sábado, 6 de julho de 2019


3- CABO VERDE 40 ANOS APÓS A INDEPENDÊNCIA: DA NORMALIZAÇÃO À RECONCILIAÇÃO NO QUADRO DA LEI DE RECONCILIAÇÃO NACIONAL
       In ‘Cabo Verde 40 anos após a Independência; Da  Independência à 1ª Via’  (Julho de 2015)

No artigo precedente (1, 2), na abordagem à notícia sobre a anunciada “Lei de Reconciliação Nacional” (3), suscitou dúvidas o emprego das palavras “indultar”, “amnistiar” e “reinserir” a que se refere aquela lei, no pressuposto de que poderia apenas tratar-se de uma questão de empregabilidade semântica. E isto porquê? Porque simplesmente aqueles termos se aplicavam a pessoas que entendem que não cometeram qualquer crime ao fazerem uso do direito de opinião e de reunião devolvido aos cidadãos com o 25 de Abril de 1974.

Em todo o caso, essa lei poderá ter o mérito de criar a possibilidade de abertura e revisão de todo do período revolucionário que começou em finais de 1974, assim como outros episódios menos dignificantes da 1ª República, implicando assim a necessidade de reescrever a história.
Por outro lado, a existência desta lei reconhece implicitamente que terão sido cometidos ‘erros’ e eventualmente delitos da parte das então autoridades, o que até agora tinha sido invariavelmente negado ou ignorado pelas diferentes versões da história até hoje contada. Mesmo tardiamente, ela não deixa de constituir uma censura a todos aqueles que, por motivações de ideal revolucionário ou impelidos pelo fulgor dos acontecimentos, conscientemente ou inconscientemente, praticaram ou deram cobertura a actos actualmente condenáveis no quadro nova ordem moral e política. Mas o mais importante é que a Lei pode abrir a possibilidade de um despertar de consciência de muitos cabo-verdianos entorpecidos pela desinformação e pela propaganda sobre um capítulo bastante controverso da história de Cabo Verde, e que engloba todo o processo revolucionário iniciado em 1974. Se a sociedade não estivesse anestesiada, poderia reabrir um debate interessante, descomplexado e maduro, que pudesse envolver, para além dos protagonistas ainda vivos, a sociedade em geral, incluindo jornais e redes sociais. Mas aparentemente estas coisas ainda não conseguem quebrar a placidez em que vivemos.
Como vimos no artigo precedente, o número de pessoas que possam considerar-se injustiçadas e em condições de litigar é potencialmente superior ao dos declarados expropriados, pelo que poderá não ser fácil passar uma esponja a este período, do jeito tomem lá uns tostões e calem-se, pois, como é óbvio, as pessoas que se consideram injustiçadas com as práticas do passado não se contentarão com indemnizações mas sim com uma completa ilibação e as devidas desculpas públicas. Tudo isto revela a enorme dificuldade moral e política em lidar com a questão, agora que está aberta a caixa de Pandora.
Como poderemos antecipar, uma eventual revisão do período revolucionário levará ao confronto duas posições antagónicas: uma baseada na Lei e no Direito formal e outra baseada na legalidade revolucionária, ou seja no direito do povo a uma forma de justiça, ou mesmo de violência, determinada pela lógica revolucionária. Tudo isto veremos mais à frente.

Como vimos precedentemente, o perfil dos protagonistas em confronto nesta saga revolucionária de 1974 pode resumir-se nestes termos:
- De um lado, os que ficaram ou estavam em Cabo Verde, a Tapadinha (esta denominação de S. Vicente quando se refere à terra-mãe na sua desolação). Referindo ao grupo que se opôs ao PAIGC, eram essencialmente homens nascidos nos finais do século XIX até ao início do século XX, que nunca ou quase nunca saíram da sua terra, para além dos estudos e das férias graciosas passadas na Metrópole. Eram em geral pessoas cultas, bem formadas ou que conseguiram singrar na vida, e formavam a elite colonial, administrava e económica do país. Do ponto de vista político, eram na sua maioria conservadoras, muito identificadas com a ideologia reinante, fossilizadas socio-politicamente no sistema colonial-salazarista e fechadas no Grémio elitista, entendido pelo povo como um clube de ‘aristocratas’. Todavia, era a elite influente que contava tanto em Cabo Verde como na ex-Metrópole em tudo o que determinava os destinos de Cabo Verde. Esta elite, segundo a lógica dos seus opositores, ao organizar-se politicamente no pós 25 de Abril na UDC e ao opor-se aos ‘libertadores’ do PAIGC, queria pura e simplesmente preservar os seus privilégios e o seu estatuto através de um regime alegadamente democrático e pluripartidarista, mas que na prática lhes permitiria manter as rédeas do poder e assegurar uma ligação à ex-Metrópole, perpetuando uma situação de neocolonialismo clássico. Se os principais protagonistas da UDC foram “decapitados” pelas vicissitudes da própria revolução, nem todos o seriam, pois, aparentemente, alguns reaparecem em 1977 na alegada intentona contra-revolucionária e outros não abandonaram a causa política, associando-se nos anos oitenta à Oposição na emigração, engrossando as fileiras da UCID. A UDC em tudo se opunha ao PAIGC, apresentando-se como atlantista, ocidentalista e radicalmente contrária à Unidade Guiné-Cabo Verde (4) e à africanização de Cabo Verde. Entendia o país como um caso à parte em África, e mesmo como uma espécie de anexo de Portugal nos trópicos. Defendia uma economia de mercado e um sistema político parlamentar, classificado na época de burguês pelos revolucionários.

 - Do outro lado, os recém-chegados líderes do PAIGC, que eram, para a população residente no arquipélago, um punhado de ilustres desconhecidos da maioria da população (compreensível no ambiente falta de informação e de censura em que se vivia), são hoje (1974) aclamados heróis do povo, pela luta política levada a cabo no estrangeiro e pela luta armada nas matas da Guiné Bissau em nome de Cabo Verde, aos quais se juntam os resistentes antifascistas ou militantes nos partidos de esquerda em Portugal, assim como alguns funcionários cabo-verdianos nas ex-colónias portuguesas, alegadamente apoiantes do PAIGC na clandestinidade. É de realçar o papel dos emigrantes cabo-verdianos de Moselle (França) que terão em 1964 engrossado as fileiras da guerrilha na Guiné (5,6,7): Segundo informa o jornal online A Semana“…Era um grupo constituído por 26 originários de Santo Antão, São Vicente e Santiago, que tinha iniciado o seu trabalho nas minas de ferro e na indústria siderúrgica na região de Moselle, nordeste da França. Mas a parte mais expressiva era constituída por camponeses da Ribeira Grande de Santo Antão a mobilização política realizada na região de Moselle, nordeste da França, em 1964, ficou gravada no itinerário da luta pela independência e liberdade da Nação Cabo-verdiana. Por isso, ela simboliza a generosa contribuição das comunidades cabo-verdianas no exterior a esta causa patriótica, depois da mobilização em Bissau em finais de cinquenta, e Dakar, em princípios de sessenta”. Estes bravos que se juntaram ao grupo de Paris terão sido formados na arte da guerrilha e da revolução nas montanhas de Escambray (Cuba) no intento de um dia tentarem uma operação anfíbia e desencadearem uma guerra de guerrilha em solo cabo-verdiano (8). Convenhamos que esta seria uma operação em todos os pontos de vista suicida, dado a fraca ou inexistente implantação do PAIGC em Cabo Verde nesta altura e a inviabilidade de manter uma guerra de guerrilha num arquipélago com as características de Cabo Verde.
 Como vimos nos dias de hoje, a lista dos combatentes não pára de crescer, aparecendo, para surpresa de todos, novos que se declaram autores de alegadas acções antes do 25 de Abril em solo cabo-verdiano ou no estrangeiro, contra a presença colonial portuguesa, para além dos que se evidenciaram depois dessa data, durante o período revolucionário cabo-verdiano, ou que adquiriram este estatuto por outros motivos.
Os cabo-verdianos do PAIGC tinham pura e simplesmente rompido na altura certa com o sistema colonial em vigor no arquipélago e no império, quando novos ventos de liberdade sopravam em todo o mundo e em África, onde o sistema colonial europeu claudicava. Os mais instruídos eram em geral pequeno-burgueses nascidos entre os anos 20 e 50 do século XX, estudaram no Liceu Gil Eanes e muitos foram alunos ou discípulos de alguns dos homens que agora afrontavam. Alguns fizeram uma formação universitária em Portugal, conviveram com os círculos de esquerda portugueses e internacionais, assim como os círculos anticoloniais africanos, alinhando com o espírito da época na luta anticolonialista ou de Maio de 1968 (Paris). Eram, pois, jovens cabo-verdianos que contactaram com outras realidades, outros regimes sociopolíticos (socialistas e sociais-democracias), e familiarizaram-se com as mais modernas correntes de pensamento do seu tempo, a saber, o socialismo, o terceiro-mundismo, o pan-africanismo e o anti-neocolonialismo. Podiam ser, portanto, considerados, para o contexto da época, progressistas, revolucionários e de esquerda, sem terem todavia experienciado os valores da democracia parlamentar, social-democrata ou democrata-cristã. O PAIGC, como todos sabemos, defendia a Unidade Guiné-Cabo Verde, a africanização de Cabo Verde, a aproximação ao países africanos e/ou Não Alinhados de tendência progressista, assim como aos países do Bloco Socialista, que concederam uma ajuda determinante durante a sua luta armada. Segundo este partido o arquipélago era um caso tipicamente africano, ou mesmo uma espécie de anexo da Guiné-Bissau, país irmão no qual se desenrolava o essencial da luta de libertação de Cabo Verde. Defendia para depois da independência um regime centralizado, baseado uma economia planificada do estilo ‘socialista’ e um sistema político de partido único, sendo o Partido, o único e legítimo representante do povo, o porta-voz das suas aspirações.

É, pois, em torno destes personagens em oposição ideológica que se desenrola a saga do pós-25 de Abril, da descolonização e da Independência, deflagrando o confronto político em Cabo Verde, pelo menos na primeira e curta fase do processo revolucionário, uma vez que os potenciais opositores ao regime que estava a ser instituído foram prontamente postos fora de jogo ou expulsos do país manu militari em finais de 1974.
É claro que não me propus descrever na sua globalidade todos os protagonistas dos dois campos em toda a diversidade ideológica, moral e política que a complexidade da situação proporcionou, mas sim as características mais marcantes dos dois campos. Sobretudo, não pretendo neste artigo fazer um julgamento moral dos mesmos. Em ambos campos, havia boa gente, bem formada e bem-intencionada, mas que simplesmente se posicionava em posições diametralmente opostas e que nunca se dialogaram.

Se a análise desta problemática utilizar hoje o crivo sociológico adequado a uma realidade livre e plural, desde logo ter-se-á de concluir que a sociedade cabo-verdiana contemporânea está dividida em várias correntes políticas, ideológicas, morais e jurídicas, a saber:

- Uma corrente, subitamente tornada maioritária por injunção de impulsos ideológicos em ambiente político privilegiado, que se revê nos ideais de Amílcar Cabral e do PAIGC/CV ou da esquerda revolucionária, e que analisa a problemática de um ponto de vista estritamente revolucionário e no viés do processo de descolonização. Ela defende que uma acção revolucionária em nome da justiça e do povo acarreta forçosamente excessos que não podem ser julgados a posteriori;

-Uma outra corrente que incorpora uma fracção não menos representativa da opinião pública e que analisa a problemática estritamente de um ponto de vista de novos valores modernos, democráticos e jurídicos, trazidos pelo 25 de Abril e pela posterior instauração da democracia em 1992, demolindo assim os pressupostos da outra;

- Entre estas duas correntes fundamentais e representativas de campos ideológicos em confronto, jaz o largo sector dos indecisos, constituído de gente pouco esclarecida ou timorata, simples espectadores dos acontecimentos mas que são os que determinam as maiorias sociológicas. Incluem-se também os vira-casacas e a legião de oportunistas mais papistas que o papa que caracterizam os períodos pós-revolucionários.

Assim, na lógica dos primeiros, os que defendem a legitimidade revolucionária (apoiada então pela força militar colonial ainda estacionada na colónia, que antes combatia o campo dos vencedores mas que agora protegia o dos vencidos, e que até ao último momento poderia determinar o lado para o qual penderia a balança), Indultar e Indemnizar aqueles que foram justamente punidos de 1974-1981 pela nova ordem popular revolucionária, é um contrassenso político, uma traição aos ideais revolucionários dessa época e uma injustiça a todos os que lutaram por um Cabo Verde livre, justo e sem exploração do homem pelo homem, e que inclusivamente pegaram em armas. Os eventos ocorridos nesta época e os subsequentes aconteceram no quadro de um processo revolucionário, tomado no seu sentido mais lato, este era o espírito predominante entre os seus protagonistas. Não sendo possível fazer omeletes sem partir ovos, os eventuais actos delituosos cometidos nesse período não foram senão uma consequência natural do mesmo processo, para além de serem um ajuste de contas com o colonialismo e os seus lacaios, em suma, com um passado de 5 séculos de exploração colonial. Para os revolucionários, o Grémio era um refúgio dos representantes do regime deposto e a tomada da Rádio Barlavento, sua propriedade, foi um acto que se reveste de um marcante simbolismo na história de Cabo Verde: representa o fim do colonialismo e o início da revolução cabo-verdiana. ‘Après tout’, esses cabo-verdianos constituíam a autêntica elite colonial ‘aristocrática’ (já que não havia assim tantos colonos portugueses), soberba, fechada sobre si mesma, discriminadora, ou mesmo racista-social, que desprezava o povo e estava alheia à sua condição. Para além disso, arrostavam o pecado capital de serem representantes ou apoiantes do odioso regime de Salazar, os zelosos serviçais do colonialismo português em Cabo Verde, e que, inclusivamente, apoiaram incondicionalmente a guerra colonial em África, onde o PAIGC se batia gloriosamente. Portanto, o que restava do sistema colonial em Cabo Verde devia ser desmantelado e os seus principais actores não podiam jogar nenhum papel no novo país ou mesmo corridos do país. De resto muitos foram parar a Caxias. Para os revolucionários não podia haver outra justiça senão esta baseada na moral revolucionária.
De resto, numa interpelação irrecusavelmente pertinente, impregnada de materialismo histórico, os protagonistas da corrente revolucionária perguntarão mesmo se essa elite não foi vítima do seu próprio imobilismo e acomodação acrítica e oportunista a um sistema colonial caduco e sem intenção de se regenerar, ela incapaz de amadurecer e ser a voz representativa e reivindicativa da comunidade em que se inseria. Mas convenhamos que nem toda a elite cabo-verdiana estava no refúgio de ‘aristocratas’ que era o Grémio, nem tão pouco partilhava o conjunto dos seus valores. A elite cabo-verdiana era, na realidade, complexa, multifacetada e estava estratificada socialmente, culturalmente, embora fracamente preparada ideologicamente, visto depender totalmente da Metrópole. 
Embora não se questione que por essa altura a elite social local já não dava sinais da mesma vitalidade cívica e interventiva de outrora, mais preocupada com as rotinas do seu estatuto de casta do que com o activismo que lhe competia em proveito da comunidade, reconheça-se, todavia, que sem esse sector social Cabo Verde teria sido no passado uma colónia banal, no imobilismo clássico da administração colonial, como o era por exemplo o caso da Guiné, que, sem elites locais, tinha de recorrer a quadros cabo-verdianos excedentários para a sua administração. O que na verdade distinguiu Cabo Verde do resto dos territórios africanos sob administração portuguesa, foi precisamente a sua capacidade de gerar pessoal qualificado nos mais diferentes sectores de actividade, não obstante a sua pequenez e as suas parcas condições naturais. Dir-se-á que numa relação desproporcional com o seu território, Cabo Verde produziu homens da ciência como o célebre químico Roberto Duarte Silva (10) e o engenheiro Humberto Duarte Fonseca (11), um militar de alta patente Viriato Gomes da Fonseca (12) (o General de Coculi), zeladores do bem comum como o senador Vera Cruz, o deputado Adriano Duarte Silva e os cidadãos Júlio Oliveira e Leça Ribeiro de Almeida, figuras da cultura como Eugénio Tavares, José Lopes, Baltasar Lopes, Aurélio Gonçalves, Jorge Barbosa e Teixeira de Sousa, o distinto professor e Reitor do Liceu Gil Eanes Antero Barros, e da arte musical como B. Leza, Bana e Cesária. Isto só para citar nomes sonantes e alguns de notoriedade internacional, pois o que se pretende relevar é a circunstância extraordinária de um território pequeno e desprovido de recursos ter sempre gerado ao longo da sua história gente qualificada mais do que suficiente para assegurar a sua própria administração e orientar as suas pulsões cívicas, sem o que talvez ele tivesse sido votado a um maior abandono pela potência administrante.
Esta é uma verdade que não poderia ter sido ignorada no momento da exaltação revolucionária, uma verdade que deveria ter obrigado a um mais rigoroso critério na hora do julgamento, com o cuidado de separar o trigo do joio. Mais prudente tivesse sido a atitude do novo poder político, talvez a ilha de S. Vicente não se visse subitamente privada de parte importante da sua massa crítica, ela que foi sem dúvida a principal, se não a única, vítima da fuga maciça de importantes quadros do território. E talvez este pecado original é a mãe de todos os problemas que assombram hoje Cabo Verde, e em particular a ilha de S. Vicente.
Seguindo, pois, o pensamento da corrente revolucionária, foi a própria caducidade do sistema colonial que ditou a sentença de morte da elite colonial cabo-verdiana, afogada na sua própria ‘água’. Deste ponto de vista, tudo o que lhes aconteceu foi merecido, e mais: o regime de partido único instaurado em 1975 pelo povo e para o povo, era uma resposta, uma retaliação natural ao “Mal” que se vivia em Cabo Verde, para além de ser uma vacina contra um eventual retorno encapotado da elite de “má memória” ao poder através de eleições livres. Para além disso, a revolução se propunha, do alto da sua presunção ideológica, salvar a alma dessa elite através de uma longa reeducação revolucionária que incluiria o seu Suicídio de Classe, a criação do Homem Novo e a Reafricanização do seu espírito, conforme o pensamento de Amílcar Cabral. Assim sendo, exações, atropelos à ainda lei colonial vigente em 1974, dirigidos contra a elite e a burguesia colonial, não podem ser julgados hoje como delitos, são consequências naturais de um processo revolucionário de descolonização, e nesta conformidade devem ser vistas à luz da legalidade revolucionária e, portanto, perfeitamente justificadas e até bondosas!

No entanto, na óptica dos direitos elementares da pessoa humana, a verdade é que muitos cabo-verdianos se viram privados dos seus direitos de propriedade e muitos deles presos, vilipendiados e feridos na sua dignidade moral, por mor de um processo de descolonização feito à pressa e promovido por via revolucionária na onda dos acontecimentos propiciados pela súbita queda do regime político anterior. Só que o ímpeto revolucionário acabou por ser daninho nos seus efeitos, pouco precavido no julgamento das intenções e das culpabilidades.

No sopeso dos factos históricos e na análise da sua relação com as teorias sociais e políticas, diz o Luiz Silva (1,2), um sociólogo e nacionalista convicto que não ascendeu ao poder, nem teve o privilégio das suas benesses e que por isso está bem situado para fazer uma análise ponderada e equidistante do processo: “Em todos os países colonizados os partidos políticos foram emanações do movimento sindical e associativo. No entanto, houve países como a Inglaterra em que independência das colónias foi objecto de diálogo e concertação. A França, que concedeu direitos sindicais, aboliu o indigenato desde 1946 e procurou integrar os representantes das colónias no parlamento, no entanto tentou pelas armas dominar os movimentos independentistas. Mas a maioria dos presidentes das repúblicas dos países francófonos passou pelo parlamento francês onde teve o treino da democracia, e alguns como Senghor e Houphouet Boigny chegaram a ser ministros na Terceira Republica. Quanto a Portugal, em caso algum quis saber do exemplo dado pelas potências colonizadoras, tão renitente era o ditador Salazar em seguir contra os ventos da História. Pelo contrário, a partir de 1933 foi estabelecida a censura, criada a PIDE e proibido o movimento associativo e entre ele a Maçonaria, que teve um papel importante em Cabo Verde. Amílcar Cabral, que conhecia os movimentos pacifistas, tanto mais que deu o nome de Indira a uma das suas filhas, procurou sempre dialogar com o governo colonial e foi quase forçado a entrar na luta de libertação, inspirando-se no seguinte lema (apoiado na cultura com a bela frase): a luta de libertação é um acto cultura.
O Governo colonial, com a conivência da Igreja Católica e mercê do seu aparelho repressor, conseguiu sustentar o seu regime autocrático com quadros dóceis, temerosos de que uma simples atitude crítica pusesse em causa os seus postos de trabalho e os seus privilégios. O curioso, mas não de todo surpreendente, é que alguma dessa gente, numa atitude servil, aderiu imediatamente ao PAIGC, trocando as voltas às suas convicções, se é que na verdade houvesse alguma, o que é perfeitamente natural depois da clausura dos espíritos ao longo de décadas. Assim, não havendo sindicatos e nem associativos, que podiam ser geradores de partidos políticos ou de lideranças cívicas suficientemente estribadas, o PAIGC, ao chegar a Cabo Verde com um treino politico importante, encontrou a adesão imediata das massas populares sedentas de justiça social, de salários justos e da liberdade de que o regime colonial lhes tinha coarctado. E por mais aceitáveis que fossem as intenções dos neófitos partidos UDC ou a UPIC, alguns dos seus membros também vítimas do regime colonial, mas com o ónus do seu silêncio comprometedor durante a vigência do regime deposto, a sua mensagem não encontrou eco na sociedade, até porque o ambiente se tornou pouco favorável ao confronto livre das ideias. O 25 de Abril caiu de surpresa  e os revolucionários dirão que se erros cometidos houve foi devido a um percurso diferente do dos outros regimes coloniais. Mas quem não erra é aquele que nunca fez nada..” …“A descolonização é uma questão violenta, dizia Frantz Fanon, um dos teóricos da descolonização e da negritude e que mais influenciou o Amílcar Cabral e muitos patrícios da minha geração…..Embora a formação teórica marxista de Amílcar Cabral, ninguém pode afirmar qual o modelo económico e social que seria aplicado nos dois países. Do que estou certo é que ele nunca iria excluir do debate sobre o destino da Nação qualquer cabo-verdiano, como aconteceu aqui em França com De Gaulle, que aliás foi buscar o André Malraux, antigo companheiro de Trotsky na guerra da Espanha, para o Ministério da Cultura.”

Recentemente, ressurgiu uma corrente fundamentalista/irredentista, que revisita e reactualiza o discurso do período revolucionário reinvocando agora a problemática da escravatura (que há muito tinha desaparecido do imaginário cabo-verdiano, embora revisitado depois desde a Independência). Ela, para além de evocar a clássica recriminação anticolonial, acusando a elite colonial de ser aliada do colonialismo e do regime salazarista, vai mais longe e acusa-a de ser o principal mentor de um sistema que vigorava em Cabo Verde e que é caracterizada de racista por subjugar e reprimir as raízes africanas do arquipélago. A herança da escravatura em Cabo Verde, que consistia no seu papel como placa giratória do tráfico internacional e mesmo na sua prática no território, envolveria não somente a potência colonial mas também esclavagistas cabo-verdianos (a dita elite) cujo papel era importante se não determinante. Ao levantar esta questão das compensações pelo regime de escravatura em Cabo Verde, que foi abolido em meados do século XIX, está-se a associar, implicitamente, a potência administrante colonial a um possível processo de ressarcimento que não deixará de amplificar e complexificar o âmbito da aplicação dessa Lei da Reconciliação Nacional. Um comentário à notícia (5) exprime esta corrente de opinião: “ … foi, de facto, um grande erro não termos nacionalizado, depois da Independência, todas as terras e empresas dos colonizadores e estrangeiros, em Cabo Verde, como fizeram os nossos manos palopianos… Conceder, de mãos beijadas, grande parte do território nacional ou pagar milhões de dólares ou euros aos herdeiros dos antigos colonizadores e dos estrangeiros, isto é um assunto muito sério, isto é hipotecar ou perder, de vez, a própria INDEPENDÊNCIA NACIONAL, o que nos custou muito caro, o nosso orgulho maior como POVO INDEPENDENTE. Se for possível lutar outra vez, vamos lutar. Vamos lutar pela nossa SEGUNDA INDEPENDÊNCIA. Que as lições de CABRAL nos sirvam de exemplos; que as acções dos nossos bravos e verdadeiros combatentes da Pátria nos sirvam de inspiração“ ou “Os deputados aprovam leis que prejudicam, Cabo Verde e favorecem o colonialismo…”  ou “De acordo. Primeiro paguem a Escravatura de Negros vendidos como alimárias, depois de nativos humilhados, sem escolas e sem hospitais, o País herdado sem sentinas, nem latrinas, nem estradas, nem coisas mais elementares de saúde publica…
Mas convenhamos que esta questão da Escravatura poderá extravasar o horizonte geográfico e temporal da sua incidência (Portugal e Cabo Verde), tornando-se numa questão global e permanente. Todavia, embora se perceba esta argumentação, este assunto não pode ser debatido de ânimo leve e no quadro da Lei em questão, pois não é lícito Cabo Verde ter de assumir o protagonismo de uma tal cruzada, sobretudo quando os países africanos deixaram há muito tempo cair o pan-africanismo revolucionário e reivindicativo e existem ainda alguns países que praticam escravatura. Ou não fosse precisamente através do Tráfico de Escravos que se deu à luz nas nossas ilhas o actual povo cabo-verdiano em toda a sua riqueza e diversidade.

 Do outro quadrante, os que analisam a problemática de um ponto de vista técnico-político estrito, destacando os novos valores democráticos ao abrigo da actual ordem jurídica e constitucional democrática e de direitos do Homem, interrogam-se se é lícito falar de ‘amnistia’ quando as vítimas não cometeram crime político algum comprovado e demonstrado, para além de simplesmente terem sido os perfeitos anti-heróis da situação revolucionária e de estarem na oposição. Nesta perspectiva, Armindo Ferreira, num artigo publicado há anos (9) em que defende “RECONCILIAÇÃO, SIM! INDULTO OU AMNISTIA, NÃO!”, escreve: “Ao tentar escamotear a realidade, com a palavra escrita, o Governo fez um mau registo histórico e, por via disto, prestou um péssimo serviço à História. O Governo não pode pensar que no processo é apenas mediador, como pretende. É parte. Como o foi nas condecorações. Não pode por isso haver reconciliação se ele insiste em condecorar, e tratar como heróis, os responsáveis directos pelos acontecimentos de 1974/75, que diz condenar, e fazer das suas vítimas criminosos que ora pretende artificiosa e sub-repticiamente “indultar ou amnistiar”….”Fazer a reconciliação apenas reparando materialmente os prejuízos causados é negar a sua essência. A vítima não está à procura de dádivas ou esmolas do Governo em troca da sua honra ferida. Ela quer justiça! A reparação implica também a restituição da dignidade ultrajada. E isto só se consegue com humildade e nunca com arrogância e sobranceria como a manifestada no título do artigo 3º da proposta de lei: “Reabilitação e reinserção na comunidade política”. Talvez, por descuido, não se tenha feito a análise sociológica dos vocábulos “reabilitação” e “reinserção”. Não é abonatória para vítimas… possivelmente se aplica bem a criminosos, a marginais!” Efectivamente, pergunto, como é possível ter o descaso de pretender indultar/amnistiar inocentes e vítimas? “…. “É assim que, p.e., no ponto 2 dessa “Exposição de motivos”, escreve: Em 1974/75, alguns cidadãos, e de entre eles, funcionários públicos, foram internados no Campo de Chão, e depois expatriados para Portugal, com o fundamento de que constituíam perigo para o processo de descolonização.” (O sublinhado é meu)….. Chamar internamento ao encarceramento de um punhado de compatriotas, durante meses, sem culpa formada, e rebaptizar o Campo de Concentração do Tarrafal como Campo de (internamento) de Chão não é retórica  ou figura de estilo, mas sim uma total desconsideração e desrespeito pela nossa História  e por todos aqueles, sem excepção, que por lá passaram e sofreram na alma e no corpo os efeitos da prepotência, da intolerância e da perseguição. É uma tentativa pouco séria e pouco elegante de reescrever a História.” …” Ainda no mesmo artigo – o 3º – há um exercício do absurdo que é o de nivelar as monstruosidades, os desmandos e as tropelias de 1974/75 com as acções praticadas, “na instalação e consolidação da democracia pluralista”, isto é, de acordo com as próprias palavras do Governo, no exercício da democracia. Não é apenas o que popularmente se diz juntar alhos com bugalhos mas sobretudo procurar a quadratura do círculo. Mas para haver reconciliação, insisto, tem que haver um pedido formal de desculpa. O arrependimento. O mea culpa! O Governo que em nome do Estado faz condecorações para acontecimentos de há trinta anos, em nome desse mesmo Estado tem legitimidade e o dever de pedir formalmente desculpas por excessos cometidos nessa mesma altura. É uma questão de coerência. E o PAICV que se diz herdeiro dos activos do PAIGC deve igualmente assumir a herança dos seus passivos. Noblesse oblige!”
   Assim, segundo esta linha de pensamento, não bastam eventuais indemnizações a expropriados da Independência, impõe-se um pedido de desculpas por parte do Estado, mas poderá ser o precedente para que todos os que se consideram vítimas e lesados materialmente e moralmente do processo de descolonização em Cabo Verde e do processo revolucionário subsequente, exijam, para além das devidas desculpas políticas, compensações e indemnizações.
Sobre este assunto Arsénio de Pina afirma (1,2): “Só muito mais tarde é que me fui apercebendo da realidade, mas sem acreditar que os governantes principais estivessem ao corrente das anomalias. Foi a partir daí que botei a mão na pena, embora mansamente e sem meter a boca no trombone para não ferir eventuais inocentes. O artigo mais revulsivo foi produzido em 1988 e levou seis meses a ser publicado no Voz Di Povo, e só o foi por ter ameaçado publicá-lo noTerra Nova, onde falava da nossa socialização da Medicina e da necessidade de se entrar no multipartidarismo. Constou-me que esse número do jornal se esgotou na Praia e houve gente a fazer fotocópias do mesmo”. Embora condenando os actos delituosos do período revolucionário, Arsénio de Pina não acredita nas boas intenções da UDC “por os seus dirigentes terem estado conluiados com o governo colonial e haver risco neocolonial pelas posições defendidas por Spínola, e a UPIC não dispor de força para levar avante a sua política. Somente o PAIGC, no contexto revolucionário que se vivia no mundo lusófono, poderia, como fez, levar à independência, e teria tido melhores resultados, causando menos sofrimento a muito boa gente (que classifiquei num artigo às direitas que foi considerada da direita) que foi ofendida, caluniada, forçada a abandonar o país, ou presa por simplesmente discordar da sua política, se os seus dirigentes não se tivessem empolado de arrogância e tornado intratáveis, impedindo-os de ouvir a opinião de pessoas competentes, experientes e idóneas que não militavam no Partido. A infalibilidade, somente papal, e mesmo esta, embora limitada a assuntos de fé, contestável.”

Ou seja, perante os traumas do período de transformação ainda em curso, existem na população cabo-verdiana vários ressentimentos antagónicos e problemas do foro psico-político que só podem ser resolvidos com uma serena reflexão e a aceitação da irreversibilidade das consequências de um processo histórico revolucionário que ultrapassou tudo e todos, e por fim o Reconhecimento, o Perdão e a Reconciliação, ou seja, a Normalização.
É, pois, minha opinião que a problemática aqui em discussão não está minimamente clarificada, sobram ainda muitas pontas soltas para uma cabal compreensão do processo e do papel exercido pelos principais protagonistas. Por outro lado, a questão da Reconciliação merece uma melhor atenção e aprofundamento. Nesse sentido, devia-se constituir uma Comissão Nacional séria e independente, com um mandato claro e objectivo, para se investigar toda a época em causa, analisar arquivos, recolher depoimentos, ouvir os protagonistas ainda vivos, em ordem a apurar os factos e a esclarecer as responsabilidades, porque só assim se contribui para que a História se escreva com verdade e não se confunda com a propaganda política ou com as versões desencontradas dos diferentes protagonistas. As conclusões do trabalho dessa Comissão deverão ser do conhecimento público, para que nenhuma dúvida paire sobre a linearidade da intenção de abrir caminho para uma verdadeira Reconciliação Nacional. É hora de virar definitivamente esta página dolorosa, repensar Cabo Verde e unir toda a nação cabo-verdiana em torno dos difíceis desafios do futuro: rumo às necessárias e inadiáveis reformas de que carece o país.

Janeiro de 2015                             
José Fortes Lopes

Bibliografia:
1-Da Independência à 1ª Via: 1974, a tomada do Poder pelo PAIGC e a fuga da Elite Cabo-verdiana
2-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/02/7754-o-lugar-da-historia-2.html#comment-form
3- http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106666&ak=1
4-GUINÉ – BISSAU E CABO VERDE: DA UNIDADE À SEPARAÇÃO Por Antero da Conceição Monteiro Fernandes PORTO 2007;http://pt.slideshare.net/barrosjonatas/guine-bissau-e-cabo-verde-da-unidade-a-separacao

5- Santo Antão: Ribeira Grande celebra 20 de Janeiro com homenagem aos combatentes do Grupo de Moselle

http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106592&ak=1#ancre_comm

6-http://www.familcarcabral.org.cv/index.php?option=com_content&view=article&id=293:historia-de-jaime-mota&catid=131&Itemid=567

7-http://rtc.cv/index.php?paginas=45&id_cod=38148

8-Tricontinentale, Quand Che Guevara, Ben Barka, Cabral, Castro et Hô Chi Minh préparaient la révolution mondiale (1964-1968). Roger Faligot; Edition La Découverte

http://www.editionsladecouverte.fr/catalogue/index-Tricontinentale-9782707174079.html

9-http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2015/01/reconciliacao-sim-indulto-ou-amnistia.html
10-http://madeincaboverde.blogspot.pt/2012/03/roberto-duarte-silva-quimico-natural-de.html
11-http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/371892.html
12- http://arrozcatum.blogspot.pt/2014/05/6878-crioulos-ilustres.html


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