2ª
Parte- Da Independência à 1ª Via: o
longo caminho da normalização (janeiro de 2015)
É comum afirmar-se que Cabo
Verde é um país que nasceu de um sonho utópico. Na realidade, reza a história
que o sonho de uma nação independente parece ter sido acalentado desde o século
XIX por uma elite cabo-verdiana proto-nacionalista, influenciada pela
independência do Brasil, embora esbarrando no modus operandi para a sua
conquita, os meios para a sua concretização e viabilidade, para um arquipélago desprovido
de qualquer recurso. Inegavelmente, foi Amilcar Cabral e o partido que fundou em
terras da Guiné, que permitiram concretizar o sonho da independência de Cabo
Verde. Mesmo assim, a génese deste movimento não é alheia às reivindicações
nacionalistas,/independentistas dos anos 60 nascidas nos países africanos,
locais onde radicava uma importante comunidade emigrante, como é o caso do Senegal,
uma colónia francesa bastante desenvolvida em contraste com Cabo Verde. É claro que embora a Guiné e Cabo
Verde atingissem a independência em 1974 e 1975, concretizando o sonho de
Amilcar Cabral, e hoje dois estados soberanos, o cerne do projecto inicial
inspirado pelo líder do movimento consistia numa unidade orgânica das duas
nações (a Unidade Guiné Cabo Verde).
Não se pode esquecer que
esta ideia inspirava-se no pan-africanismo, uma ideia muito forte nascida nos
meios nacionalistas africanos dos anos 60 e que visava o projecto de integração
africana, como vinha acontecendo um pouco por todo o Mundo (Europa, América)
com a criação de várias estruturas de integração supranacionais. Todavia, a Unidade
Guiné-Cabo Verde não deixava de ser uma das principais fraquezas, o calcanhar
de Aquiles do projecto político do PAIGC: a razão da própria existência deste
partido supranacional acabava por ser o germe da destruição do mesmo. As
dificuldades conceptuais e práticas na implementação do projecto da Unidade
Guiné-Cabo Verde, durante a luta de libertação na Guiné, não deixou de ser
admiravelmente explorado e combatido pelas autoridades coloniais portuguesas,
com argumentos, hoje incontestáveis, sobre a sua inviabilidade concreta e
prática. O facto de Portugal não pretender abrir mão do arquipélago de Cabo
Verde, dada a sua importante posição geoestratégica, era a principal determinante
da sua argumentação, e a história dos acontecimentos que se seguiram
encarregar-se-iam de validar as suas razões. Os mesmos argumentos seriam
retomados pelos detractores do PAIGC, no pós-25 de Abril, acabando por constituir
o principal pomo de discórdia entre os protagonistas no terreno em Cabo Verde,
no período de 1974/1975, o que levou tanta a gente para a prisão, sendo expropriada,
torturada e forçada ao exílio. Este mesmo projecto seria a razão do Golpe de
Estado de 1981 na Guiné-Bissau, pondo termo definitivamente a qualquer
pretensão nesta matéria. Paradoxalmente, Cabo Verde, que é hoje um Estado de
Direito e respeitador das diversas convenções internacionais, vê-se hoje
obrigado a uma Lei da Reconciliação Nacional e a pagar “avultadas
indemnizações” a expropriados da independência (3). Pela leitura rápida da
notícia pode-se perguntar:
E os crimes
cometidos de 1974 a 1991, passarão sob silêncio desta lei? Quem são os
responsáveis pelos crimes cometidos há precisamente 40 anos? São condenados e/ou
amnistiados? E a longa lista de cidadãos que foram perseguidos, difamados e
escorraçados de Cabo Verde ‘por da ca aquela palha’? São re-habilitados? E a
situação dos descendentes dos condenados a trabalho forçado em S Tomé que
ficaram abandonados nesta ilha tropical, vítimas colaterais de uma
descolonização feita à pressa? Os enormes prejuízos aos cabo-verdianos, aos
cidadãos comuns, de uma maneira geral, aos emigrantes 'embarcadistas' não são
mencionados. Os prejuízos matérias e psicológicos causados à minha ilha natal e
ao resto de Cabo Verde.
Estas questões
veêm na mesma linha de pensamento de Armindo Ferreira num artigo publicado há anos
em que defende “RECONCILIAÇÃO, SIM! INDULTO
OU AMNISTIA, NÃO!” em que já escrevia: “Ao tentar escamotear a realidade,
com a palavra escrita, o Governo fez um mau registo histórico e, por via disto,
prestou um péssimo serviço à História. O Governo não pode pensar que no
processo é apenas mediador, como pretende. É parte. Como o foi nas
condecorações. Não pode por isso haver reconciliação se ele insiste em
condecorar, e tratar como heróis, os responsáveis directos pelos acontecimentos
de 1974/75, que diz condenar, e fazer das suas vítimas criminosos que ora
pretende artificiosa e sub-repticiamente “indultar ou amnistiar”….”Fazer a
reconciliação apenas reparando materialmente os prejuízos causados é negar a
sua essência. A vítima não está a procura de dádivas ou esmolas do Governo em
troca da sua honra ferida. Ela quer justiça! A reparação implica também a
restituição da dignidade ultrajada. E isto só se consegue com humildade e nunca
com arrogância e sobranceria como a manifestada no título do artigo 3º da
proposta de lei: “Reabilitação e reinserção na comunidade política”.
Talvez, por descuido, não se tenha feito a análise sociológica dos vocábulos
“reabilitação” e “reinserção”. Não é abonatória para vítimas… possivelmente se
aplica bem a criminosos, a marginais!” Efectivamente, pergunto, como é possível
ter o descaso de pretender indultar/amnistiar inocentes e vítimas? Estamos em
plena hipocrisia!!
Ainda sobre
este assunto Adriano Miranda escreveu como comentário (4) “Imaginem,
“indultar”, “amnistiar” e “reinserir”, como então se disse com todas as letras
e sem se dar conta do despautério. É caso para se dizer que o corifeu subiu ao
retábulo da sua inconsciência e colocou a boca no trombone, mas sem se dar
conta de que as notas saídas estavam desafinadas e dissonantes com a verdade e
a moral. Isto só permite concluir, e peço desculpas pelo possível exagero, que
a abertura democrática de 1990 ainda não tinha logrado converter as mentes para
os princípios e as práticas da verdade límpida.”” Como reintegrar este
sombrio período da História de Cabo Verde na história oficial? Estas são as
questões deixadas à classe políticas e aos historiadores.
Mas o simples facto de notícia vir à luz, abre a uma
possibilidade de um despertar de consciência de muitos cabo-verdianos,
sobretudo a nova geração que não viveu o período conturbado, entorpecidos pela
desinformação e a propaganda. Cria a sobretudo possibilidade de abrir o
‘dossier’ dos acontecimentos de 1974/75 e de outros episódios da 1ª República,
pois uma vez que a porta está entreaberta, deve-se escancará-la. Mas não deixa
de ser sobretudo uma competente bofetada a todos os ‘revolucionários’ que
conscientemente ou inconscientemente praticaram actos condenáveis, e que vão continuara
incólumes, embora ser obrigados a engolir mais este sapo, o da ‘realpolitik’.
A partir da
Independência em 5 de Julho de 1975, os dois países divergir-se-iam inexorável e
irreversivelmente da linha traçada por Amilcar Cabral. Tal desfecho era já
previsível e por isso só poderá ter surpreendido os lunáticos, pois os dois
estados vinham denunciando indícios claros da inviabilidade do projecto utópico
e contranatura, concebido por quem fez descaso da distinta natureza idiossincrática
entre os dois povos.
O que mais restará do
núcleo duro da ideologia de Cabral em Cabo Verde? O que restará da ideia,
respeitável mas utópica, da sociedade justa, sem classes e livre da exploração
do homem pelo homem, inspirada nos ideais socialismo do século XX? Nada! Mas,
felizmente para Cabral, não foi somente na Guiné e em Cabo Verde que este
ideário não foi concretizado. Um pouco por todo o Mundo esse ideário tornou-se
uma miragem. Ou não foram os próprios comunistas renovadores e os socialistas uma
vez no poder (ao longo do século XX) que optaram pela gestão social do
capitalismo, demostrando a impossibilidade
de cumprir esse ideal num mundo dominado pelas relações capitalistas, em
que a procura de vantagens competitivas entre as nações e jogos do mercado e do
capital livres é prioritário face a qualquer questão ideológica. Os interesses de Estado e a
competição internacional são, pois, uma camisa-de-forças que se sobrepõe às
ideologias. Pois, se na ex-URSS, a crueza do capitalismo de estado, ou o socialismo
real, escondia a realidade da Utopia, foi Deng Xiao Ping na China, ao querer
introduzir magicamente doses de Capitalismo no Comunismo, que num estalar de
dedos provocou a queda da ideologia que suportava os estados ditos socialistas
no Mundo, provocando por efeito dominó a queda do bloco ‘socialista’ europeu. Paradoxalmente,
Deng Xiao Ping acreditava na possibilidade da coexistência do socialismo num
mundo dominado pela economia de mercado.
No caso de Cabo Verde, não
obstante a ideologia proclamada pelos seguidores de Amílcar Cabral e o facto de
o PAIGC/PAICV ser o partido de governo, exceptuando uma legislatura do MpD, o
que se tem visto é uma crescente desigualdade social no país, com o fosso entre
os ricos e os pobres a aumentar desmesuradamente, gerando situações críticas e
sem aparente solução. A situação é paradoxal, pois trata-se de uma economia de
mercado moldada pela realidade comezinha do país, e que espelha o pior dos
capitalismos, o controlado pelo Estado, onde impera o clube de amigos e
camaradas, com regras liberais aplicadas quando lhes convém, à discrição, e
muitas vezes em detrimento do cidadão. Para além disso, o PAICV, partido herdeiro
do PAIGC, para se perpetuar no poder e adaptar aos novos ventos, mudou,
rejuvenesceu, vestiu a camisola ideológica do MPD, liberalizou-se, surfando na
vaga dos novos tempos da democracia e da mundialização, tirando assim muito dos
argumentos à oposição, que ficou sem bússola e aparentemente sem programa
credível depois de perder o poder em 2000.
Janeiro de 2015
José Fortes Lopes
1-Ondina Ferreira: Identidade cabo-verdiana? Uma falsa questão no século XXI?
... Ou manobra de diversão resultado da nossa pouca "destreza"
cultural?
http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2014/10/identidade-cabo-verdiana-uma-falsa.html
2-Quando o PAIGC Achou/Redescobriu S. Vicente. 2.ª Parte - A decadência de S. Vicente: o
triunfo da ruralidade, o retorno ao passado e a crise de valores, http://mindelosempre.blogspot.pt/2014/01/0696-quando-o-paigc-achouredescobriu-s.html
3-
http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106666&ak=1
4-http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2015/01/reconciliacao-sim-indulto-ou-amnistia.html
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