sábado, 6 de julho de 2019



Quando o PAIGC Achou/Redescobriu S. Vicente:  

2ª Parte-A decadência de S. Vicente: o triunfo da ruralidade, o retorno ao passado, a crise de valores e o lento apagamento do farol civilizacional do arquipélago  (Janeiro de 2015)

Quando nos inícios dos anos 60 Portugal começou a tropeçar em África, estava em gestação o prenúncio de uma ‘revolução’ em Cabo Verde e teria como palco pela 2ª vez a ilha de S. Vicente com a adesão total aos ideais do 25 de Abril, ao PAIGC e aos ideais da Independência: ao Redescobrir o S. Vicente revolucionário o PAIGC achou Cabo Verde.
Esta revolução terá todavia feito a longo prazo (40 anos) uma vítima colateral, o derrube completo da ilha, de todos os valores que a caracterizavam: liberalismo, cosmopolitismo, abertura de espírito etc. O regime instalado em Cabo Verde embora de cariz justicialista e mesmo messiânico, era incompatível com uma sociedade de valores livres e liberais, incarnada em S. Vicente, por razões que desenvolvidas mais a frente.
Na realidade é o advento do Estado Novo conservador em 1922 e a sua longevidade de 50 anos aliada ao lento decair da influência e da presença inglesa que marcam uma segunda revolução da ilha e no arquipélago, representando agora um rude golpe na economia e na trajectória que parecia imparável. O conservadorismo do regime salazarista e a ausência de perspectivas económicas, constituíram o primeiro desencontro da ilha com a história. Punha-se fim a uma experiência de cerca de um século e o ‘Cabá Carvon’ engendrou  ‘Cabá Vapor’, entrava-se num novo ciclo, numa nova era caracterizada pela emigração em larga escala (para os que mesmo assim podiam emigrar), ao passo que para a população residente as perspectivas ficavam cada vez mais sombrias, sem trabalho empobrecia-se irreversivelmente. O imobilismo do Estado Novo contrastou com o dinamismo francês na vizinha Dakar e o espanhol nas Canárias, que atempadamente souberam e atrair para si o trafego marítimo internacional. S. Vicente e Cabo Verde ficariam à espera por novos ventos que não tardariam de soprar.
O 25 de Abril e o 5 de Julho constituíram momentos revolucionários nunca dantes vividos na ilha, em que os mindelense liderados pela juventude estudantil e a pequena burguesia local, participaram efusivamente numa ampla movimentação social só comparada com as manifestações religiosas que no passado ocorriam. Estes momentos marcaram início de uma nova era no arquipélago, uma ruptura com o passado sufocante associado ao Estado Novo conservador e colonial. Desta vez o povo mindelense participara numa revolução pacífica, foi o principal actor dando o seu corpo inteiro à uma justa causa. O povo da ilha desafiou a sociedade de então, dançou, cantou ruidosamente com todas as suas energias, manifestou, amou livremente, enfim fez tudo o que era proibido, tornara-se proibido proibir. Nada seria como dantes na ilha. Teoricamente entrava-se na era liberdade total de expressão de pensamento e de criação, de liberdade nacional, de progresso material e espiritual, pão e trabalho para todos, brevemente ver-se-iam águas a correr pelas levadas como prometiam as canções revolucionárias. Mas como todos sabemos nada disto se passou, e a festa foi de pouca dura, ou melhor uma ‘festa’ continua ao ritmos dos festivais de um dia que animam uma população em desnorte de valores, sem trabalho, nem futuro, em que o que resta de esperança na ilha rima com  o passado e com a palavra mítica e intraduzível palavra ‘sabe’ : ‘Passá Sabe’, ‘Sabura’, ‘Depôs de Sabe Morrê Ca Nada’ ou ‘Soncente Eh Sabe…’.  
Com o 25 de Abril o PAIGC entra logo em cena, partido antes desconhecida pela esmagadora maioria da população cabo-verdiana, é levado aos píncaros pelos mindelenses, ao mesmo tempo que se marginalizaram forças autóctones entretanto nascidas do 25 de Abril assim com as figuras consideradas proeminentes no arquipélago, por serem na época consideradas ilegítimas (o PAIGC ganhou toda a legitimidade histórica por ter combatido Portugal na Guiné em nome de Cabo Verde) negociando assim unilateralmente com Portugal a transferência de poderes, sem que as população e as forças politicas autóctones fossem tidas ou achadas no processo negocial e no desenho do país independente. O PAIGC tornou-se num ápice força dirigente de Cabo Verde, a luz e o guia do povo de modo que o governo. Estavam lançados os dados em Cabo Verde e o seu futuro ia depender desta trajectória inicial.
O programa do PAIGC em 1975 não se anunciava de todo amigável para ilha, nem para Cabo Verde, deixando muita apreensão no ar: nacionalizações (?), restrições, racionamentos, economia centralizada e estatizada, colectivismo, reforma agrária (?), partido único e delito de opinião a quem tivesse ideias contrárias ao poder. Pior o regime que se pretendeu ter nascido nas matas da Guiné, forjado na luta de libertação, que envolveu essencialmente camponeses, pretendia constituir a sua principal base de apoio nos campos (?) de Cabo Verde, ou seja na ilha mais populosa do arquipélago, Santiago. Esta opção representaria o triunfo da ruralidade, o retorno ao passado, muito marcado pelas teses revolucionárias em voga no 3º Mundo. Em segundo lugar pretendia-se uma ruptura total com o passado colonial, extirpando aquilo que denominavam de sequelas do colonialismo português em Cabo Verde e por fim construir um homem novo limpo das mesmas sequelas. Nesta corrida S. Vicente estava mal posicionada pois de ilha revolucionária que adoptou incondicionalmente o programa do Paigc, estaria corrompida espiritualmente, sendo mesma vista por alguns como filha bastarda do colonialismo. Lançou-se deliberadamente o estigma de a ilha ter sido aliada do colonialismo português. Inicia-se assim a longa marcha rumo ao Centralismo em Cabo Verde na Praia, uma opção declaradamente assumida pelos poderes. É nesta perspectiva que uma ilha como S. Vicente não foi comtemplada com uma única representação do Estado, Praia de Bote ficou mais uma vez a ver navios passar: ao mesmo tempo que perdia massa crítica, o dinheiro deixava de circular na ilha. De ilha nobre, culta, intelectual e com elevados padrões de valores morais e civilizacionais, participativa confiante no futuro radiante prometido, transformou-se em ilha abandona, deserta, descrente, sem trabalho, onde nada acontece para além de alguns festivais e o carnaval inicialmente improvisados, depois institucionalizados. O ‘Passá Sabe’ tornou o leitmotiv do povo e a infindável farra que se iniciou no 25 de Abril tornou parte da decoração. Enquanto isso assiste-se impávido e sereno à descaracterização rampante da nossa linda cidade e alguns mindelenses embriagados declararam ‘Tud Pa Tchom’ ao nosso lindo património arquitectónico, enquanto grupo militam para a requalificação do património e monumentos históricos, outros modernizadores e demagogos prometem atirar ‘o Velho’ de Cabo Verde para o Lixo da História, usam palavreado neo-revolucionário, apelidando de Pardieiros Imundos, Refúgios de Drogados ou Lixeira Degradantes da Cidade do Mindelo, a antiga Casa Adriana o Eden Park e talvez Liceu Gil Eanes, o Fortim e tantos outros edifícos deixados intencionalmente cair em ruina.
Segundo uma absurda tese económica em voga no Cabo Verde, S. Vicente não se devia desenvolver mais, tinha que parar no tempo (imaginem) para que as outras partes do país chegassem ao seu nível de ‘desenvolvimento’. O objectivo desta política justicialista seria, segundo os mentores, contrariar a tendência colonial que alegam ter consistido em apostar em S. Vicente, pelo que esta ilha devia ser punida durante décadas. Para fazer justiça re-investiu-se tudo numa ilha e criou-seuma nova burguesia nacional na mesma ilha. Este efeito nunca mais parou, e a tendência de transferia de recursos para a nova capital foi continuamente prosseguida, o que descapitalizou humanamente e economicamente o resto do país, explicando grande parte a situação de decadência que encontramos na ilha e no resto de Cabo Verde. No preciso momento em que existe um discurso de recuperação da ilha, fruto de inúmeras pressões da sociedade civil para que se desenvolva políticas para travar o declínio de S. Vicente, prossegue a hemorragia humana da ilha e o centralismo inexorável do país: todo o centro político e económico está situado ou tem tendência a centrar-se na capital, todos os quadros mais competentes ou recém-formados, todas as profissões, todos os projectos, só tem um destino, a capital, transformando Santiago a única ilha onde os investimentos são mais viáveis, onde circula capital e dinheiro, onde há poder de compra, onde se criam empregos, onde há perspectiva de ascensão na carreira etc. Poucos países no mundo apresentam tais características. Se isto não resulta de um plano conspirativo, então pode-se afirmar que os regimes e as elites que governaram o país não têm noção e sensibilidade para administrar país, pelo que nunca farão nada para contrariar os efeitos perversos desta política injusta e absurda.
Tirando estas considerações, pode-se mesmo assim argumentar que se o modelo de desenvolvimento, centralizado, estatizado pudesse ser sustentável numa legislatura com o intuito equilibrar as contas do país recém-independente, a sua persistência a sua duração no tempo, para além do prazo, foi um contrassenso económico, um erro grave que está pagando caro o resto do país.
Mas esta política não foi implantada sem resistências. Os primeiros sinais preocupantes que a economia da ilha de S. Vicente (que era o centro económico do arquipélago) entrava em declínio foram emitidos em 1977 por uma sindicância de comerciantes mindelense e enviados ao regime (que acolheu mal essa manifestação). As políticas de austeridade, racionamento, colectivismo e centralismo na Praia, começavam a asfixiar a ilha e por ricochete o resto de Cabo Verde. Todo o potencial da ilha estava morrendo de inanição a olhos vistos, sem alternativas possíveis no quadro dos fundamentos em que se assentavam o regime. Exigia-se um NEP tal como Lenine na Rússia nos anos 20 do século passado. Mesmo a própria Diáspora que podia ser o maior parceiro do desenvolvimento do país foi alienada em 1975 posta de costa virada ao país. Iniciou-se a crispação, a revolta na ilha e o início do sentimento de oposição: nascia em S. Vicente a contestação ao regime que se alastrou à Diáspora. A resposta não se fez esperar, numa onda de repressão sem precedentes abateu sobre a ilha. Não fosse a esperança na Perestroika de Gorbatchev o fim do Muro de Berlim e a alternância nascida 1992, o arquipélago estaria ainda mergulhado sistema de partido único sem perspectivas de saídas possíveis.
Com os sinais de abertura no Mundo e em Cabo Verde, S. Vicente podia de novo acreditar no futuro na medida em que a democracia seria a panaceia, o remédio para os seus males. Nada mais falso! Hélas, por detrás da Democracia emergia um novo fenómeno em Cabo Verde, que progredia silenciosamente por dentro dos partidos, o Fundamentalismo Santiaguense, que eclodiu no início do milénio.
Chegou a hora de Santiago subjugada esquecida, oprimida, a hora da interioridade de Cabo Verde, do outro Cabo Verde. Tenta-se voltar aos Fundamentos de Cabo Verde e consagra-se a Cidade Velha século XV. Triunfava a da maioria dos números que curiosamente em cabo Verde não é da maioria sociológica, o confronto duas realidades bem diferentes no arquipélago. No espaço de uma geração os Fundamentalistas estavam convencidos de terem realizado uma revolução sociológica em Cabo Verde, de ter nascido enfim um homem novo com raiz fincada em Santiago. À ‘Exuberância Irracional de Santiago’ condenava o resto de Cabo Verde a transformar-se em paisagem. Estava-se assim decidido construir a todo o custo um utópico Estado Nação à imagem da maior ilha do arquipélago. Os problemas recomeçavam para S. Vicente!
                                                                             
José Fortes Lopes


Bibliografia
JOSÉ FORTES LOPES Quando um filho de S. Nicolau, Baltazar Lopes da Silva, poderia ter jogado um papel político proeminente no Cabo Verde do pós-25 de Abril e do pós-Independência.
JOSÉ FORTES LOPES: Pensando Cabo Verde de outra maneira - Quando as Reformas Democráticas e o Conceito Plural de Cabo Verde deram razão a Baltazar Lopes da Silvahttp://www.jsn.com.cv/index.php/opiniao/93-jose-fortes-lopes-pensando-cabo-verde-de-outra-maneira-quando-as-reformas-democraticas-e-o-conceito-plural-de-cabo-verde-deram-razao-a-baltazar-lopes-da-silva. Jornal de São Nicolau, 15Outubro de 2013.


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