A EMIGRAÇÃO É TAMBÉM
UMA REGIÃO DE CABO VERDE
Desde quando são crimes
a dedicação e o regionalismo, bases do patriotismo?
Eugénio Tavares
Luiz Andrade Silva
No processo da Regionalização não se
pode ignorar a Emigração, que tem sido um agente
de transformação da vida social, económica, cultural e política de Cabo Verde.
Para o enquadramento dos emigrantes nesse processo, em primeiro lugar, deve-se
começar por explicar que a nossa emigração antes de ser uma questão nacional é
do foro regional. Em segundo lugar, que a nossa emigração, a começar pela dos
Estados Unidos e, nos últimos anos, pela da Europa, vivendo em países
democráticos e regionalizados, quer ter voz e palavra no seu país de origem,
tendo por isso aderido desde o princípio ao Grupo de Regionalização sediado em
Mindelo. E, devido ao facto de sermos ilhas regionalizadas pela natureza,
sempre se defendeu, durante o período colonial, a autonomia e, mais tarde, a
Independência. E é normal que hoje, no Cabo Verde independente, se faça um novo
combate contra o modelo centralista do Estado em Santiago, imposto a partir da
Independência, que reduziu as liberdades fundamentais, marginalizou as outras
ilhas e excluiu os emigrantes da gestão do seu Arquipélago. Tamanha ingratidão,
pois como dizia Baltasar Lopes “se o Capristano de Abreu conhecesse o
cabo-verdiano, nunca diria que o brasileiro é o povo mais ingrato do Mundo “.
Ninguém obriga ninguém a emigrar. Mas
a dignidade e o amor a Cabo Verde exigem essa aventura, seja clandestinamente
seja legalmente, atravessando calmarias intermináveis, ou galgando montanhas,
onde a fome e frio perseguem, em cada curva, os que se lançam na ousada
determinação de lutar por uma vida mais digna. Na aventura da pesca da baleia,
deixámos o nosso nome inscrito no panteão das histórias trágico-marítimas como
grandes arpoeiros, como relata Hermann Menville no seu romance Moby Dick. No
litoral Africano, construímos pontes e palácios onde a mão-de-obra
cabo-verdiana era prestigiada. Em Dakar, saindo clandestinamente em pequenos
palhabotes e faluchos, criámos uma comunidade com uma cultura própria e que deu
um grande impulso à luta pela independência cultural e política de Cabo Verde.
A ajuda dos cabo-verdianos do Senegal às famílias em Cabo Verde, nos anos
cinquenta, merece ser assinalada. Três figuras dessas viagens clandestinas para
o Senegal ainda vivem em Mindelo: os irmãos Alberto e Crisanto Lopes, que
capitanearam o navio Novas de Alegria, ou o capitão Armando do navio Maria
Sony. Estes homens salvaram Cabo Verde de uma outra fome nos anos cinquenta e
sessenta. O capitão-de-fragata Cristiano José de Sena Barcellos, que foi
Presidente da Câmara de São Vicente de 1896 a 1899, nos seus “Subsídios para a
História de Cabo Verde e Guiné” escreve: “Nas fomes de 1902, o Governador de
Cabo Verde Paula Cid instituiu a concessão de passaportes a um preço elevado e
a carta de chamada para Dacar para impedir a emigração livre para o Senegal,
para assim poder recrutar candidatos forçados para as plantações de São Tomé
onde possuía interesses”. A partir dos anos sessenta e com a abertura do
caminho marítimo para a Holanda, muitos emigrantes foram a São Tomé e Príncipe
resgatar os seus irmãos do cativeiro de São Tomé. Mas sem dúvida que foi a
emigração para a Holanda como marítimos, organizada por um punhado de mindelenses
e que depois se estendeu para os outros países da Europa, que libertou São
Vicente e as outras ilhas do marasmo económico e social imposto pelo regime
colonial e que relançou a luta pela afirmação da identidade cabo-verdiana que
nos conduziu à Independência. Os cabo-verdianos da Holanda criaram uma
comunidade muito sólida e respeitada. Em contacto com o povo holandês, culto e
artístico, investiram também na cultura e marcaram a história de Cabo Verde ao
nível da música, da política e do jornalismo, entre outras manifestações.
A modernidade em Cabo Verde chega
pelo Porto Grande e sua cidade de Mindelo, elevada à categoria de cidade em
1879, quando contava somente 3.300 habitantes. Um ano antes, a escravatura
teria sido abolida no espaço português e os novos homens livres procuraram a
Ilha de São Vicente, onde podiam viver libertos das sequelas da escravatura.
Graças ao estabelecimento das companhias inglesas, São Vicente podia acolher
pessoas de todas as ilhas. É justo dizer que São Vicente é a ilha das ilhas.
Encontramos sãonicolenses na zona norte, santantonenses no sul da ilha,
santiaguenses da Ribeira da Barca à volta da Praça Estrela, e também europeus
(italianos, ingleses) que dão um colorido especial à ilha. Com as companhias
inglesas nasceu um pequeno proletariado consciente da sua importância na
sociedade, em que a cultura e o desporto como o golfe, o ténis, o cricket e o
futebol, são praticados, assim como a literatura, e mesmo uma filosofia social,
o Racionalismo Cristão, que é praticado pela maioria da população. Dos Estados
Unidos não vieram somente dólares, mas também o protestantismo e uma
consciência social importante para as lutas cívicas em Mindelo. O Liceu é
frequentado por essa classe operária e filhos de emigrantes que, mais tarde,
terão um papel importante na vida política e cultural do país. Assim, forjou-se
uma sociedade mestiça apostada na cultura e no saber. É o próprio Amílcar
Cabral, herói da Independência de Cabo Verde e também aluno do Liceu Gil Eanes,
que aos 24 anos escreveu à sua namorada Helena: Há tantos miúdos pretos,
mulatos, morenos, brancos (de todas as cores). É uma imagem fiel do que é Cabo
Verde. Lá não se sabe o que é ser desta ou daquela cor. Lá o que interessa é o
homem em si. Na fila dos professores verás outra afirmação desta verdade (Carta
de Amílcar Cabral a Maria Helena). Referindo-se aos professores, na maioria
filhos de emigrantes que tinham passado pelo Seminário Liceu de São Nicolau,
Amílcar Cabral faz referência a essa elite intelectual da cidade do Mindelo,
oriunda de várias ilhas e que teve um papel importante no ensino, na economia e
na defesa dos interesses da população. É bom citar o caso dos primeiros
presidentes do Município de São Vicente, os bravenses Augusto Ferro e Sena
Barcellos, bem como dos intelectuais Luiz Loff Vasconcelos e Eugénio Tavares,
que introduziram o gosto e a cultura da morna. O escritor inglês Archibald
Lyall, que apelidou o povo Mindelense de “povo político” pela sua adesão à luta
por causas nobres, escreveu: “Em São Vicente a curiosidade intelectual é
particularmente intensa; os livros são lidos com avidez e passados de mão em
mão entre os que não podem dar-se ao luxo de os comprar. Sem dúvida, a
existência do liceu não seria estranha a esse culto que a juventude presta à
inteligência e à cultura, mas velhos e novos em quaisquer das outras ilhas se
associam a essa homenagem ao saber”.
Os emigrantes apostaram na
Independência de Cabo Verde. Ao contrário do que se esperava, mais
desenvolvimento económico, mais liberdade, mais cultura, fomos surpreendidos
por um regime centralizador que destruiu a classe comercial e obrigou muitos
quadros a expatriarem-se para a capital ou para o estrangeiro. Os emigrantes,
desencorajados, também deixaram de investir, preferindo guardar as suas
economias nos países de emigração. A ilha, que nos anos cinquenta acolhia
gentes de todas as outras ilhas, tem hoje uma população de oitenta mil
habitantes e possui o maior índice de desemprego. O movimento associativo
morreu. O partido único somente favoreceu o nepotismo, o medo do medo, o
individualismo e o desinteresse pela vida política. A “ilha política”, como
disse o escritor Archibalt Lewis, foi excluída da cena política nacional.
Há necessidade de repensar Cabo
Verde, quarenta e dois anos após a Independência e, desta vez, a emigração
espera ter voz e palavra no Município, na Região, no Senado e no Parlamento, na
sua justa dimensão. Temos de lutar contra as assimetrias entre as ilhas, entre
as ilhas e as diásporas, restituir o orgulho de ser cabo-verdiano a todos, sem
distinção de credos ou religiões. Temos uma rica cultura mestiça, admirada em
todo o mundo onde vivem cabo-verdianos, verdadeiros embaixadores da Nação, que
precisam de ser melhor aproveitados. O combate dos cabo-verdianos por Cabo
Verde não se limitou à luta nas matas da Guiné Bissau. Os seus protagonistas
não serão também os únicos heróis da Pátria. O combate teve lugar em todas as
latitudes oceânicas, lutando contra tempestades e ciclones no mar alto e nas
fábricas de todo o Mundo.
A
questão da emigração não é tão simples. Ainda há quem pense que é só vir buscar
dinheiro e nada mais. Houve até quem falasse de emigrantes económicos como se a
questão se limitasse a ganhar uma lotaria. Eugénio Tavares (1868-1930), que por
duas vezes esteve a trabalhar nos Estados Unidos, onde teve uma grande
actividade jornalística e cultural, em contacto com o mundo das fábricas onde
experimentou as greves, escrevia em 1918, no jornal A Voz de Cabo Verde: “Esta
questão, meu caro amigo, não é apenas alimentar e indumentária, senão que
fundamentalmente moral e social. Cabo Verde é um povo. E os povos têm
aspirações que não se limitam à panela. Principalmente os povos que aprenderam
a viver com mestres que dão lições ao mundo; que se habituaram aos cómodos da
civilização; criaram necessidades; e que já respiraram a atmosfera do trabalhador
livre e compensador” (Eugénio Tavares – Voz de Cabo Verde,1918).
Temos uma grande literatura de
escritores ligados à emigração ou de emigrantes sobre a emigração. O mais célebre
é o romance iniciático Chiquinho de Baltasar Lopes (1907-1989), cujo pai
ter-se-ia deslocado duas vezes à América. Baltasar Lopes viveu a sua infância como
escriba das famílias de emigrantes em São Nicolau. Conhecia os problemas socias
e económicos, os nomes das ruas, os projectos económicos, sem falar da saudade
da terra que era constante. Um dos heróis do romance de Baltasar Lopes é o José
de Lima, que imigra com um projecto de trabalhar de dia e estudar de noite, com
o objectivo de regressar e transformar as relações sociais e económicas da sua
ilha. Um outro romancista, filho do capitão Sousa, que aliás viveu a sua
infância na América, é Henrique Teixeira de Sousa que no seu primeiro romance
Ilhéu de Contenda demonstra o papel dos emigrantes na luta contra o sistema
social na ilha do Fogo, através de investimento na economia e na cultura. No seu
último romance Oh Mar das Túrbidas Vagas (2005), ele põe o dedo nos sucessos e
também nos insucessos de muitos emigrantes que terão que regressar para morrer
na Terra-Mãe. E tantos quadros de valor que Cabo Verde vai perdendo por falta
de uma política de integração dos seus filhos. Mesmo aqueles que regressam por
iniciativa própria, como foi o caso do médico, cientista e poeta João Manuel
Varela, que acabou por morrer no anonimato em Mindelo, sua terra natal, onde
nem o seu nome foi dado a uma praça ou a uma rua.
Com o advento da democracia em 1991 e
com a criação dos Municípios, nasceu a esperança de um diálogo profícuo entre
os emigrantes e a região de origem. Onésimo Silveira enquanto presidente da
Câmara Municipal de Mindelo criou um posto de vereador da emigração que foi
ocupado por Manuel da Luz Gomes, funcionário da ENAPOR e conhecedor dos
problemas da nossa emigração, que por duas vezes se deslocou à Diáspora para
contactos e debates de ideias. Sei que produziu dois relatórios que podiam ser
publicados mas que não tiveram seguimento. Com a demissão de Onésimo Silveira
da Câmara Municipal, não houve mais encontros e debates com os emigrantes e nem
torneios desportivos que podiam fazer regressar anualmente muitos jovens. No
período de férias dos emigrantes (Julho e Agosto), O Município de São Vicente está
mais preocupado com o Festival da Baía do que servir a causa da emigração.
Acontece ainda que num país de emigrantes e turistas, o Governo autoriza o
horário de Verão quando se devia fazer o contrário, ou seja prolongar o horário
de trabalho no Verão, com a devida compensação num outro período. A
Regionalização tem de vir mudar esta situação, pois é no período de Verão que
os emigrantes e os turistas podem fazer investimentos no país.
Com a abertura politica em 1991,
foram realizados vários Congressos de Quadros mas as recomendações têm surtido
pouco efeito. Os emigrantes passaram a ter seis deputados para a emigração. Mas
continuam excluídos das eleições municipais onde se encontram os seus
interesses mais importantes. Ora, para muitos emigrantes, o direito de voto nas
eleições municipais é mais importante do que o direito de eleger os seis
deputados na Assembleia, que nunca têm a palavra, a não ser com a autorização
dos partidos políticos. O direito de voto nas eleições municipais poderia mesmo
ser aplicado simplesmente aos emigrantes que pagam os seus impostos ao
Município. Seria um estímulo ao investimento na Terra-Mãe. Impedir os
emigrantes de votarem nas eleições municipais fez reduzir os seus
investimentos, pois quem investe quer ter voz e palavra para defender os seus
interesses.
Mas votar nas eleições municipais e
regionais seria uma oportunidade para se criarem novas relações sociais e
culturais com as regiões de origem. No plano financeiro seria uma forma de
levar as suas economias às regiões e no plano sociocultural levaria a sua
experiência e o seu saber acumulado, participando em geminações, no intercâmbio
cultural e na formação profissional.
Um livro da autoria de Benvindo M.
Oliveira Leitão, recentemente editado nos Estados Unidos, faz um inventário das
personalidades bravenses, dispersas pelo Mundo e também em Cabo Verde. A Brava
é uma ilha-região com uma população três vezes maior na diáspora e que mantém
laços de solidariedade profundos com a sua ilha. Seria o exemplo de uma
ilha-região em que todos os emigrantes bravenses pudessem votar na sua gestão
sem a exclusão de ninguém. Mas seria fundamental para a reintegração no seu
solo de Casas de Emigrantes que pudessem promover informação e cultura,
desenvolver o intercâmbio cultural e atrair os investimentos emigrantes. E a
Regionalização, conferindo direitos e deveres aos emigrantes, poderia mudar
substancialmente a vida das pessoas naquela ilha. O livro cita grandes figuras
da história de Cabo Verde vivendo em Cabo Verde e na diáspora que se
distinguiram na política, na cultura, nas lutas contra as tempestades, etc.
Sabe-se assim que Almirante Reis, bravense, foi o autor do golpe de Estado
republicano em Portugal e cujo nome se deu à Praça Estrela em Mindelo. Mas sem
dúvida o maior herói bravense foi Eugénio Tavares, que já no ano de 1900, em
Providence, nos Estados Unidos, escrevia no seu jornal Alvorada o seguinte: “África
aos Africanos. A África terá o seu Monroe”. Eugénio é o maior criador da morna,
o grande defensor do crioulo, o grande combatente contra o estatuto do
indigenato e defensor da emigração livre para os Estados Unidos, enquanto que
ao mesmo tempo condenava a emigração para São Tomé e Príncipe “que era um
insulto à dignidade humana e o regresso à escravatura deguizada
sob o pano da liberdade” (carta a Daniel Alexandre Almeida, in Voz de Cabo
Verde, 1918). Um livro de carácter regional que somente visa a história da
Brava e dos bravenses dispersos pelo Mundo, mas que pode servir a cada ilha ou região
para fazer um inventário da sua história e fazer novas propostas no sentido de
associar todos os cabo-verdianos ao desenvolvimento da sua ilha ou região.
Organizar a emigração por regiões e
com representatividade própria corresponde às exigências dos movimentos
associativos. Temos associações de Foguenses, de Bravenses, de Sãonicolenses,
de Santantonenses, de Maienses, que poderiam ser chamados a participar no
desenvolvimento da sua região. E isso não impediria que no plano nacional os
emigrantes continuassem a ter os seus deputados na Assembleia e no Senado (se
houver).
O silêncio imposto pelo regime
colonial com a subida de Salazar ao poder após o golpe militar de 1926, impondo
uma ditadura (1926), pôs termo às veleidades de autonomia do período monárquico
e republicano. Em vez de investimentos na modernização do Porto Grande, a
solução encontrada pelo regime colonial foi de novo a emigração forçada para as
plantações de São Tomé e Príncipe. Em 1934, houve um levantamento da população
de São Vicente chefiada pelo carpinteiro Ambrósio, poetizado como Capitão Ambrósio
pelo poeta e ensaísta Gabriel Mariano. Em 1936, surge timidamente a revista
Claridade que trouxe um pouco de oxigénio à vida cultural do Mindelo. Mas a
emigração não pode somente ser vista no aspecto económico. É certo que o
primeiro romance cabo-verdiano Chiquinho, de Baltasar Lopes, levanta o problema
desta emigração provocada pela às secas e a miséria, mas o vocabulário continua
hesitante perante a densidade dos problemas. É preciso esperar pelos anos
cinquenta para que a consciência cabo-verdiana se levante, em todas as
latitudes, perante o drama imposto aos homens e mulheres nas plantações de São
Tomé e Príncipe, que temiam mesmo o regresso para não virem a morrer de fome na
sua terra. Mas será de novo Osvaldo Alcântara, heterónimo de Baltasar Lopes, o
primeiro a abordar o problema com uma dimensão política. No Romanceiro de São
Tomé, o poeta, romancista, folclorista, afirma a sua cabo-verdianidade e toma
posição contra o drama imposto a milhares de cabo-verdianos, duplamente vítimas
do colonialismo português, perante o dilema de, como famintos, serem condenados
a trabalhar nas plantações de São Tomé e temerem abandoná-las para não morrerem
de fome. Os nossos músicos e compositores participaram também nesta denúncia do
caminho de São Tomé, com lindas mornas e das quais se destacam as mornas de
Abílio Duarte Camim de São Tomé e Céu de São Tomé na voz do Nhô Balta e ainda a
balada Sodade de José Zeferino Soares, interpretada por Bonga e mais tarde por
Cesária Évora e outros cantores cabo-verdianos e estrangeiros. Com a
Independência, esperava-se a libertação e o regresso prometido a Cabo Verde dos
trabalhadores contratados nas roças de São Tomé. Nada disso aconteceu: foram
abandonados pelos portugueses perante a passividade do Governo de Cabo Verde e
do PAIGC e por lá morreram deixando filhos e netos. Dizia o poeta Ovídio
Martins que Cabo Verde nunca seria livre enquanto houvesse um cabo-verdiano nas
roças de São Tomé. Morreu magoado e frustrado por não ver o seu sonho
realizado.
No quadro da Regionalização, as
relações entre a aldeia, a cidade, a ilha e a emigração devem conhecer um outro
desenvolvimento económico e cultural. Cada ilha tem a sua tradição: umas gostam
do seu batuque, outras da morna, outras da mazurca, outras do Colá Sam Jom,
etc. E neste mundo da Internet e do video os emigrantes estariam ligados à vida
social e cultural do seu bairro de nascimento sem terem necessidade de
regressar à sua ilha ou região. Um bravense sem a sua morna está amputado da
sua identidade. Diz o bravense Benvindo Leitão: “a morna não é apenas o grito
de um povo maltratado, como muitos possam pensar; ela é a expressão de
sentimentos nobres e profundos de um povo que, consciente das realidades da
vida nas ilhas, não desanima mas, confiante no futuro, luta para que este seja
uma realidade promissora…” Concluindo, a morna, produto do povo cabo-verdiano
nas diversas circunstâncias da vida, é uma necessidade, especialmente para o bravense.
É como um estimulante que se toma para continuar a viver com entusiasmo. E seja
para onde for que um bravense se desloque, a morna há-de acompanhá-lo. Ajuda-o
a superar os muitos obstáculos da vida, a matar as saudades e a adquirir vigor
e confiança na vida. O bravense sem a morna é como um navio sem velas no alto
mar, num dia de calmaria. E foram pessoas como Augusto Ferro, Luiz Loff
Vasconcelos e o próprio Eugénio Tavares, amigos e defensores da cidade do
Mindelo, que ali foram entregar nas mãos de B. Leza o destino da morna de Cabo
Verde, que hoje nas vozes de Bana, Cesária, da Voz de Cabo Verde, representa o
país em todo o Mundo.
As gravações de discos começaram nos
fins dos anos cinquenta e tiveram um grande impacto na emigração. É bom aqui
realçar o papel de Fernando Quejas, Amândio Cabral, Titina e Mário Melo na
promoção e divulgação da música de Cabo Verde em Portugal, mas foi na Holanda
em 1966, com o primeiro disco de Bana e a Voz de Cabo Verde, que os
cabo-verdianos entraram numa maior dinâmica cultural, divulgando e promovendo a
música nacional no Mundo.
Foi a cultura que nos deu a força
para afirmar a nossa identidade e exigir a Independência para Cabo Verde.
Mostrámos a diferença, ser um outro povo com um percurso de combates culturais
e políticos. As armas da cultura venceram as armas de guerra que trazia o
regime de Salazar. E a emigração tem a honra de ter dado a sua contribuição,
nada exigindo para ela mas sim para o povo de Cabo Verde.
O movimento associativo cabo-verdiano
é uma força em todas as comunidades. Melhor aproveitado, pode desempenhar um
papel importante junto dos Municípios e do Governo. Iniciado nos princípios do
século XX nos Estados Unidos, estendeu-se a todas as comunidades cabo-verdianas
dispersas pelo mundo, comprometidas com a Luta pela Independência. Na Holanda,
graças a Constantino de Nho Matijim, tivemos hotéis e restaurantes para acolher
os novos emigrantes e dar alguma formação aos recém-chegados. Tivemos casas
editoras de discos e até de livros, um jornal, o Nôs Vida da Associação
Cabo-verdiana de Roterdão. E uma comunidade solidária sem a qual a nossa
emigração e Cabo Verde não teriam triunfado com o seu projecto de emigrar para
transformar Cabo Verde.
Com a Independência e o partido único
tudo se desmoronou. Aquele que não recebia cegamente as ordens do partido era
marginalizado e até corria o perigo de ser preso em Cabo Verde, chegando muitos
a perder os seus investimentos ou deixar de investir na sua terra, quebrando assim
o projecto original de regresso.
Nunca é demais no quadro da
Regionalização repensar sobre a importância da cultura porque ela une todos os
cabo-verdianos. O Município e a Região têm de se virar para a emigração, como
fazem todos os países de emigração no mundo. Dou o exemplo de um país
regionalizado como a Itália em que são os Municípios e as Regiões que organizam
os seus emigrantes no exterior a ponto de quase todos regressarem de férias e
com a suas famílias. Vou repetir o que escrevi num artigo publicado no
Mindelact sob o titulo Os emigrantes têm direito também ao teatro: “durante
três meses, ou seja nos meses de Julho, Agosto e Setembro, tudo é programado
para receber os emigrantes e os turistas: os bancos, as igrejas, o cinema, o
teatro, os restaurantes, as empresas de construção civil, quase tudo funciona
24/24 horas para responder às necessidades da sua economia. Em três meses
ganha-se para viver o resto do ano com toda a tranquilidade. É a própria Câmara
Municipal que organiza os voos charters para os seus emigrantes, rodeando-se
dos melhores técnicos para o efeito. Os bancos e as empresas de construção
visitam directamente os emigrantes para lhes fornecerem créditos, a taxas de
juro baixíssimos, para a edificação das suas casas ou criação de empresas. A
Câmara e as associações locais organizam festivais semanais de cinema, de
teatro e de música clássica e tradicional, fazendo convergir para essas cidades
milhares e milhares de turistas de outras localidades”.
Precisamos de um banco para apoiar os
emigrantes, de embaixadas que sejam uma vitrina cultural e social de Cabo Verde
e que assumam um papel social e cultural na emigração e não simplesmente de uma
fonte para recuperar as economias dos emigrantes.
Precisamos de organizar um
intercâmbio escolar para as crianças e encontros desportivos entre as equipas
da diáspora, conferências anuais e debates dentro e fora de Cabo Verde, de uma
participação maior dos nossos artistas em festivais e concertos sem amiguismos,
simplesmente apostados em servir Cabo Verde.
Necessitamos de serviços sociais e
culturais nas embaixadas, que apoiem as nossas associações e os emigrantes com
dificuldades económicas e sociais; de Casas de Cidadãos em todas as
comunidades, para apoio na obtenção de documentos.
A crise económica continua a bater às portas
da Europa. Temos uma experiência ocorrida em 1974 em que muitos cabo-verdianos
das colónias portuguesas regressaram de mãos vazias a Cabo Verde. Um caso
idêntico já tinha acontecido em 1822 com a Independência do Brasil, em que
milhares de portugueses perseguidos tiveram que regressar de mãos vazias a
Portugal.
Cabo Verde deve, pois, ter uma
política de emigração para proteger os seus filhos em qualquer circunstância.
Porque não criar seguros para emigrantes e que depois de X anos de cotizações
poderiam beneficiar de uma pensão de reforma em Cabo Verde?
Não vale a pena remoer o passado. Mas
deve-se aprender com ele. Ainda temos conterrâneos nas roças de São Tomé e
agradeço a recente intervenção do Presidente da República, Doutor José Carlos
Almeida Fonseca junto do Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da
República Portuguesa, no sentido de se resolver a situação dos cabo-verdianos
que foram forçados a partir para escaparem da fome e aceitar as condições de um
contrato humilhante nas roças de S. Tomé, para onde emigraram como portugueses,
com direito ao regresso e a uma indemnização, fruto dos descontos mensais que
faziam no quadro do contrato.
Os emigrantes esperam pela materialização
do Conselho das Comunidades previsto na Constituição; por uma Federação Mundial
das Associações; por uma representação no Conselho Económico e Social e, ainda,
pelo direito de voto nas eleições municipais e regionais, bem com por uma
representação no Senado (se houver).
Cabo Verde é um país novo com
sucessos e insucessos e que precisa da contribuição de todos os seus filhos. E
para isso é necessário ser repensado por todos os cabo-verdianos, acima dos
interesses partidários e unidos por uma causa comum: Cabo Verde.
Sendo a emigração um sacrifício por
Cabo Verde, o emigrante deve merecer mais, a começar por direitos iguais aos
compatriotas que vivem nas ilhas, para melhor servir a Nação. Pois, é preciso
não esquecer que ele dispõe do monopólio da saudade, como dizia Baltasar Lopes.
Caboverdianamente,
Luiz
Andrade Silva
Paris,
15/4/2017