é demais insistir na necessidade de se realçar o papel dos emigrantes na história económica, política e cultural de Cabo Verde. Os manuais escolares dos alunos do ensino primário e secundário abordam muito superficialmente as causas da emigração e suas consequências na vida económica, social e cultural do país. Nas universidades, faltam verdadeiros especialistas da emigração para dirigirem seminários e mestrados. Que sabe o jovem estudante liceal ou o jovem universitário cabo-verdiano da formação dessas comunidades e da sua contribuição na história de Cabo Verde há mais de dois séculos? Deveríamos criar um arquivo da emigração e pô-lo à disposição dos alunos e pesquisadores. Por isso a história da emigração está por ser escrita e recomenda-se ao Ministério da Educação a criação de uma equipa pluridisciplinar de estudiosos compreendendo no seu seio emigrantes, os verdadeiros actores desta saga histórica, para que possam reescrever a parte que lhes cabe da História de Cabo Verde. Em tempos, até se entregou à antiga potência colonial a responsabilidade de escrever a nossa História. Isto faz-me lembrar de uma frase de Aimé Césaire citada no seu Discours sur le Colonialisme:  « tant que les lions n’auront pas leurs propres historiens, les histoires de chasse ne pourront que chanter les gloires du chasseur ». A própria universidade deve ser repensada de forma a responder aos sonhos e objectivos para o desenvolvimento de Cabo Verde. Temos muitas universidades, o que não quer dizer que produzamos um ensino de qualidade. O diploma é como uma carta de transporte, mas nunca provou saber e qualidade. Pode-se ser diplomado mas é na prática quotidiana que se confirma o saber.

 

As nossas universidades deverão contribuir para o melhor conhecimento da emigração, como disciplina pluridisciplinar, recrutando quadros da diáspora, incentivando o intercâmbio universitário, afim de despertar o interesse de todos os Cabo-verdianos para este percurso histórico que foi fundamental para o nascimento de Cabo Verde como Nação livre e independente.

 

Hoje os problemas dos emigrantes e de Cabo Verde são outros, pois não se trata da luta contra as secas e as fomes ou da luta anti-colonial. Perante os desafíos actuais, os candidatos à emigração devem ser previamente preparados. O mesmo se deve exigir dos quadros das embaixadas e consulados que devem ser recrutados não por simpatia ou filiação partidária e conhecer as realidades da nossa diáspora e do país em que vivem. Num país como a França há necessidade de cônsules honorários nas localidades onde vivem os nossos emigrantes, dada as distâncias entre Paris e os locais de residência, e que poderiam apoiar os movimentos associativos.

 

Em países regionalizados é a Região que se ocupa da emigração, empurrando os municípios a assumirem também a sua responsabilidade na matéria. Os emigrantes votam em todas as eleições, são informados dos projectos dos municípios e muitas vezes são os próprios municípios que organizam voos charters para que nenhum filho da região passe as férias noutra localidade. No Sul da Itália, durante o período de Julho, Agosto e Setembro, o município, as empresas, os bancos, as igrejas, o teatro, os cinemas, os jornais põem-se ao serviço dos emigrantes. São estes organismos que procuram os emigrantes para lhes apresentarem os seus projectos. Os funcionários não entram de férias durante esses três meses e a maioria dos organismos, como os municípios, os bancos, as empresas e mesmo as igrejas funcionam 24/24 horas. Em três meses o comércio, os bancos e as empresas ganham o suficiente para repousarem durante os outros nove meses do ano. Se os nossos municípios tivessem uma política de emigração idêntica a esta, encontrariam na diáspora militantes dispostos a participarem em geminações dos municípios, na organização de intercâmbios desportivos e culturais entre crianças, jovens e adultos do país e da diáspora, no apoio ao turismo e no investimento internacional. A reintegração do emigrante no seu solo prepara-se principalmente ao nível das crianças e jovens através de viagens de estudo e participação em encontros culturais e desportivos da juventude. O papel dos municípios ou da região será fundamental nesta tarefa de reintegração da juventude emigrante.

 

A terceira idade pode também constituir uma riqueza, na medida em que os emigrantes reformados, regressando ao país, podem dar o seu contributo, para além do económico, nas áreas do ensino, formação profissional, entre outras. Cabo Verde deveria negociar com os países de emigração uma política de retorno dos reformados que lhes garanta uma cobertura médica que lhes permita regressar definitivamente ou ter estadas mais prolongadas no país. Actualmente, os reformados da Itália esperam que os dois governos assinem um acordo nesse sentido.

 

Deve-se transferir certas responsabilidades económicas e políticas para a Região, inclusive a da emigração com direitos e deveres. O centralismo económico à volta de Cabo Verde Investimento e da Bolsa de Valores, concentrados numa única ilha para onde se devem deslocar todos os que desejam investir em Cabo Verde, prejudica o desenvolvimento das outras ilhas. Em cada ilha ou grupo de ilhas, conforme o modelo a adoptar, a Região deve assumir a responsabilidade da sua economia, com autonomia, pondo termo ao centralismo do Estado. Num país de grande desemprego, a Bolsa de Valores somente serve para o incrementar, pois aqueles que desejam investir nas empresas para darem trabalho são atraídos pelos lucros imediatos da Bolsa. E o resultado está à vista: apenas contribuiu para engordar uma classe social com salários elevados. Num outro país a oposição teria analizado esta questão e denunciado os responsáveis. Mas o pior são as exigências dos bancos e outros organismos em relação aos emigrantes, que muitas vezes os humilham, interrogando-os de uma maneira policial sobre a origem dos meios económicos, conquistados com suor e sangue na emigração, o que não acontece com os investidores estrangeiros, mais precisamente espanhóis, italianos e irlandeses.

 

O governo, através do Ministério da Cultura, deve criar um projecto cultural para a emigração, favorecendo o intercambio entre a diáspora e a Terra Mãe, dando uma nova dinâmica cultural aos consulados e embaixadas. Os congressos do movimento associativo, incluindo o Congresso dos Quadros, devem ser encontros de diálogos entre a diáspora e o país real e não exclusivos aos emigrantes e as respectivas conclusões devem ser aplicadas pelo governo.

 

Os emigrantes esperam fazer parte do debate sobre a Regionalização, seja através dos seus quadros ou através das suas associações. Quanto aos custos que a Regionalização poderia trazer ao erário público, sugerimos o seguinte: a diminuição do número de deputados e a redução de municípios, que os partidos inventam nos períodos eleitorais. Além disso em vez de várias eleições poder-se-ia, como no Brasil ou Estados Unidos, fazer uma única eleição para a Presidência da República, a Assembleia Nacional, os Municípios e Regiões.

 

Caboverdianamente,  

Luiz Silva

 
Paris, 25/2/2013

CABO VERDE: REGIONALIZAÇÃO E EMIGRAÇÃO