sábado, 6 de julho de 2019


2ª Parte- Da  Independência à 1ª Via: o longo caminho da normalização (janeiro de 2015)
É comum afirmar-se que Cabo Verde é um país que nasceu de um sonho utópico. Na realidade, reza a história que o sonho de uma nação independente parece ter sido acalentado desde o século XIX por uma elite cabo-verdiana proto-nacionalista, influenciada pela independência do Brasil, embora esbarrando no modus operandi para a sua conquita, os meios para a sua concretização e viabilidade, para um arquipélago desprovido de qualquer recurso. Inegavelmente, foi Amilcar Cabral e o partido que fundou em terras da Guiné, que permitiram concretizar o sonho da independência de Cabo Verde. Mesmo assim, a génese deste movimento não é alheia às reivindicações nacionalistas,/independentistas dos anos 60 nascidas nos países africanos, locais onde radicava uma importante comunidade emigrante, como é o caso do Senegal, uma colónia francesa bastante desenvolvida em contraste com Cabo Verde. É claro que embora a Guiné e Cabo Verde atingissem a independência em 1974 e 1975, concretizando o sonho de Amilcar Cabral, e hoje dois estados soberanos, o cerne do projecto inicial inspirado pelo líder do movimento consistia numa unidade orgânica das duas nações (a Unidade Guiné Cabo Verde).
Não se pode esquecer que esta ideia inspirava-se no pan-africanismo, uma ideia muito forte nascida nos meios nacionalistas africanos dos anos 60 e que visava o projecto de integração africana, como vinha acontecendo um pouco por todo o Mundo (Europa, América) com a criação de várias estruturas de integração supranacionais. Todavia, a Unidade Guiné-Cabo Verde não deixava de ser uma das principais fraquezas, o calcanhar de Aquiles do projecto político do PAIGC: a razão da própria existência deste partido supranacional acabava por ser o germe da destruição do mesmo. As dificuldades conceptuais e práticas na implementação do projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde, durante a luta de libertação na Guiné, não deixou de ser admiravelmente explorado e combatido pelas autoridades coloniais portuguesas, com argumentos, hoje incontestáveis, sobre a sua inviabilidade concreta e prática. O facto de Portugal não pretender abrir mão do arquipélago de Cabo Verde, dada a sua importante posição geoestratégica, era a principal determinante da sua argumentação, e a história dos acontecimentos que se seguiram encarregar-se-iam de validar as suas razões. Os mesmos argumentos seriam retomados pelos detractores do PAIGC, no pós-25 de Abril, acabando por constituir o principal pomo de discórdia entre os protagonistas no terreno em Cabo Verde, no período de 1974/1975, o que levou tanta a gente para a prisão, sendo expropriada, torturada e forçada ao exílio. Este mesmo projecto seria a razão do Golpe de Estado de 1981 na Guiné-Bissau, pondo termo definitivamente a qualquer pretensão nesta matéria. Paradoxalmente, Cabo Verde, que é hoje um Estado de Direito e respeitador das diversas convenções internacionais, vê-se hoje obrigado a uma Lei da Reconciliação Nacional e a pagar “avultadas indemnizações” a expropriados da independência (3). Pela leitura rápida da notícia pode-se perguntar: 
E os crimes cometidos de 1974 a 1991, passarão sob silêncio desta lei? Quem são os responsáveis pelos crimes cometidos há precisamente 40 anos? São condenados e/ou amnistiados? E a longa lista de cidadãos que foram perseguidos, difamados e escorraçados de Cabo Verde ‘por da ca aquela palha’? São re-habilitados? E a situação dos descendentes dos condenados a trabalho forçado em S Tomé que ficaram abandonados nesta ilha tropical, vítimas colaterais de uma descolonização feita à pressa? Os enormes prejuízos aos cabo-verdianos, aos cidadãos comuns, de uma maneira geral, aos emigrantes 'embarcadistas' não são mencionados. Os prejuízos matérias e psicológicos causados à minha ilha natal e ao resto de Cabo Verde.
Estas questões veêm na mesma linha de pensamento de Armindo Ferreira num artigo publicado há anos em que defende “RECONCILIAÇÃO, SIM! INDULTO OU AMNISTIA, NÃO!” em que já escrevia: “Ao tentar escamotear a realidade, com a palavra escrita, o Governo fez um mau registo histórico e, por via disto, prestou um péssimo serviço à História. O Governo não pode pensar que no processo é apenas mediador, como pretende. É parte. Como o foi nas condecorações. Não pode por isso haver reconciliação se ele insiste em condecorar, e tratar como heróis, os responsáveis directos pelos acontecimentos de 1974/75, que diz condenar, e fazer das suas vítimas criminosos que ora pretende artificiosa e sub-repticiamente “indultar ou amnistiar”….”Fazer a reconciliação apenas reparando materialmente os prejuízos causados é negar a sua essência. A vítima não está a procura de dádivas ou esmolas do Governo em troca da sua honra ferida. Ela quer justiça! A reparação implica também a restituição da dignidade ultrajada. E isto só se consegue com humildade e nunca com arrogância e sobranceria como a manifestada no título do artigo 3º da proposta de lei: “Reabilitação e reinserção na comunidade política”. Talvez, por descuido, não se tenha feito a análise sociológica dos vocábulos “reabilitação” e “reinserção”. Não é abonatória para vítimas… possivelmente se aplica bem a criminosos, a marginais!” Efectivamente, pergunto, como é possível ter o descaso de pretender indultar/amnistiar inocentes e vítimas? Estamos em plena hipocrisia!!

 Ainda sobre este assunto Adriano Miranda escreveu como comentário (4) “Imaginem, “indultar”, “amnistiar” e “reinserir”, como então se disse com todas as letras e sem se dar conta do despautério. É caso para se dizer que o corifeu subiu ao retábulo da sua inconsciência e colocou a boca no trombone, mas sem se dar conta de que as notas saídas estavam desafinadas e dissonantes com a verdade e a moral. Isto só permite concluir, e peço desculpas pelo possível exagero, que a abertura democrática de 1990 ainda não tinha logrado converter as mentes para os princípios e as práticas da verdade límpida.”” Como reintegrar este sombrio período da História de Cabo Verde na história oficial? Estas são as questões deixadas à classe políticas e aos historiadores.
Mas o simples facto de notícia vir à luz, abre a uma possibilidade de um despertar de consciência de muitos cabo-verdianos, sobretudo a nova geração que não viveu o período conturbado, entorpecidos pela desinformação e a propaganda. Cria a sobretudo possibilidade de abrir o ‘dossier’ dos acontecimentos de 1974/75 e de outros episódios da 1ª República, pois uma vez que a porta está entreaberta, deve-se escancará-la. Mas não deixa de ser sobretudo uma competente bofetada a todos os ‘revolucionários’ que conscientemente ou inconscientemente praticaram actos condenáveis, e que vão continuara incólumes, embora ser obrigados a engolir mais este sapo, o da ‘realpolitik’.
A partir da Independência em 5 de Julho de 1975, os dois países divergir-se-iam inexorável e irreversivelmente da linha traçada por Amilcar Cabral. Tal desfecho era já previsível e por isso só poderá ter surpreendido os lunáticos, pois os dois estados vinham denunciando indícios claros da inviabilidade do projecto utópico e contranatura, concebido por quem fez descaso da distinta natureza idiossincrática entre os dois povos.
O que mais restará do núcleo duro da ideologia de Cabral em Cabo Verde? O que restará da ideia, respeitável mas utópica, da sociedade justa, sem classes e livre da exploração do homem pelo homem, inspirada nos ideais socialismo do século XX? Nada! Mas, felizmente para Cabral, não foi somente na Guiné e em Cabo Verde que este ideário não foi concretizado. Um pouco por todo o Mundo esse ideário tornou-se uma miragem. Ou não foram os próprios comunistas renovadores e os socialistas uma vez no poder (ao longo do século XX) que optaram pela gestão social do capitalismo, demostrando a impossibilidade de cumprir esse ideal num mundo dominado pelas relações capitalistas, em que a procura de vantagens competitivas entre as nações e jogos do mercado e do capital livres é prioritário face a qualquer questão ideológica. Os interesses de Estado e a competição internacional são, pois, uma camisa-de-forças que se sobrepõe às ideologias. Pois, se na ex-URSS, a crueza do capitalismo de estado, ou o socialismo real, escondia a realidade da Utopia, foi Deng Xiao Ping na China, ao querer introduzir magicamente doses de Capitalismo no Comunismo, que num estalar de dedos provocou a queda da ideologia que suportava os estados ditos socialistas no Mundo, provocando por efeito dominó a queda do bloco ‘socialista’ europeu. Paradoxalmente, Deng Xiao Ping acreditava na possibilidade da coexistência do socialismo num mundo dominado pela economia de mercado.
No caso de Cabo Verde, não obstante a ideologia proclamada pelos seguidores de Amílcar Cabral e o facto de o PAIGC/PAICV ser o partido de governo, exceptuando uma legislatura do MpD, o que se tem visto é uma crescente desigualdade social no país, com o fosso entre os ricos e os pobres a aumentar desmesuradamente, gerando situações críticas e sem aparente solução. A situação é paradoxal, pois trata-se de uma economia de mercado moldada pela realidade comezinha do país, e que espelha o pior dos capitalismos, o controlado pelo Estado, onde impera o clube de amigos e camaradas, com regras liberais aplicadas quando lhes convém, à discrição, e muitas vezes em detrimento do cidadão. Para além disso, o PAICV, partido herdeiro do PAIGC, para se perpetuar no poder e adaptar aos novos ventos, mudou, rejuvenesceu, vestiu a camisola ideológica do MPD, liberalizou-se, surfando na vaga dos novos tempos da democracia e da mundialização, tirando assim muito dos argumentos à oposição, que ficou sem bússola e aparentemente sem programa credível depois de perder o poder em 2000.
Janeiro de 2015                 
José Fortes Lopes

 

1-Ondina Ferreira: Identidade cabo-verdiana? Uma falsa questão no século XXI? ... Ou manobra de diversão resultado da nossa pouca "destreza" cultural?

http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2014/10/identidade-cabo-verdiana-uma-falsa.html
2-Quando o PAIGC Achou/Redescobriu S. Vicente. 2.ª Parte - A decadência de S. Vicente: o triunfo da ruralidade, o retorno ao passado e a crise de valores, http://mindelosempre.blogspot.pt/2014/01/0696-quando-o-paigc-achouredescobriu-s.html
3- http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106666&ak=1
4-http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2015/01/reconciliacao-sim-indulto-ou-amnistia.html

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