domingo, 25 de junho de 2017

PERSPECTIVAS DE UMA “REGIÃO NOROESTE” NO REORDENAMENTO TERRITORIAL CABO-VERDIANO (Conclusão)
de Adriano Miranda Lima

Pelas razões aduzidas na primeira parte deste artigo, entendo que será um erro inviabilizar, por bairrismo, irrealismo ou auréolas descabidas, a colectividade regional – Região Noroeste (S. Antão, S. Vicente e S. Nicolau) – que mais possibilidades de sucesso oferece no quadro do reordenamento territorial do país. Os que rejeitam encarar essa associação parecem ignorar que o espírito de união, de partilha e de solidariedade nunca foi uma palavra vã nas três ilhas, como a história o comprova à saciedade. Leia-se esta passagem do romance “Hora di Bai”, do escritor Manuel Ferreira, cujo centenário agora se comemora: “Naquele tempo a ilha de S. Vicente era o porto de salvamento. Empurrados do interior os povos vieram arrastando-se para o litoral, até junto do mar, na esperança de uma mandioquinha, na ânsia de um caldinho de peixe…”. O autor refere-se à fome que ceifou milhares de vidas em Cabo Verde no início da década de quarenta do século passado, e ao acolhimento que S. Vicente proporcionou às populações das ilhas vizinhas que a demandavam em busca de uma côdea de pão.
Se a concepção de uma identidade regional assenta em pressupostos de ordem geográfica, demográfica, social e económica, também não é menos relevante a função da cultura e da história como elementos catalisadores da proximidade afectiva e da construção de laços de solidariedade. É natural que o curso do tempo dissolva alguns registos da memória colectiva, mas é tempo de revitalizar e tonificar um sentimento unificador entre as três ilhas em causa, em ordem à construção da única colectividade regional com condições para suscitar inapelavelmente uma efectiva partilha de poder entre o centro e as parcelas mais significativas do território. Tanto mais que esta hipótese de região tem como polo mais importante a segunda ilha e a segunda cidade mais importantes do país. Isto não é de somenos e são os teóricos contemporâneos do fenómeno da regionalização que afirmam a importância fundamental de um centro urbano como núcleo estrutural e irradiador do desenvolvimento regional, graças às infra-estruturas económicas e sociais disponíveis e ao papel de uma sociedade civil capaz de conceber e operacionalizar os planos de desenvolvimento. É perante este requisito que se questiona como poderão as nossas ilhas materializar unidades regionais no seu verdadeiro significado.
Então, se é compreensível que um projecto de regionalização se reja por uma dada realidade concreta e à escala dos valores que integra, também é verdade que existe uma doutrina e um conjunto de princípios dominantes que descartam versões irrisórias de regionalização, sob pena de irrelevância e de distopia funcional. Por exemplo, pergunta-se se existe a mínima possibilidade de ilhas como Maio, Boavista e Brava, para não falar de todas, constituírem por si só unidades regionais. Mais, veja-se que o projecto de lei em ponderação concebe para a ilha de Santiago duas regiões. Compare-se agora a nossa maior ilha com as unidades regionais do “departamento ultramarino francês”, atentando nos respectivos dados sobre superfície e população:
Ilha
Superfície
Habitação
Regiões
Santiago
991 Km2
266.161
2 (em vista)
Guadalupe
1.628 km2
404.000
1
Martinica
1.100 km2
401.000
1
Guiana
83. 485 km2
250.000
1
Reunião
2.519 km2
834.000
1
Atente-se agora no polo mais extremo do contraste: ilha Brava, 67 Km2 e 6.000 habitantes. Que este exemplo caricatural nos abra os olhos para a necessidade de corrigir a perspectiva, se a ideia é construir um projecto de regionalização credível e que seja via para o relançamento económico e social das ilhas e do país.
O que está em causa é a descentralização do poder e a desconcentração do aparelho do estado em função de unidades regionais que o sejam de facto e não entidades minimalistas e, por isso mesmo, exíguas nas suas capacidades endógenas e nas suas possibilidades de sucesso. Mas o que o projecto de lei em estudo preconiza e a sociedade civil parece aceitar como possível, porventura quedando-se na epiderme do problema, não terá grandes possibilidades de sucesso em Cabo Verde. Porque não é crível que Ilhas de escasso território, reduzida população, magros recursos e poucas potencialidades económicas, reúnam condições para o assentamento de alicerces minimamente confiáveis para a construção de um projecto regional. Não é por acaso que Jean Labasse e outros geógrafos conceituados afirmam que a regionalização só atingirá os objectivos por que aspiram as populações se se conjugarem duas condições basilares: adequada descentralização político-administrativa; disponibilidade de recursos financeiros necessários. Mesmo tendo capacidade de decisão e uma estrutura eficaz, a região pouco ou nada realizará se não tiver os instrumentos financeiros necessários.
Mas não se pense que é tarefa fácil reverter o sistema concentracionário e centralizador vigente no país, daí admitir-se que ele usará toda a sorte de artifícios e estratagemas políticos para se manter intocável no essencial das suas prerrogativas, sendo uma regionalização perfeitamente inócua o primeiro garante formal da sua longevidade. O centro político, densamente concentrado, instalou-se ao longo de décadas e solidificou-se de tal modo que é contra-natura esperar que seja ele próprio a reverter o que se consumou em função de: população inflacionada à custa das ilhas da periferia, clientelas políticas e de negócios instaladas, empresas e infra-estruturas criadas numa lógica de centralidade, em suma, uma realidade hiperbólica construída por via política e que hoje é o verdadeiro corpo e organismo de Cabo Verde. Nada disso vai mudar por decisão voluntária dos usufrutuários do centro, a quem pouco importa que a situação contraria flagrantemente a geografia de um país arquipelágico. Nada mudando de verdade, a grande fatia do Orçamento do Estado vai continuar a privilegiar a cidade da Praia e a ilha de Santiago, cuja segunda urbe até já almeja ser a
segunda do país. Ora, mantendo-se os alicerces e as estruturas do centro, com previsão até do seu revigoramento (estatuto especial para a Praia, integração de duas regiões e manutenção de nove municípios), pergunta-se de onde virá o acréscimo de recursos para alocar às regiões e de harmonia com o seu estatuto. Maior pertinência ganha esta interrogação se o dispositivo territorial se fragmentar em ilhas-regiões.
É sob esta óptica que se tem de olhar para o projecto de lei em “socialização”, esperando-se que ele não seja a última palavra na matéria. Que haja uma discussão séria e alargada a todos os fóruns da cidadania. Que se perceba que uma regionalização bem concebida tem de ser precedida de uma reforma profunda em toda a dimensão estrutural do Estado, racionalizando-o e desconcentrando-o, para que as unidades regionais sejam consequência natural de uma mudança bem gizada e não uma excrescência no organismo estatal.
Tomar, Junho de 2017
Adriano Miranda Lima
PERSPECTIVAS DE UMA “REGIÃO NOROESTE” NO REORDENAMENTO TERRITORIAL CABO-VERDIANO 
de Adriano Miranda Lima

Tendo em vista a reorganização administrativa do território, está em ponderação um projecto de lei sobre regionalização que, tudo o indica, elege o modelo região-ilha como a única solução aceitável ou credora de consenso nacional. Fala-se em “socialização do projecto de regionalização”, mas ignora-se em que medida foi aquele modelo objecto de suficiente estudo científico, debate e escrutínio público, de modo a poder-se concluir, com razoável fundamento, que é o mais adequado à nossa realidade.
No meu artigo intitulado “PONDERAÇÕES SOBRE O MODELO DE REGIÃO ADMINISTRATVA MAIS INDICADO PARA CABO VERDE” (1), procurei anotar as diferenças mais salientes entre os dois modelos possíveis − região-ilha e região-ilhas − demonstrando que o primeiro é reflexo do determinismo geográfico da escola germânica, traduzindo uma visão estática e condicionada pelo meio físico. De forma simplificada e minimalista, porventura inadvertida, esse modelo concebe que cada ilha, de per si, pode constituir-se em unidade regional, independentemente de possuir ou não condições objectivas e funcionais para realizar o processo de desenvolvimento que é o escopo da regionalização.
Quem alinha com essa opção não parece relevar que o determinismo geográfico na organização do espaço foi posto em causa pelo “possibilismo”, de autoria francesa, cujo percursor foi Vidal de la Blache. E desvaloriza também que uma concepção ainda mais inovadora, defendida por Paul Claval, André Cholley e Jacques May, viria a conferir maior amplitude e flexibilidade ao plano conceptual, destacando o papel do homem como agente modelador da paisagem, atento aos desafios crescentes da modernidade, com o desenvolvimento impulsionado pela dinâmica do processo de industrialização, pela acção directriz dos centros urbanos e pelo incremento dos transportes e comunicações. Os espaços passaram a interligar-se mais intimamente e a reduzir distâncias, diluindo-se as fronteiras físicas, mas sobretudo as psicológicas, num processo de aglutinação, como nunca antes o fora.
Por isso é que o modelo região-ilhas representa, em minha opinião, uma visão mais alargada e expansiva, explorando todas as variáveis que exponenciem a dimensão da unidade regional. Trata-se de um pensamento mais evoluído e respaldado numa maior interacção dos factores geográficos, demográficos, sociais, económicos e culturais. Na verdade, o desenvolvimento hodierno assenta na mobilização e coordenação das potencialidades locais, dos recursos endógenos e dos equipamentos e infra-estruturas, fomentando a solidariedade e sinergia entre os espaços contíguos, em ordem a uma maior potenciação dos factores de um desenvolvimento integrado.
Antes de mais, importa frisar que a necessidade desta reforma resultou do confronto com duas realidades conjugadas, faces da mesma moeda falsificada: a concentração de toda a estrutura do Estado na ilha de Santiago; o centralismo político. Ambos são consequência de uma mesma estratégia política que, no plano interno, se coseu cautelosamente com as linhas da ortodoxia marxista-leninista. Não fora isso, o mais certo seria não estarmos hoje pendentes de uma reforma que elimine os malefícios do centralismo e reponha o equilíbrio territorial, mercê do reforço da democracia participativa, da descentralização do poder, da redução da burocracia e da distribuição mais equilibrada e mais harmoniosa dos recursos. De pouco ou nada valerá a regionalização se não atingir esse desiderato.
Ora, o modelo região-ilha, a ser implementado, pode vir a revelar-se uma espécie de presente envenenado, caso os cabo-verdianos das ilhas da periferia não acordem a tempo de reconhecer a impossibilidade de ilhas despojadas de massa crítica, como é o caso da maioria, constituírem colectividades regionais credíveis e capazes de operar o desenvolvimento que almejam. Se não quebrarem as grades do seu isolacionismo, se não valorizarem as vantagens de uma criteriosa agregação de forças endógenas vizinhas para a constituição de um modelo regional mais abrangente, as ilhas da periferia irão, inconscientemente, passar um atestado de longevidade ao centralismo político. Reivindicações descabidas, como essa da construção de um aeroporto internacional no Porto Novo/S. Antão, praticamente colado ao de S. Vicente, mostram, entre outras exteriorizações subliminares, que o modelo região-ilha irá sucumbir por autofagia, mesmo que à partida lhe assegurem umas muletas para dar os primeiros passos.
Mais do que formatar unidades regionais e conferir-lhes um estatuto jurídico, a regionalização é sobretudo uma via para promover transformações que valorizem o território e alavanquem o progresso. Temos de inventariar soluções justas para corrigir desequilíbrios regionais com causas estruturais remotas e que não se resolveram com as políticas centralistas e concentracionárias. A metodologia do planeamento tem de olhar para a realidade concreta de cada ilha, antes de conceber a delimitação articulada do território. Independentemente da extensão de cada parcela insular, importa quantificar valores estatísticos como a população, o PIB, a infra-estruturação económica, os índices de escolaridade, de formação profissional, de inovação e criatividade local, as potencialidades nos diversos sectores da economia, os transportes e as comunicações, etc. A análise e o estudo terão de privilegiar um olhar objectivo sobre as escalas comparativas dos diversos dados em presença, em ordem a um olhar prospectivo sobre a relação entre as unidades regionais arquitectadas e a sua real capacidade para lograr os objectivos de desenvolvimento.
Por não acreditar nas virtudes do modelo região-ilha é que defendo, como sempre o fiz, que a solução mais aconselhável, por mais consistente e até mais económica, é o agrupamento de ilhas afins. Várias hipóteses de associação são possíveis, mas há uma que desde logo parece óbvia e natural. É uma Região Noroeste, integrando Santo
Antão, São Vicente, Santa Luzia e São Nicolau. Com o mesmo critério se conceberá uma Região Leste (Sal, Boavista e Maio), uma Região de Santiago e uma Região Sudoeste (Fogo e Brava).
A Região Noroeste tem condições singulares para se afirmar no contexto nacional, por dotada de potencialidades naturais e ter o seu polo mais forte na segunda ilha mais importante do país. Do ponto de vista histórico, cultural e sentimental, diria que as três ilhas são irmãs naturais. As suas populações são semelhantes na morfologia étnica, no imaginário e na idiossincrasia, e até mesmo na expressão linguística. Complementando-se, têm condições para potenciar um desenvolvimento integral e comum, reabrindo o caminho para o progresso.
Contudo, há vozes dissonantes ou simplesmente reticentes acerca desta associação, invocando o risco de São Vicente vir a ser uma réplica barlavense de uma Santiago/ Praia centralizadora e concentracionária, pela probabilidade de descurar um desenvolvimento igualitário, focalizando-se mais nos seus próprios problemas. Rejeito essa visão negativista e suspeitosa e a própria história comprova a tese contrária, se a ideia passa por admitir que o objectivo desta colectividade regional será exclusivamente a ilha de S. Vicente. Não há razão para tal receio. Poucos são os naturais de S. Vicente que não tenham uma relação parental com naturais das duas ilhas mais próximas. Na cidade do Mindelo sempre se notabilizaram ilustres intelectuais e figuras públicas que não necessitaram de nascer em S. Vicente para exercer o seu protagonismo cívico, cultural, científico ou político. Seria ocioso citar nomes. A liderança da Região Noroeste pode ser exercida por naturais de qualquer das ilhas, porque elas são a casa comum dos “noroestinos”. Existe efectivamente uma contiguidade histórica e bio-psíquica entre estas ilhas, e isso tem de funcionar como antídoto para os casos isolados de introspecção divisionista ou de nativismo ou egotismo exacerbados. São casos espúrios que não podem toldar a clarividência.
Por condicionamento de espaço, este artigo será concluído proximamente.
(1) Publicado neste jornal em Abril do corrente.
Tomar, Junho de 2017
Adriano Miranda Lima

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Regionalização: E se a Montanha Parir Um Rato!!- 2ª Parte


2ª Parte do artigo de opinião IN ‘Quo Vadis Regionalização de Cabo Verde: PAICV e MPD entendem-se sobre uma Nova Proposta consensual? (Um artigo de opinião)’


Na 1ª parte tinha questionado se a mudança de terminologia (a Regionalização passou a chamar-se SupraMuncipalismo) teria o intuito de criar confusão conceptual, ou mesmo esvaziar o conceito/conteúdo. Como se sabe o Municipalismo é um conceito bem definido, as populações associam-na à existência de câmaras municipais, de cujo funcionamento bem ou mal conhecem.
Segundo defendem os regionalistas, a instalação de uma verdadeira Regionalização corresponderia, em teoria, à uma nova fase de um processo democratização de Cabo Verde, começado em 1992. Corresponderia à instalação, pela primeira vez em 42 anos, de um verdadeiro poder local, já que o poder Municipal redundou em fiasco, devido ao centralismo e ao partidarismo actualmente reinante. Com a Regionalização, trata-se de pôr termo definitivamente ao Centralismo cultural e económico, ao mesmo tempo que se  tenta aproximar as populações, de um arquipélago caracterizado por uma grande dispersão territorial, dos centros de decisão, criando assim uma maior e melhor interacção com um poder local. As populações poderão assim, ver grande parte dos seus problemas locais ou específicos, que anteriormente eram decididos longe, na capital-Praia, serem resolvidos atempadamente e no local das suas residências. Para além disso este processo contribui para a descentralização do país, reduzindo o peso arbitrário da burocracia e do centralismo. E cereja em cima do bolo, a criação de Regiões poderia ser uma excelente ferramenta de alavancagem das economias regionais. A possibilidade de: (1) atrair capital humano e financeiro para regiões (muitas já em processo de desertificação humana ou de competências); (2) de decidir soberanamente sobre os melhores projectos locais; (3) fazer diplomacia regional e parcerias internacionais, nomeadamente com países regionalizados, tais como os da EU ou os EUA (no qual existe uma importante comunidade da ilha da Brava ou do Fogo); (4) de zelar pela preservação e defesa do  património material e imaterial local, ignorados pelo estado dito central. Esta lista não exaustiva, evidência as vantagens de uma verdadeira Regionalização de Cabo Verde.
É claro que sendo a Regionalização um conceito já por si abstracto e complexo, pelo que o uso de demasiados conceitos para a definir, a mudança frequente de linguagem ou de doutrina sobre a matéria, mesmo que seja aparente, podem contribuir para a desinformação e a desmobilização da população, quando se sabe que ela não estão suficientemente informada sobre a questão/problemática em debate, ou quando está, não tem todos elementos necessários para  avaliar o que está em jogo, mesmo que a necessidade de um novo poder local pareça hoje evidente. A Regionalização é daquelas reformas indispensáveis, mas difíceis de explicar.
Voltemos então a o que está em jogo neste artigo.
Com efeito, logo à partida, no Preâmbulo do actual Anteprojecto de Regionalização do MPD/PAICV, a Região é definida do seguinte modo: 
A região é uma autarquia local supramunicipal que tem por território uma ilha. “
O mínimo que se possa dizer é que a actual Proposta não é clara e abre várias interpretações: Municipalismo e/ou Regionalização?
Não tenhamos mais ilusões, para o PAICV e o MPD, a Região não é nada mais nada menos que uma Autarquia, certo Supramunicipal, em outras plavras as regiões são câmaras, logo a Regionalização é municipalista.
 Ora, um bom entendedor não precisa de melhor definição. Voltamos pois ao ponto inicial do impasse no diálogo, agora por provável interposição do PAICV. Recorde-se que logo que espoletou o debate da Regionalização, o PAICV, como partido, posicionou-se contra o conceito de Regionalização, tendo contraposto ou oposto o seu modelo, o SupraMunicipalismo, que segundo eles figurava na actual constituição, e era a máxima concessão que nos era permitida. Assim, vincava a sua opção por um modelo puramente administrativo, negando categoricamente qualquer veleidade política ao processos ao poderes regionais eventualmente a serem instalados. A Região é, pois, para o PAICV, um conceito demasiado revolucionário, ou mesmo subversivo para a sua ideologia centralizadora e conservadora.
 A questão que se coloca agora, num cenário de implementação deste modelo municipalista, é se os supra-municípios funcionarão como câmaras municipais, reforçadas com alguns poderes administrativos, ou se estaremos perante uma mudança substancial do panorama municipal? Como se sabe nenhuma mexida na estrutura do poder autárquico está prevista, o que por si já nos deixa perplexo!
 Ora se for a primeira opção, a do Supramunicipalismo, é minha íntima opinião, que estaremos mesmo longe da meta da Regionalização, e muitos perguntarão se terá valido a pena tanta excitação, para a ‘Montanha Parir Um Rato’. 
 No que me concerne, o conceito do SupraMunicipalismo, que combati logo à partida, não é mais do que o velho, estafado e caduco Municipalismo, agora encapotado em Regionalização, com o intuito de garantir todas as prerrogativas do poder central, esvaziando o conceito original de Regionalização. Ou seja, estaríamos perante uma operação para manter o Centralismo tal como o conhecemos, mantendo poderes locais fracos, com pouca capacidade política e executiva. Isto levaria a concluir que a Regionalização funcionou como tema de campanha e um engodo político. 

A Região tal como concebo e tal como funciona nos países regionalizados (França, Espanha, Suíça, Bélgica, Madeira, Açores, Canárias etc.), não é uma Autarquia e tão-pouco uma Supra-Autarquia. É mais do que isso, é algo abrangente, é um poder com uma natureza diferente do poder municipal/autárquico, mesmo que alguns teoricamente possam assimilar o SupraMunicipalismo à Regionalização. A região é um espaço geográfico abrangente, maior do que uma mera cidade, pode abranger, inclusivamente, várias cidades. Ela é um espaço social, cultural, histórico, económico e político. De resto, muitas regiões francesas ou alemãs têm dimensões superiores a Portugal, logo não são autarquias. É claro que uma Região em Cabo Verde poderá ter um formato SupraMunicipal, no sentido em que pode e deve abarcar sob sua tutela/superintender autarquia(s), por se tratar de um espaço reduzido e sobretudo por haver ilhas unimunicipais, tais como S. Vicente. Mas basta estender o conceito de ilha Região para um mais abrangente, podendo englobando várias ilhas, como muitos defendem, para esta analogia desaparecer. Logo a Região não é, e nunca poderá ser confundida com uma Autarquia.
 De resto, temos insistido na necessidade de uma Reforma do Municipalismo, para que a Regionalização seja bem instalada e sucedida.  É claro que a classe política não está interessada em reformas o Sistema, o que implicaria tocar no negócio do Centralismo e em mexidas na Constituição (que não sejam para salários, regalias e benesses).

 Também desapareceu na actual Proposta outro conceito não menos importante: o Governo Regional.  Era sabido que este termo também fazia mossa aos centralistas, pelo que foi substituído por um termo soft, Comissão Executiva Regional. Não me admira que os membros desta Comissão sejam chamados Comissários do povo:
Artigo 6.º
Órgãos
São órgãos próprios da região administrativa a Assembleia Regional e a Comissão Executiva Regional.
Para além disso, já se sabe que a implementação das Regiões, prometida para finais de 2016 foi adiada para 2020, ao passo, que o iníquo e oportunista Estatuto Especial para a Praia Capital de Cabo Verde, vai a todo o vapor para a aprovação urgente na Assembleia Nacional cabo-verdiana, prevendo a sua entrada em vigor já em Julho de 2017. Convenhamos que seria impossível a partir de uma simples experiência piloto de Regionalização em S. Vicente, limitada no tempo, validar um processo tão complexo e introduzir a Regionalização em 2016. 
O que mais temo, é que este processo de Regionalização, dado o pouco empenho dos poderes, possa ser empurrado com a barriga para as Calendas Gregas, ou que acabe em águas de bacalhau. De resto os sinais do novo poder não atestam nenhuma vontade de corrigir o Centralismo, ao contrário ela volta ao galope com doses superiores comparativamente ao regime anterior. O eventual fiasco da Regionalização corresponderia a uma derrota das aspirações a uma maior democracia local, do qual os principais partidos poderiam não sair incólumes.
Antes de terminar registo com curiosidade o facto que a UCID,   o 3º partido de Cabo Verde, de base regionalista e fortemente ancorado na região Norte, estar fora deste processo de reflexão.

Perante estas constatações, aumentam as dúvidas sobre a seriedade do processo de Regionalização em Cabo Verde. Sou mais um que vai engrossar a lista dos cépticos. 
 Defendo, pois, uma clarificação dos conceitos e da Proposta. É preciso definir bem o que se pretende: o aprofundamento do actual Municipalismo, ou uma ruptura para uma real Regionalização. Caso contrário estaremos mais uma vez perante uma pura operação de mistificação política. Seremos obrigados a concluir que a Regionalização foi uma operação de marketing político para captar votos.
20 de Maio de 2017
José Fortes Lopes
1ª parte- Da socializalização da Proposta de Regionalização do Governo/MPD à socialização do PAICV à Regionalização-

Introdução
Neste artigo, em duas partes, opino sobre o processo de Regionalização de Cabo Verde, de acordo com a última Proposta. Exprimo aqui uma opinião pessoal, que não vincula mais ninguém, apesar de eu pertencer ao Grupo de Reflexão para a Regionalização, mais especificamente, o Grupo de Reflexão da Diáspora.


Como é sabido está em fase de Socialização, desde Janeiro de 2017, a Proposta de Regionalização de Cabo Verde, apresentada ao país pelo governo suportado pelo MPD, e que inclui duas versões em anteprojecto. 

Acontece que neste momento está em cima da mesa uma nova Proposta de Lei de Regionalização, redigida por uma Comissão de trabalhos MPD/PAICV, no seguimento do recem-envolvimento do PAICV no processo de Regionalização, no intuito de se encontrar uma plataforma de entendimentos sobre o modelo consensual para os dois partidos. 

Tudo leva a crer que o PAICV, após intensa pressão interna oriunda de militantes progressistas residentes na Ilha de S. Vicente, tenha resolvido integrar, de bom ou mau grado, a tal Comissão. Com efeito, é na ilha S. Vicente que nasceu a ideia que haveria de espoletar as propostas de Regionalização, é nela que existe um número significativo de militantes activos à causa, e é onde está sediado o Grupo de Reflexão para a Regionalização de Cabo Verde, tornado recentemente associação de utilidade pública. 
 
Como é também sabido a Proposta formal de 2016 foi acolhida com bastante agrado por vários sectores. Na altura manifestei o meu regozijo: “O documento é mais abrangente do que esperava, é completo e com algum nível de detalhe, é um anteprojecto de lei, como o seu nome indica, que vem responder ‘à fome existente’ de um governo local para o povo das ilhas, nomeadamente a ilha de S. Vicente...” 

O conteúdo da proposta anterior satisfez-me, assim como os termos e as terminologias usadas. A regionalização foi apresentada como um conceito claro, sem ambiguidades nem ‘arrière-pensée’. Os conceitos de Região ‘tout court’ e de Governo Regional estavam bem definidos. 

Tendo analisado a actual proposta de Regionalização (de Fevereiro de 2017) do MPD/PAICV, constato um recuo do MPD pelos seguinte motivos: houve um esvaziamento das conquistas conceptuais que foram forjadas nos debates da regionalização que se iniciaram em 2010. Desapareceram da presente proposta, os conceitos Região e de Governo Regional.
 
 No texto actual refere-se agora exclusivamente e insistentemente à “Região Administrativa” e ao “Supra Municipalismo”, conceitos que são no mínimo ambíguos quando se quer definir a Regionalização, pelo menos se se tomar à letra os termos. 

Parece ter havido da parte do MPD cedência ao conservadorismo conceptual do PAICV, que defendeu desde sempre, o Supra-Municipalismo, assim como outras variantes ambíguas, tal como a Região-Plano. 

Levando avante a actual Proposta, posso concluir, que ao fim e ao cabo, a ala conservadora do PAICV (da qual excluo os regionalistas mindelenses deste partido) foi a ganhadora da campanha da Regionalização. Tal não surpreende, pois os dois partidos sempre pareceram defender o mesmo centralismo, apesar de nuances, pelo que a actual proposta bem poderia ter sido submetida pelo anterior governo do PAICV, há pelo menos 3 anos. O PAICV conseguiu impor a sua ideologia, o conceito do estado centralizado, a visão jacobina e centralista do poder, que sempre negou a regionalização verdadeira e a descentralização que Cabo Verde bem precisa, com o argumento de que o Estado de Cabo Verde é uno e indivisível. Como se os países que se regionalizaram no passado tivessem desaparecido, quando a regionalização tem sido sempre a opção para os países com características naturais e culturais regionais. De resto, o que mais surpreende é que a regionalização tem-se mostrado uma excelente ferramenta operacional de dinamização económica e cultural, assim como de coesão nacional, para esses estados! Por isso a hostilidade em relação à regionalização de uma certa elite político-intelectual, prende-se com outras razões de ordem ideológicas, entre várias.
 
A questão que se coloca com a mudança de terminologia, é se tal exercício terá um intuito: criar confusão conceptual e a divisão nas hostes regionalistas, ao mesmo tempo que extirpa qualquer veleidade política à regionalização. Pretende-se esvaziar o conceito de Regionalização, como sempre havia sido o intuito do PAICV e de uma elite que faz da persistência do centralismo um seguro de vida? 

Se a Regionalização se concretizar-se, completa-se mais um ciclo do processo democrático que começou em 1992, quando pôs-se fim ao ciclo do regime de Partido Único, não democrático. Todavia não se desmantelou o maior problema que se via Cabo Verde confrontado, o Centralismo, um sistema subrepticiamente criado pelo regime anterior, que é o responsável muitos problemas, tais como o desenvolvimento desequilibrado, assim como múltiplos problemas sociais, ambientais e económicos do Cabo Verde contemporâneo.

Mesmo que o partido eleito em 1992 tenha criado o poder local (autarquias) e tentado algum esboço de Regionalização, já nesta altura o Centralismo estava instalado de pedra e cal no centro do poder, havendo muitos interesses ponderosos instalados, tanto partidários como económicos. Uma forte corrente fundamentalista, ferrenhamente centralista tinha ocupado todas as redes e as rédeas do poder. 

Uma proposta tão ousada e generosa de Descentralização, uma bóia de salvamento de Cabo Verde afogado no mar do Centralismo, só poderia vir da Diáspora desprendida e generosa, daqueles que não estão associados a nenhum interesse ou formas de poder, e que são capazes de perder alguma simpatia de uma certa elite, em troca de uma causa digna e nobre. Foi o que aconteceu em 2010, depois de muita ponderação dos riscos pessoais que uma confrontação ideológica com um regime e um sistema todo-poderoso comportava. Mas quando algo tem que ser feito deve ser feito!! 
Continua em (2ª parte- Regionalização: E se a Montanha Parir Um Rato’)
20 de Maio de 2017

José Fortes Lopes
Quo Vadis Regionalização de Cabo Verde: PAICV e MPD entendem-se sobre uma Nova Proposta consensual? (Um artigo de opinião)

Introdução
Neste artigo, em duas partes, opino sobre o processo de Regionalização de Cabo Verde, de acordo com a última Proposta. Exprimo aqui uma opinião pessoal, que não vincula mais ninguém, apesar de eu pertencer ao Grupo de Reflexão para a Regionalização, mais especificamente, o Grupo de Reflexão da Diáspora.


É preciso lembrar que a Regionalização está inscrita na realidade cabo-verdiana. Com os descobrimentos os navegadores portugueses dividiram o arquipélago em duas regiões naturais: as ilhas de Barlavento, ou ilhas de onde sopra o vento e as ilhas de Sotavento, ou ilhas para onde o vento se dirige. Para além de mais, existem regionalismos climáticos no arquipélago de Cabo Verde: ilhas do sul com climas mais tropicais e ilhas do norte mais temperadas, assim com ilhas áridas, com paisagens desérticas. Dentro de uma mesma ilha, pode existir microclimas, áreas onde se cultivam plantas mediterrânicas tais como a vinha (logo produz-se vinho), ou com ‘florestas’ de pinheiro, invulgares para estas latitudes. Se inicialmente a colonização das ilhas deu-se pelo Sul, com as ilhas de Santiago, Fogo e Brava a serem as primeiras povoadas, já as outras ilhas do Norte, que foram povoadas mais mais tarde, tiveram uma evolução sociológica e histórica bem diferente. S. Vicente povoa-se muito recentemente e torna-se o paradigma do novo Cabo Verde, que se abria ao Mundo, graças ao Porto-Grande do Mindelo e aos serviços de apoio à frota britânica, assim como às centrais de telecomunicações intercontinentais instalados na ilha. Em meados do século XIX a ilha torna-se praticamente a nova capital cabo-verdiana que atrai populações de todas as ilhas e do mundo, e distingue-se pelo seu cosmopolitismo. A partir deste novo pólo vai nascer uma forte identidade na região norte do arquipélago, a que se associa Barlavento, uma área de grande dinamismo sociocultural, ao passo que Sotavento, com a pacata capital Praia, estagna-se até 1975, ano em que o PAIGC, novo poder em Cabo Verde, decreta o fim da antiga realidade e o início de uma nova. Traz com ele o conceito centralista de estado-nação de tipo continental, que se opõe à natureza diversa, arquipelágica regional ou regionalizada. Cria-se o novo paradigma de Cabo Verde no qual proíbe-se qualquer alusão ao regionalismo. Os termos geográficos Barlavento e Sotavento são tabus e mesmo banidos dos mapas oficiais. O debate abafado sobre o regionalismo, só reaparece com a democracia e o fim do Regime de Partido Único em 1992. Todavia na altura não havia uma ideia nem um conceito preciso daquilo que podia ser a regionalização. De resto ainda hoje, mesmo nos círculos sociopolíticos os mais eruditos, é confundida com municipalismo. Há mesmo quem nalguns sectores liberais do MPD defenda, erradamente, que o problema da regionalização só surge por razões do mau modelo de desenvolvimento, e que a aplicação em Cabo Verde de uma receita liberal ou neoliberal, acabando de vez com a dependência do Estado, mataria a questão regionalização.
Na realidade, o verdadeiro debate sobre a Regionalização só começa à partir da primeira década de 2000, graças à contribuição determinante de uma certa Diáspora esclarecida e progressista, na qual me inscrevo. Só a partir desta data aparece em cima da mesa conceitos e modelos diversos em debate: o modelo de Ilha Região e vários modelos de agrupamento de ilhas, até mesmo a ideia de transformar Cabo Verde numa federação de ilhas ou regiões soberanas. Em todo os casos ressurgem as duas regiões naturais no arquipélago: Barlavento e Sotavento, havendo mesmo quem defenda uma 3ª região, a região Centro, que deveria incluir as ilhas turísticas integradas, Sal e Boavista, portanto com uma forte identidade económica.
Continua em (1ª parte- Da socializalização da Proposta de Regionalização do Governo/MPD à socialização do PAICV à Regionalização)
20 de Maio de 2017

José Fortes Lopes

quinta-feira, 18 de maio de 2017

POR UMA REFORMA DO ORDENAMENTO AUTÁRQUICO EM CABO VERDE: O CASO PARTICULAR E SINGULAR DA ILHA DE S. VICENTE
                                  Um texto  Grupo de Reflexão da Diáspora:

          A criação de um município justifica-se, acima de tudo, por razões de ordem económica e de eficiência administrativa, antes da interferência de factores menores e de outro jaez que grosso modo possam emergir no campo das motivações políticas; por exemplo: emulação entre comunidades locais, cada uma a querer igualar-se à vizinha ou mesmo superá-la nas suas prerrogativas e ânsia de progresso; estratégias eleitorais para conquistar a adesão política de comunidades locais em vésperas de eleições.
          É um facto que a seguir à independência houve municípios cuja criação não obedeceu a critérios de racionalidade administrativa, mas a compromissos político-partidários para fixar clientelas eleitorais. Alguns desses municípios não passam de ficções autárquicas, destituídos de fundamento económico, sociológico e administrativo, sem uma clara relação com um projecto de ordenação territorial. Simples freguesias rurais promovidas, não possuem tecido social que justifique a sua existência como município. É impossível não reconhecer a influência do centralismo político na urdidura de uma proliferação de municípios na ilha de Santiago, à revelia de uma reforma da quadrícula autárquica que teria de basear-se em parâmetros de objectividade, exequibilidade e utilidade pública.
          Na verdade, a ilha de Santiago, que até à data da independência dispunha de três municípios, acrescentou à sua quadrícula autárquica mais seis unidades a partir de 1996, com possível fundamento no crescimento populacional e no respaldo do progresso económico e social. De facto, a população da ilha cresceu de 182.782 almas em 1970 para 303.499 em 2015, mercê da absorção de população de outras ilhas, mas alguns dos novos municípios são questionáveis do ponto de vista da racionalidade administrativa. Quanto à ilha de S. Vicente, a sua população passou de 31.578 almas em 1970 para 81.014 em 2015. O crescimento demográfico percentual foi, assim, similar nas duas ilhas mais populosas, Santiago e São Vicente, embora a taxa de crescimento da primeira superasse de longe a da segunda pelos efeitos induzidos pelo centralismo político. No entanto, contrariando a lógica observada em outras ilhas, até nas de menor dimensão social e económica, o território da ilha de S. Vicente continua a ser administrado por um único município.
          Pelas suas características de ilha-cidade, assiste-se a um crescimento desordenado da cidade do Mindelo e a uma urbanização que se alastra descontroladamente, desafiando a capacidade de resposta da edilidade. Acresce que a ilha é vítima de uma intensa pressão demográfica das ilhas vizinhas, que se despovoam da sua população rural, devido à ineficácia e mesmo falhanço das políticas de ordenamento territorial e económico do arquipélago-nação. O resultado é a periferia da cidade do Mindelo estar de novo a braços com um fenómeno que tinha sido travado ou debelado anteriormente: o ressurgimento de favelas feitas de casas de lata e contraplacado. E aqui registe-se uma ironia de duas faces, a saber. O governo não apoia a ilha com políticas sociais para fazer face aos problemas de desemprego e subemprego, em parte devidos à migração de populações das ilhas vizinhas. Por outro lado, e aqui a ironia é perversa, a câmara municipal de S. Vicente, a única na ilha, é que tem de arrostar com problemas escoados de ilhas com um maior número de municípios.
          Poderia considerar-se irrelevante o facto de S. Vicente ter passado à margem da onda multiplicadora de municípios, não fora, entre outros razões, o peso do número de municípios na ponderação das fatias orçamentais a atribuir a cada ilha. Esta condição só seria despicienda se cada ilha fosse olhada em função da uma realidade global em que pontificam valores como o peso demográfico e social, o contributo para o PIB e potencialidades económicas exploráveis em benefício do conjunto nacional.
          Com efeito, quando, no Orçamento do corrente ano, a ilha de S. Vicente é relegada para o quinto lugar na distribuição dos recursos para o investimento público, ficando aquém do município de Santa Catarina e ilhas como o Sal e Santo Antão, ressalta à evidência que a segunda ilha do país, por ser uni-municipal, arrisca-se a enfileirar, perante o critério de avaliação orçamental, em pé de igualdade com municípios de ilhas que no seu todo lhe estão muito aquém em encargos e responsabilidades. Conclui-se assim que o número de municípios, mesmo que pouco relevantes do ponto de vista social e económico, é um factor de majoração no critério de distribuição do Orçamento Geral do Estado, pelo que, nesta conformidade, S. Vicente está a ser indiscutivelmente prejudicada por só possuir um município. E no entanto é a segunda ilha do país em todos os parâmetros de avaliação, designadamente: demográfico; peso económico; e importância social e cultural.
       Mas outra questão com igual pertinência se coloca. Numa altura em que se prevê um projecto de regionalização para o país, o número de municípios em cada ilha não é irrelevante na configuração da estrutura do poder regional. Como o modelo que se tenciona implementar é o de região-ilha, com cada uma a constituir uma unidade regional, com excepção para Santiago, que terá duas, S. Vicente volta de novo a confrontar-se com o constrangimento da sua condição de ilha uni-municipal, ao lado do Sal, Boavista, Maio e Brava. O poder regional é, por definição, supramunicipal, o que pressupõe a existência de mais de um município sob a sua acção jurisdicional. Se há um único município no espaço regional, suscita-se desde logo um conflito de competências ou então a necessidade do seu reajustamento entre os dois poderes, implicando possivelmente uma redefinição e redução das atribuições da câmara municipal, que poderá limitar-se a áreas específicas da gestão urbana. Caso contrário, gera-se no interior da unidade regional situações de embaraço e quebra de eficiência administrativa, passíveis de frustrar os objectivos superiores da governação regional. Mas esta situação poderá não significar nas restantes ilhas uni-municipais o mesmo inconveniente que reveste para a segunda ilha do país, a qual aspira, com o poder regional, transformar a vida das suas populações.        
          A Igreja Católica costuma lavrar o terreno da vida comunitária na sua ânsia de lavrar os espíritos. Perscruta a lógica e o sentido da evolução das comunidades humanas, e ajusta a sua acção pastoral em proporção com o crescimento das populações e o grau do seu desenvolvimento social. Foi assim que a Igreja percebeu que tinha de aumentar o número de paróquias na ilha de S. Vicente e criar a Diocese do Mindelo, demonstrando assim que era imperioso estar à altura do redimensionamento da ilha e do aumento da complexidade dos seus problemas sociais e espirituais. Deste modo, na sua percepção da realidade, está a transmitir ao poder civil, de modo discreto e sem alarde, sinais claros de que a organização político-administrativa da ilha carece de se adaptar aos tempos actuais, de acordo com os pergaminhos a que a comunidade mindelense fez jus ao longo da sua história.
          Está nesta altura em preparação um projecto de lei para a regionalização do país, a submeter à Assembleia Nacional. Desconhecemos a amplitude e os contornos daquilo que, a nosso ver, deveria ser precedido de uma reforma do Estado tão profunda e alargada que obrigasse a rever e ajustar os alicerces e as estruturas do poder, tanto a nível central como local, em conformidade com os objectivos do novo nível de poder local. Não empreender uma reforma generalizada do Estado para acolher a regionalização, é recusar que esta terá fortes implicações de ordem estrutural, genética e operacional. Não ter esta percepção é pressupor irrelevante a nova estirpe de poder local, é pensar que ele não passará de uma excrescência no organismo do país.
          Mas não, a regionalização deveria implicar o redimensionamento do Estado central, adequando-o à nova realidade político-organizativa do país, para libertar recursos para a governação regional. Um outro objecto da reforma, e não menos importante, deverá visar a quadrícula municipal, conformando-a com a nova concepção do poder local e articulando-a de acordo com as exigências e contingências do novo paradigma. Haverá certamente municípios a extinguir, já que a existência de muitos não resistirá a um exigente critério de avaliação, se se colocar na balança os custos do seu funcionamento e a sua importância no ordenamento e gestão do território. Logo, importará questionar a viabilidade e a necessidade de municípios rurais que foram criados apenas para satisfazer clientelas políticas, ao mesmo tempo que será curial encarar a criação de municípios onde se justificam. É sem dúvida o caso de S. Vicente, onde se impõe estudar e perspectivar a criação de dois municípios nas regiões de Salamansa, Baía das Gatas e S. Pedro, com ou sem contiguidade com a área urbana ou periférica da cidade do Mindelo. E será provavelmente o caso de Santa Maria na ilha do Sal.
         Porém, por todas as razões aduzidas, o caso de S. Vicente é de manifesta singularidade e suscita premência na sua resolução, porque é a ilha na sua globalidade que se vê constrangida, limitada e prejudicada, exactamente por uma condição – uni-municipalidade − capaz de a diferenciar negativamente no plano nacional, contrariando flagrantemente o estatuto que é inerente às suas prerrogativas de facto e de direito. Não faz qualquer sentido que uma configuração autárquica desajustada possa representar um handicap para S. Vicente quando for arquitectada a estrutura de poder regional, tanto mais que se trata da segunda ilha do país.
          Assim, impõe-se repensar o Estado, em toda a sua dimensão, desde o centro à periferia, e introduzir no país lógicas de correcção e solidariedade territorial em que se cure dos valores materiais mas também dos elementos anímicos que inaugurem um novo imaginário político, relançando o progresso geral.


Abril de 2017

Pelo Grupo de Reflexão da Diáspora, e por ordem alfabética:
Adriano Miranda Lima
Arsénio Fermino de Pina
Carlos Adriano Soulé
José Fortes Lopes
Luiz Andrade Silva
Valdemar Pereira

sábado, 29 de abril de 2017

A EMIGRAÇÃO É TAMBÉM UMA REGIÃO DE CABO VERDE

Desde quando são crimes a dedicação e o regionalismo, bases do patriotismo?
Eugénio Tavares



Luiz Andrade Silva

                       
          No processo da Regionalização não se pode ignorar a Emigração, que tem sido um agente de transformação da vida social, económica, cultural e política de Cabo Verde. Para o enquadramento dos emigrantes nesse processo, em primeiro lugar, deve-se começar por explicar que a nossa emigração antes de ser uma questão nacional é do foro regional. Em segundo lugar, que a nossa emigração, a começar pela dos Estados Unidos e, nos últimos anos, pela da Europa, vivendo em países democráticos e regionalizados, quer ter voz e palavra no seu país de origem, tendo por isso aderido desde o princípio ao Grupo de Regionalização sediado em Mindelo. E, devido ao facto de sermos ilhas regionalizadas pela natureza, sempre se defendeu, durante o período colonial, a autonomia e, mais tarde, a Independência. E é normal que hoje, no Cabo Verde independente, se faça um novo combate contra o modelo centralista do Estado em Santiago, imposto a partir da Independência, que reduziu as liberdades fundamentais, marginalizou as outras ilhas e excluiu os emigrantes da gestão do seu Arquipélago. Tamanha ingratidão, pois como dizia Baltasar Lopes “se o Capristano de Abreu conhecesse o cabo-verdiano, nunca diria que o brasileiro é o povo mais ingrato do Mundo “.
          Ninguém obriga ninguém a emigrar. Mas a dignidade e o amor a Cabo Verde exigem essa aventura, seja clandestinamente seja legalmente, atravessando calmarias intermináveis, ou galgando montanhas, onde a fome e frio perseguem, em cada curva, os que se lançam na ousada determinação de lutar por uma vida mais digna. Na aventura da pesca da baleia, deixámos o nosso nome inscrito no panteão das histórias trágico-marítimas como grandes arpoeiros, como relata Hermann Menville no seu romance Moby Dick. No litoral Africano, construímos pontes e palácios onde a mão-de-obra cabo-verdiana era prestigiada. Em Dakar, saindo clandestinamente em pequenos palhabotes e faluchos, criámos uma comunidade com uma cultura própria e que deu um grande impulso à luta pela independência cultural e política de Cabo Verde. A ajuda dos cabo-verdianos do Senegal às famílias em Cabo Verde, nos anos cinquenta, merece ser assinalada. Três figuras dessas viagens clandestinas para o Senegal ainda vivem em Mindelo: os irmãos Alberto e Crisanto Lopes, que capitanearam o navio Novas de Alegria, ou o capitão Armando do navio Maria Sony. Estes homens salvaram Cabo Verde de uma outra fome nos anos cinquenta e sessenta. O capitão-de-fragata Cristiano José de Sena Barcellos, que foi Presidente da Câmara de São Vicente de 1896 a 1899, nos seus “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné” escreve: “Nas fomes de 1902, o Governador de Cabo Verde Paula Cid instituiu a concessão de passaportes a um preço elevado e a carta de chamada para Dacar para impedir a emigração livre para o Senegal, para assim poder recrutar candidatos forçados para as plantações de São Tomé onde possuía interesses”. A partir dos anos sessenta e com a abertura do caminho marítimo para a Holanda, muitos emigrantes foram a São Tomé e Príncipe resgatar os seus irmãos do cativeiro de São Tomé. Mas sem dúvida que foi a emigração para a Holanda como marítimos, organizada por um punhado de mindelenses e que depois se estendeu para os outros países da Europa, que libertou São Vicente e as outras ilhas do marasmo económico e social imposto pelo regime colonial e que relançou a luta pela afirmação da identidade cabo-verdiana que nos conduziu à Independência. Os cabo-verdianos da Holanda criaram uma comunidade muito sólida e respeitada. Em contacto com o povo holandês, culto e artístico, investiram também na cultura e marcaram a história de Cabo Verde ao nível da música, da política e do jornalismo, entre outras manifestações.
          A modernidade em Cabo Verde chega pelo Porto Grande e sua cidade de Mindelo, elevada à categoria de cidade em 1879, quando contava somente 3.300 habitantes. Um ano antes, a escravatura teria sido abolida no espaço português e os novos homens livres procuraram a Ilha de São Vicente, onde podiam viver libertos das sequelas da escravatura. Graças ao estabelecimento das companhias inglesas, São Vicente podia acolher pessoas de todas as ilhas. É justo dizer que São Vicente é a ilha das ilhas. Encontramos sãonicolenses na zona norte, santantonenses no sul da ilha, santiaguenses da Ribeira da Barca à volta da Praça Estrela, e também europeus (italianos, ingleses) que dão um colorido especial à ilha. Com as companhias inglesas nasceu um pequeno proletariado consciente da sua importância na sociedade, em que a cultura e o desporto como o golfe, o ténis, o cricket e o futebol, são praticados, assim como a literatura, e mesmo uma filosofia social, o Racionalismo Cristão, que é praticado pela maioria da população. Dos Estados Unidos não vieram somente dólares, mas também o protestantismo e uma consciência social importante para as lutas cívicas em Mindelo. O Liceu é frequentado por essa classe operária e filhos de emigrantes que, mais tarde, terão um papel importante na vida política e cultural do país. Assim, forjou-se uma sociedade mestiça apostada na cultura e no saber. É o próprio Amílcar Cabral, herói da Independência de Cabo Verde e também aluno do Liceu Gil Eanes, que aos 24 anos escreveu à sua namorada Helena: Há tantos miúdos pretos, mulatos, morenos, brancos (de todas as cores). É uma imagem fiel do que é Cabo Verde. Lá não se sabe o que é ser desta ou daquela cor. Lá o que interessa é o homem em si. Na fila dos professores verás outra afirmação desta verdade (Carta de Amílcar Cabral a Maria Helena). Referindo-se aos professores, na maioria filhos de emigrantes que tinham passado pelo Seminário Liceu de São Nicolau, Amílcar Cabral faz referência a essa elite intelectual da cidade do Mindelo, oriunda de várias ilhas e que teve um papel importante no ensino, na economia e na defesa dos interesses da população. É bom citar o caso dos primeiros presidentes do Município de São Vicente, os bravenses Augusto Ferro e Sena Barcellos, bem como dos intelectuais Luiz Loff Vasconcelos e Eugénio Tavares, que introduziram o gosto e a cultura da morna. O escritor inglês Archibald Lyall, que apelidou o povo Mindelense de “povo político” pela sua adesão à luta por causas nobres, escreveu: “Em São Vicente a curiosidade intelectual é particularmente intensa; os livros são lidos com avidez e passados de mão em mão entre os que não podem dar-se ao luxo de os comprar. Sem dúvida, a existência do liceu não seria estranha a esse culto que a juventude presta à inteligência e à cultura, mas velhos e novos em quaisquer das outras ilhas se associam a essa homenagem ao saber”.
          Os emigrantes apostaram na Independência de Cabo Verde. Ao contrário do que se esperava, mais desenvolvimento económico, mais liberdade, mais cultura, fomos surpreendidos por um regime centralizador que destruiu a classe comercial e obrigou muitos quadros a expatriarem-se para a capital ou para o estrangeiro. Os emigrantes, desencorajados, também deixaram de investir, preferindo guardar as suas economias nos países de emigração. A ilha, que nos anos cinquenta acolhia gentes de todas as outras ilhas, tem hoje uma população de oitenta mil habitantes e possui o maior índice de desemprego. O movimento associativo morreu. O partido único somente favoreceu o nepotismo, o medo do medo, o individualismo e o desinteresse pela vida política. A “ilha política”, como disse o escritor Archibalt Lewis, foi excluída da cena política nacional.
          Há necessidade de repensar Cabo Verde, quarenta e dois anos após a Independência e, desta vez, a emigração espera ter voz e palavra no Município, na Região, no Senado e no Parlamento, na sua justa dimensão. Temos de lutar contra as assimetrias entre as ilhas, entre as ilhas e as diásporas, restituir o orgulho de ser cabo-verdiano a todos, sem distinção de credos ou religiões. Temos uma rica cultura mestiça, admirada em todo o mundo onde vivem cabo-verdianos, verdadeiros embaixadores da Nação, que precisam de ser melhor aproveitados. O combate dos cabo-verdianos por Cabo Verde não se limitou à luta nas matas da Guiné Bissau. Os seus protagonistas não serão também os únicos heróis da Pátria. O combate teve lugar em todas as latitudes oceânicas, lutando contra tempestades e ciclones no mar alto e nas fábricas de todo o Mundo.
A questão da emigração não é tão simples. Ainda há quem pense que é só vir buscar dinheiro e nada mais. Houve até quem falasse de emigrantes económicos como se a questão se limitasse a ganhar uma lotaria. Eugénio Tavares (1868-1930), que por duas vezes esteve a trabalhar nos Estados Unidos, onde teve uma grande actividade jornalística e cultural, em contacto com o mundo das fábricas onde experimentou as greves, escrevia em 1918, no jornal A Voz de Cabo Verde: “Esta questão, meu caro amigo, não é apenas alimentar e indumentária, senão que fundamentalmente moral e social. Cabo Verde é um povo. E os povos têm aspirações que não se limitam à panela. Principalmente os povos que aprenderam a viver com mestres que dão lições ao mundo; que se habituaram aos cómodos da civilização; criaram necessidades; e que já respiraram a atmosfera do trabalhador livre e compensador” (Eugénio Tavares – Voz de Cabo Verde,1918).
          Temos uma grande literatura de escritores ligados à emigração ou de emigrantes sobre a emigração. O mais célebre é o romance iniciático Chiquinho de Baltasar Lopes (1907-1989), cujo pai ter-se-ia deslocado duas vezes à América. Baltasar Lopes viveu a sua infância como escriba das famílias de emigrantes em São Nicolau. Conhecia os problemas socias e económicos, os nomes das ruas, os projectos económicos, sem falar da saudade da terra que era constante. Um dos heróis do romance de Baltasar Lopes é o José de Lima, que imigra com um projecto de trabalhar de dia e estudar de noite, com o objectivo de regressar e transformar as relações sociais e económicas da sua ilha. Um outro romancista, filho do capitão Sousa, que aliás viveu a sua infância na América, é Henrique Teixeira de Sousa que no seu primeiro romance Ilhéu de Contenda demonstra o papel dos emigrantes na luta contra o sistema social na ilha do Fogo, através de investimento na economia e na cultura. No seu último romance Oh Mar das Túrbidas Vagas (2005), ele põe o dedo nos sucessos e também nos insucessos de muitos emigrantes que terão que regressar para morrer na Terra-Mãe. E tantos quadros de valor que Cabo Verde vai perdendo por falta de uma política de integração dos seus filhos. Mesmo aqueles que regressam por iniciativa própria, como foi o caso do médico, cientista e poeta João Manuel Varela, que acabou por morrer no anonimato em Mindelo, sua terra natal, onde nem o seu nome foi dado a uma praça ou a uma rua.
          Com o advento da democracia em 1991 e com a criação dos Municípios, nasceu a esperança de um diálogo profícuo entre os emigrantes e a região de origem. Onésimo Silveira enquanto presidente da Câmara Municipal de Mindelo criou um posto de vereador da emigração que foi ocupado por Manuel da Luz Gomes, funcionário da ENAPOR e conhecedor dos problemas da nossa emigração, que por duas vezes se deslocou à Diáspora para contactos e debates de ideias. Sei que produziu dois relatórios que podiam ser publicados mas que não tiveram seguimento. Com a demissão de Onésimo Silveira da Câmara Municipal, não houve mais encontros e debates com os emigrantes e nem torneios desportivos que podiam fazer regressar anualmente muitos jovens. No período de férias dos emigrantes (Julho e Agosto), O Município de São Vicente está mais preocupado com o Festival da Baía do que servir a causa da emigração. Acontece ainda que num país de emigrantes e turistas, o Governo autoriza o horário de Verão quando se devia fazer o contrário, ou seja prolongar o horário de trabalho no Verão, com a devida compensação num outro período. A Regionalização tem de vir mudar esta situação, pois é no período de Verão que os emigrantes e os turistas podem fazer investimentos no país.
          Com a abertura politica em 1991, foram realizados vários Congressos de Quadros mas as recomendações têm surtido pouco efeito. Os emigrantes passaram a ter seis deputados para a emigração. Mas continuam excluídos das eleições municipais onde se encontram os seus interesses mais importantes. Ora, para muitos emigrantes, o direito de voto nas eleições municipais é mais importante do que o direito de eleger os seis deputados na Assembleia, que nunca têm a palavra, a não ser com a autorização dos partidos políticos. O direito de voto nas eleições municipais poderia mesmo ser aplicado simplesmente aos emigrantes que pagam os seus impostos ao Município. Seria um estímulo ao investimento na Terra-Mãe. Impedir os emigrantes de votarem nas eleições municipais fez reduzir os seus investimentos, pois quem investe quer ter voz e palavra para defender os seus interesses.
          Mas votar nas eleições municipais e regionais seria uma oportunidade para se criarem novas relações sociais e culturais com as regiões de origem. No plano financeiro seria uma forma de levar as suas economias às regiões e no plano sociocultural levaria a sua experiência e o seu saber acumulado, participando em geminações, no intercâmbio cultural e na formação profissional.
          Um livro da autoria de Benvindo M. Oliveira Leitão, recentemente editado nos Estados Unidos, faz um inventário das personalidades bravenses, dispersas pelo Mundo e também em Cabo Verde. A Brava é uma ilha-região com uma população três vezes maior na diáspora e que mantém laços de solidariedade profundos com a sua ilha. Seria o exemplo de uma ilha-região em que todos os emigrantes bravenses pudessem votar na sua gestão sem a exclusão de ninguém. Mas seria fundamental para a reintegração no seu solo de Casas de Emigrantes que pudessem promover informação e cultura, desenvolver o intercâmbio cultural e atrair os investimentos emigrantes. E a Regionalização, conferindo direitos e deveres aos emigrantes, poderia mudar substancialmente a vida das pessoas naquela ilha. O livro cita grandes figuras da história de Cabo Verde vivendo em Cabo Verde e na diáspora que se distinguiram na política, na cultura, nas lutas contra as tempestades, etc. Sabe-se assim que Almirante Reis, bravense, foi o autor do golpe de Estado republicano em Portugal e cujo nome se deu à Praça Estrela em Mindelo. Mas sem dúvida o maior herói bravense foi Eugénio Tavares, que já no ano de 1900, em Providence, nos Estados Unidos, escrevia no seu jornal Alvorada o seguinte: “África aos Africanos. A África terá o seu Monroe”. Eugénio é o maior criador da morna, o grande defensor do crioulo, o grande combatente contra o estatuto do indigenato e defensor da emigração livre para os Estados Unidos, enquanto que ao mesmo tempo condenava a emigração para São Tomé e Príncipe “que era um insulto à dignidade humana e o regresso à escravatura deguizada sob o pano da liberdade” (carta a Daniel Alexandre Almeida, in Voz de Cabo Verde, 1918). Um livro de carácter regional que somente visa a história da Brava e dos bravenses dispersos pelo Mundo, mas que pode servir a cada ilha ou região para fazer um inventário da sua história e fazer novas propostas no sentido de associar todos os cabo-verdianos ao desenvolvimento da sua ilha ou região.
          Organizar a emigração por regiões e com representatividade própria corresponde às exigências dos movimentos associativos. Temos associações de Foguenses, de Bravenses, de Sãonicolenses, de Santantonenses, de Maienses, que poderiam ser chamados a participar no desenvolvimento da sua região. E isso não impediria que no plano nacional os emigrantes continuassem a ter os seus deputados na Assembleia e no Senado (se houver).
          O silêncio imposto pelo regime colonial com a subida de Salazar ao poder após o golpe militar de 1926, impondo uma ditadura (1926), pôs termo às veleidades de autonomia do período monárquico e republicano. Em vez de investimentos na modernização do Porto Grande, a solução encontrada pelo regime colonial foi de novo a emigração forçada para as plantações de São Tomé e Príncipe. Em 1934, houve um levantamento da população de São Vicente chefiada pelo carpinteiro Ambrósio, poetizado como Capitão Ambrósio pelo poeta e ensaísta Gabriel Mariano. Em 1936, surge timidamente a revista Claridade que trouxe um pouco de oxigénio à vida cultural do Mindelo. Mas a emigração não pode somente ser vista no aspecto económico. É certo que o primeiro romance cabo-verdiano Chiquinho, de Baltasar Lopes, levanta o problema desta emigração provocada pela às secas e a miséria, mas o vocabulário continua hesitante perante a densidade dos problemas. É preciso esperar pelos anos cinquenta para que a consciência cabo-verdiana se levante, em todas as latitudes, perante o drama imposto aos homens e mulheres nas plantações de São Tomé e Príncipe, que temiam mesmo o regresso para não virem a morrer de fome na sua terra. Mas será de novo Osvaldo Alcântara, heterónimo de Baltasar Lopes, o primeiro a abordar o problema com uma dimensão política. No Romanceiro de São Tomé, o poeta, romancista, folclorista, afirma a sua cabo-verdianidade e toma posição contra o drama imposto a milhares de cabo-verdianos, duplamente vítimas do colonialismo português, perante o dilema de, como famintos, serem condenados a trabalhar nas plantações de São Tomé e temerem abandoná-las para não morrerem de fome. Os nossos músicos e compositores participaram também nesta denúncia do caminho de São Tomé, com lindas mornas e das quais se destacam as mornas de Abílio Duarte Camim de São Tomé e Céu de São Tomé na voz do Nhô Balta e ainda a balada Sodade de José Zeferino Soares, interpretada por Bonga e mais tarde por Cesária Évora e outros cantores cabo-verdianos e estrangeiros. Com a Independência, esperava-se a libertação e o regresso prometido a Cabo Verde dos trabalhadores contratados nas roças de São Tomé. Nada disso aconteceu: foram abandonados pelos portugueses perante a passividade do Governo de Cabo Verde e do PAIGC e por lá morreram deixando filhos e netos. Dizia o poeta Ovídio Martins que Cabo Verde nunca seria livre enquanto houvesse um cabo-verdiano nas roças de São Tomé. Morreu magoado e frustrado por não ver o seu sonho realizado.
          No quadro da Regionalização, as relações entre a aldeia, a cidade, a ilha e a emigração devem conhecer um outro desenvolvimento económico e cultural. Cada ilha tem a sua tradição: umas gostam do seu batuque, outras da morna, outras da mazurca, outras do Colá Sam Jom, etc. E neste mundo da Internet e do video os emigrantes estariam ligados à vida social e cultural do seu bairro de nascimento sem terem necessidade de regressar à sua ilha ou região. Um bravense sem a sua morna está amputado da sua identidade. Diz o bravense Benvindo Leitão: “a morna não é apenas o grito de um povo maltratado, como muitos possam pensar; ela é a expressão de sentimentos nobres e profundos de um povo que, consciente das realidades da vida nas ilhas, não desanima mas, confiante no futuro, luta para que este seja uma realidade promissora…” Concluindo, a morna, produto do povo cabo-verdiano nas diversas circunstâncias da vida, é uma necessidade, especialmente para o bravense. É como um estimulante que se toma para continuar a viver com entusiasmo. E seja para onde for que um bravense se desloque, a morna há-de acompanhá-lo. Ajuda-o a superar os muitos obstáculos da vida, a matar as saudades e a adquirir vigor e confiança na vida. O bravense sem a morna é como um navio sem velas no alto mar, num dia de calmaria. E foram pessoas como Augusto Ferro, Luiz Loff Vasconcelos e o próprio Eugénio Tavares, amigos e defensores da cidade do Mindelo, que ali foram entregar nas mãos de B. Leza o destino da morna de Cabo Verde, que hoje nas vozes de Bana, Cesária, da Voz de Cabo Verde, representa o país em todo o Mundo.
          As gravações de discos começaram nos fins dos anos cinquenta e tiveram um grande impacto na emigração. É bom aqui realçar o papel de Fernando Quejas, Amândio Cabral, Titina e Mário Melo na promoção e divulgação da música de Cabo Verde em Portugal, mas foi na Holanda em 1966, com o primeiro disco de Bana e a Voz de Cabo Verde, que os cabo-verdianos entraram numa maior dinâmica cultural, divulgando e promovendo a música nacional no Mundo.
          Foi a cultura que nos deu a força para afirmar a nossa identidade e exigir a Independência para Cabo Verde. Mostrámos a diferença, ser um outro povo com um percurso de combates culturais e políticos. As armas da cultura venceram as armas de guerra que trazia o regime de Salazar. E a emigração tem a honra de ter dado a sua contribuição, nada exigindo para ela mas sim para o povo de Cabo Verde.
          O movimento associativo cabo-verdiano é uma força em todas as comunidades. Melhor aproveitado, pode desempenhar um papel importante junto dos Municípios e do Governo. Iniciado nos princípios do século XX nos Estados Unidos, estendeu-se a todas as comunidades cabo-verdianas dispersas pelo mundo, comprometidas com a Luta pela Independência. Na Holanda, graças a Constantino de Nho Matijim, tivemos hotéis e restaurantes para acolher os novos emigrantes e dar alguma formação aos recém-chegados. Tivemos casas editoras de discos e até de livros, um jornal, o Nôs Vida da Associação Cabo-verdiana de Roterdão. E uma comunidade solidária sem a qual a nossa emigração e Cabo Verde não teriam triunfado com o seu projecto de emigrar para transformar Cabo Verde.
          Com a Independência e o partido único tudo se desmoronou. Aquele que não recebia cegamente as ordens do partido era marginalizado e até corria o perigo de ser preso em Cabo Verde, chegando muitos a perder os seus investimentos ou deixar de investir na sua terra, quebrando assim o projecto original de regresso.
          Nunca é demais no quadro da Regionalização repensar sobre a importância da cultura porque ela une todos os cabo-verdianos. O Município e a Região têm de se virar para a emigração, como fazem todos os países de emigração no mundo. Dou o exemplo de um país regionalizado como a Itália em que são os Municípios e as Regiões que organizam os seus emigrantes no exterior a ponto de quase todos regressarem de férias e com a suas famílias. Vou repetir o que escrevi num artigo publicado no Mindelact sob o titulo Os emigrantes têm direito também ao teatro: “durante três meses, ou seja nos meses de Julho, Agosto e Setembro, tudo é programado para receber os emigrantes e os turistas: os bancos, as igrejas, o cinema, o teatro, os restaurantes, as empresas de construção civil, quase tudo funciona 24/24 horas para responder às necessidades da sua economia. Em três meses ganha-se para viver o resto do ano com toda a tranquilidade. É a própria Câmara Municipal que organiza os voos charters para os seus emigrantes, rodeando-se dos melhores técnicos para o efeito. Os bancos e as empresas de construção visitam directamente os emigrantes para lhes fornecerem créditos, a taxas de juro baixíssimos, para a edificação das suas casas ou criação de empresas. A Câmara e as associações locais organizam festivais semanais de cinema, de teatro e de música clássica e tradicional, fazendo convergir para essas cidades milhares e milhares de turistas de outras localidades”.
          Precisamos de um banco para apoiar os emigrantes, de embaixadas que sejam uma vitrina cultural e social de Cabo Verde e que assumam um papel social e cultural na emigração e não simplesmente de uma fonte para recuperar as economias dos emigrantes.
          Precisamos de organizar um intercâmbio escolar para as crianças e encontros desportivos entre as equipas da diáspora, conferências anuais e debates dentro e fora de Cabo Verde, de uma participação maior dos nossos artistas em festivais e concertos sem amiguismos, simplesmente apostados em servir Cabo Verde.
          Necessitamos de serviços sociais e culturais nas embaixadas, que apoiem as nossas associações e os emigrantes com dificuldades económicas e sociais; de Casas de Cidadãos em todas as comunidades, para apoio na obtenção de documentos.
          A crise económica continua a bater às portas da Europa. Temos uma experiência ocorrida em 1974 em que muitos cabo-verdianos das colónias portuguesas regressaram de mãos vazias a Cabo Verde. Um caso idêntico já tinha acontecido em 1822 com a Independência do Brasil, em que milhares de portugueses perseguidos tiveram que regressar de mãos vazias a Portugal.
          Cabo Verde deve, pois, ter uma política de emigração para proteger os seus filhos em qualquer circunstância. Porque não criar seguros para emigrantes e que depois de X anos de cotizações poderiam beneficiar de uma pensão de reforma em Cabo Verde?
          Não vale a pena remoer o passado. Mas deve-se aprender com ele. Ainda temos conterrâneos nas roças de São Tomé e agradeço a recente intervenção do Presidente da República, Doutor José Carlos Almeida Fonseca junto do Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, no sentido de se resolver a situação dos cabo-verdianos que foram forçados a partir para escaparem da fome e aceitar as condições de um contrato humilhante nas roças de S. Tomé, para onde emigraram como portugueses, com direito ao regresso e a uma indemnização, fruto dos descontos mensais que faziam no quadro do contrato.
          Os emigrantes esperam pela materialização do Conselho das Comunidades previsto na Constituição; por uma Federação Mundial das Associações; por uma representação no Conselho Económico e Social e, ainda, pelo direito de voto nas eleições municipais e regionais, bem com por uma representação no Senado (se houver).
          Cabo Verde é um país novo com sucessos e insucessos e que precisa da contribuição de todos os seus filhos. E para isso é necessário ser repensado por todos os cabo-verdianos, acima dos interesses partidários e unidos por uma causa comum: Cabo Verde.
          Sendo a emigração um sacrifício por Cabo Verde, o emigrante deve merecer mais, a começar por direitos iguais aos compatriotas que vivem nas ilhas, para melhor servir a Nação. Pois, é preciso não esquecer que ele dispõe do monopólio da saudade, como dizia Baltasar Lopes.

Caboverdianamente,
Luiz Andrade Silva
Paris, 15/4/2017