sábado, 6 de julho de 2019

Uma adenda ao Post anterior:

No discurso de 5 de Julho o Presidente da República Jorge Carlos Almeida Fonseca recorda que o processo de Regionalização e o combate às assimetrias têm que ser reactivados sob pena de convulsões graves. O Paicv e também o MPD, foram assim colocados perante suas responsabilidades.
É preciso instalar um clima e uma plataforma de diálogo com todas as forças socias e políticas, incluindo os movimentos no sentido de se encontrar novos caminhos para o arquipélago/ país. Os movimentos, nomeadamente, os chamados autonomistas, não podem querer uma coisa e o contrário, e terão que aclarar de uma vez por todas as suas posições e o que pretendem, se querem um diálago verdadeiro sobre a Regionalização/Descentralização e o combate às assimetrias, ou uma perpétua agitação semeando um clima de anarquia. Terão que fazer o seu trabalho de casa e apresentar propostas lisíveis e inteligíveis.
Se o Grupo Sokol quer ser sério e credível terá que aceitar dialogar com outras forças e movimentos aquilo que existe em cima da mesa (ou seja suspenso no Parlamento), o Processo de Regionalização (independentemente de ser do MPD ou do PAICV), quiçá pedir mais autonomia no quadro da Regionalização ou mesmo Regionalização Política. Terão que estudar fazer o trabalho de casa e presentar uma proposta credível, em vez da mão cheia de nada e das reivindicações cada dia contraditórias umas das outras. A pretensão deles de Autonomia à la Sokol senão nada, é puramente utópica, senão inviável.
Por outro lado as forças de bloqueio conservadoras nomeadamente no seio do Paicv e algumas elites gorda sda capital, que sopram na brasa para depois impedir qualquer progresso estão avisados, não poderão continuar a bloquear processo de desanuviamento das tensões socioeconómicas em Cabo Verde, para depois ganharem protagonismo e dividendos ou quiça eleições. Caberá ao Presidente Jorge Carlos Almeida Fonseca ainda antes do fim do seu mandato tentar criar uma Plataforma de diálogo entre os partidos e a sociedade civil no sentido de se avançar com estes dossier pendentes..
Ontem 5 de Julho a ilha de Svicente e a sua cidade Mindelo comemoraram pela 2ª vez a data da Independência com uma manifestação de protesto, protagonizada pelo movimento autonomista Sokol (um grupo regionalista que vinca o termo Autonomia para distinguir do movimento regionalista mais geral). Depois de décadas de letargia a ilha volta a dar cartas em matéria de cidadania, com a sua tradição de ilha central em questões sociais e políticas, exigindo melhor desenvolvimento e mais autonomia, paradoxalmente depois do chumbo da Regionalização em Abril passado.
De notar que as únicas manifestações espontâneas tiveram lugar no perído do 25 de Abril de 1974 a 5 de Julho de 1975, um período de grande efervescência que conduziu o arquipélago à independência.
Com a independência o partido no poder até 1989, PAIGC, só permitia ‘manifestações de massa’ organizadas por ele mesmo, que eram na realidade autênticas missas destinadas à lavagem cerebral.
A ilha tem sido em 200 anos o epicentro das principais transformações sócioeconómicas de Cabo Verde.
Como escrevi há dias, a queda da ilha coincide com a ascensão ao poder pelo Paigc que ocorreu durante meses, entre meados e finais de 1974 até a Independência de 5/7/1975, e que levou a uma autêntica debandada em massa da ilha para a Diáspora e Emigração (fenómeno que ainda hoje perdura, hoje muito direccionado para a capital Praia, já que a organização centralista do país leva à concentração de tudo na capital).
Antes centro económico político e intelectual de Cabo Verde, SVicente definhou-se completamente e hoje dificilmente sobrevive em comparação com o centralismo e a opulência da capital, uma das principais causas dos problemas actuais do arquipélago. S.Vicente é na realidade vítima do atabalhoado processo de ‘Descolonização' que na realidade se deu por terminado em 1977 quando o poder instalado do Paigc desbaratou por completo o remanescente da oposição sediada na ilha.
A ilha Svicente nos primódios da colonização de Cabo Verde era uma ilha de pastagem, mas o seu povoamento tranformou em pouco mais de 200 anos por completo o panorama socio-económico de Cabo Verde.
O Decreto de Dª Maria I que determina o povoamento oficial da ilha de S. Vicente, após o decreto régio de 1781 (Sena Barcellos), no sentido de transformar a ilha no centro do arquipélago, foi uma opção sempre sufocada por forças conservadoras que em cada momento criaram obstáculos diversos (nos artigos linkados explico as razões destas opções por parte de Lisboa).
O decreto de 11 de Junho de 1838, o Marquês de Sá da Bandeira (Barcellos, 2003b:203) determina o nome de Mindelo em memória do desembarque do exército expedicionário de D. Pedro IV nas praias perto da localidade do Mindelo em Portugal, e propõe a sua elevação a categoria de capital logo que as condições assim o permitissem, foi posteriormente reforçado pela portaria de 30 de Junho de 1838 (Barcellos, 2003b:204), que estabeleceu as bases para a sua concretização em porto franco durante 20 anos e a isenção de impostos. Apesar de contar à partida com apenas 340 habitantes, o governador Marinho de Campos defende acerrimamente a ideia de criar uma nova capital para Cabo Verde em torno do Porto Grande. Por decreto ministerial e portaria régia de 11 de Junho de 1838 é autorizada a mudança da capital da Praia para São Vicente. Há, porém, atrasos a impedir a concretização desse acto político, nomeadamente uma grande resistência da parte da elite latifundiária de Santiago, defensores da continuação da capital na Praia, de modo que a transferência acabará por nunca se concretizar.
No início dos anos 70 do século passado, no ‘reinado’ de Marcelo Caetano, Portugal acaba por ceder à pressão (reivindicações justas) da elite influente de Mindelo, e determina oficialmente que SVicente seja o centro efectivo, administrativo e político da Região Norte, Barlavento, conservando a Praia o estatuto de capital de Cabo Verde. É nomeado um governador regional em S. Vicente. Os protestos ilegítimos do PAIGC que via nesta iniciativa uma manobra de divisão, uma opção contradizendo ainda mais as veleidades teóricas daquele partido, já que que defendia uma política oposta, uma espécie de Unidade, em Cabo verde e com a Guiné, não se fizeram tardar. Mas uma revolução estava a caminho em Lisboa que mais uma vez deita por terra em 1974 o objectivo de dar mais dimensão política a Mindelo.
Com a independência a questão entrou em interregno durante décadas pelas mesmas forças conservadoras de ontem, tendo surgido novas questões políticas e económicas que bloquearam qualquer veleidade à ilha, as forças políticas sediadas na capital cuidando de cortar-lhe ‘os cabelos sempre que cresciam de alguns milímetros’.
Na década de 90 do século passado o MPd, partido liberal no poder desde a queda do PAIGC em 1989, teve uma iniciativa infrutífera de instalar um governador civil na ilha de S. Vicente mas não foi muito longe, tendo faltado sustentáculo legal, que só veio a acontecer com a lei da Regionalização, suspensa na fase de Especialidade no Parlamento cabo-verdiano em Abril de 2019, devido àquilo que hoje se pode considerar como manobras dilatórias do Paicv, partido da oposição, e que na realidade resultam de pressões da facção ultraconservadora deste partido aliado à elite centralista residente na capital. No discurso de 5 de Julho o Presidente da República Jorge Carlos Almeida Fonseca que o processo de Regionalização e o combate às assimetrias têm que ser reactivados sob pena de convulsões graves. O Paicv e também o MPD, foram assim colocados perante as suas responsabilidades.
É preciso instalar um clima e uma plataforma de diálogos com todas as forças socias e políticas, incluindo os movimentos no sentido de se encontrar novos caminhos para o arquipélago/ país. Os movimentos, niomeadamente, os chamados autonomistas, não podem querer uma coisa e o contrário, e terão que aclarar de uma vez por todas as suas posições e o que pretendem, se querem um diálago verdadeiro sobre a Regionalização/Descentralização e o combate às assimetrias ou uma perpétua agitação semeando um clima de anarquia. Terão que fazer o seu trabalho de casa e apresentar propostas lisíveis e inteligíveis. Por outro lado as forças de bloqueio conservadoras nomeadamente no seio do Paicv e algumas elite gorda da capital, que sopram na brasa para depois impedir qualquer progresso estão avisadas, não poderão continuar a bloquear o processo de desanuviamento das tensões socioeconómica em Cabo Verde para depois ganharem protagonismo e dividendos ou quiça eleições.
A importância da ilha de Vicente no contexto do arquipélago deve-se à mudança de paradigma sociológico e económico ocorrida no arquipélago a partir dos finais do século XVIII. Para ter uma melhor perspectiva histórica sobre o papel da ilha de SVicente no arquipélago de Cabo Verde coloquei hoje no repositório de artigos, alguns já publicados em jornais ( alguns que constam em livros publicados) que podem ser consultados no link abaixo. Muitos deles foram publicados em jornais online que hoje desapareceram.
Estive a ler a Proclamação da Independência de Cabo Verde de 5/7/1975 (amanhã comemora-se a data) que circula pelas redes sociais Infelizmente é um texto em que me assiste, hoje, o direito não me rever nele, e comigo muito mais gente, pela seguintes razões. É claro que nesta data nos meus 13/14 anitos festejei o ano de festas que seguiu o 25 de Abril de 1974 ao 5 de Julho de 1975.
É um texto faccioso e radical que consiste numa uma proclamação de guerra permanente, mesmo deppois de ela ter terminado pelo menos na Guiné, onde alegadamente teriam feito a luta de libertação, um texto antidemocrático, demasiado ideológico, com uma linguagem marxista ultrapassada, cheio de inverdades e banhado numa narrativa Demiurga, em que o PAIGC apresenta-se como Deus ex-machina, o criador de Cabo Verde.
Este texto que poderia ficar para a História, não ficará por isso, a menos que as gerações vindouras sejam desprovidas de total espírito crítico. Infelizmente falta a muitos o tal espírito para repudiar este texto, da forma como está escrita, que já na época era inaceitável para muitos.
O tema desta proclamação é uma verborreia da glorificação da luta armada na Guiné Bissau na qual terão alegadamente participado ao todo uma dezena de cabo-verdianos, muitos na realidade representantes do Paigc em capitais europeias ou africanas. São esses que chegam em Cabo Verde em 1974, totalmente impreparados para o poder, sequer para administrar um tasca, que com ajuda dos jovens imberbes estudantes de Lisboa, num 'empurra para lá', tomam o lugar dos milhares de cabo-verdianos que asseguravam Cabo Verde, expulsando-os para fora do país. As últimas sendo pessoas que davam o litro no arquipélago e que de um dia para outro são acusadas de todos os males (de colonos, lacaios e imperialistas etc). Não tinham mais lugar em Cabo Verde. Exilam-se para Portugal América Brasil etc.
Esta narrativa do Paigc (hoje varrida debaixo da cama) tem pois por isso muitas lacunas, para não chamá-la de fraudulenta!! .
De resto a própria Descolonização tem muito que se lhe diga, já que contrariamente a Angola Moçambique a máquina administrativa e económica era local e cabo-verdiana e não havia colonos. De resto é um facto que a administração colonial na Guiné tinham uma grande coluna cabo-verdiana, e em menor escala em Angola e Moçambique.
A Descolonização de Cabo Verde foi na prática uma operação de saneamento em massa da máquina administrativa autóctone e a limpeza da oposição ao Paigc com o apoio do MFA, quando a oposição que exigia outros caminhos de maior responsabilidade de ambas as partes, inclusivamente o MFA. Exigia que Portugal não entregasse da maneira como ia fazer atabalhoadamente o arquipélago em mãos de aventureiros. Por isso muitos assuntos de importância vital ficaram pendurados ou no armário.
A 'operação Descolonização' deu-se por terminada em 1977 quando o poder instalado tentou desbaratar o remanescente da oposição (na altura constituída por comerciantes do Mindelo que já na altura punham em causa a política económica socialista do novo poder, que centralizava tudo na Praia e que iria dar cabo de SVicente). São estes que vão receber hoje em 2019, e postumamente, a reparação tardia da parte do estado democrático e pacificado de Cabo Verde
Foi durante a ascensão ao poder pelo Paigc que ocorreu durante meses, entre meados e finais de 1974 até a Independência de 5/7/1975, que aconteceu a autêntica debandada dos milhares de cabo-verdianos para a Diáspora e Emigração (fenómeno que ainda hoje perdura) . Foi o princípio do fim da ilha de Svicente, que amanhã precisamente vai de novo manifestar por um melhor desenvolvimento e mais autonomia, paradoxalmente depois do chumbo da Regionalização em Abril passado.
Para além disso o próprio processo que conduziu à independência (ou seja a Transição) tem também muito que se lhe diga, pois Cabo Verde não tinha condições de aceder à Independência em 1975.
A acontecer nunca sem uma longa transição, de pelo menos 10 anos (como praticou a França na Nova Caledónia) e com um Referendo supervisionado pela ONU, depois de tratado todos os assuntos pendentes. Apesar de tudo as populações tinham o direito de exprimir sobre o seu futuro, num processo de tamanha importância, e de serem consultadas independentemente do resultado. A independência a ser tomada tinha que ser feita ordeiramente e num clima de total democracia, transparência e tolerância.
De todo o modo, só depois de reinstalada a máquina administrativa, lançada as bases para um regime democrático, de serenado os ânimos, de infra-estruturado minimamente o arquipélago etc, é que se poderia conceder a Independência, depois, é claro, de referendada democraticamente, 'comme il faut'. O país nasceu, pois, torto em 1974 com um governo do nível de liceais e formado por amadores da 5ª divisão. O drama que se seguiu à Independência não poderia ter acontecido e as réplicas continuam hoje a sacudir a sociedade e a economia cabo-verdianas.

QUANDO FIAT LUX EM CABO VERDE: DO OBSCURANTISMO À CLARIDADE II
Uma retrospectiva histórica  (Outubro de 2016)

Em 2016 e 2017 comemoram-se várias efemérides, várias datas e marcos importantes na História de Cabo Verde, quase todos tendo S. Vicente como palco. Para os objectivos deste artigo,  vou cingir-me aos que fazem parte da história mais recente mas que paulatinamente vai se distanciando no tempo, contudo imperecíveis na nossa memória nostálgica: o 100º Aniversário da introdução do Ensino Secundário (S.Vicente); o 150º Aniversário do Liceu-Seminário de S. Nicolau; o 80º aniversário da revista Claridade, movimento literário autónomo; o 150º aniversário do nascimento daquele que é considerado um génio da literatura, o Eugénio Tavares; os 90 anos da electrificação de S. Vicente. São praticamente 150 anos, um curto período em que o arquipélago, Cabo Verde, deu um salto para a modernidade. 

Estes eventos, que podem parecer anódinos para o comum dos cidadãos ou para um desconhecedor da história contemporânea de Cabo Verde, fizeram, na realidade, transitar o arquipélago do estado de subdesenvolvimento crónico, do obscurantismo e da escuridão nocturna, para um tempo de abertura à cultura e à modernidade. A instalação, sob o impulso do Senador Vera Cruz, do primeiro liceu oficial em S. Vicente, substituindo o ensino secundário religioso praticado no Seminário de S. Nicolau, é um evento cujo impacto sociocultural foi extraordinário tanto para S. Vicente como para todo o território. Por outro lado, quando o arquipélago ainda estava imerso na escuridão nocturna, Fiat Lux (fez-se luz), graças ao empenho e empreendimento de Pedro Bonucci. Por fim, o movimento Claridoso instala-se num ambiente cultural e Intelectual com o Liceu Gil Eanes em pano de fundo, uma universidade ‘avant la lettre’ onde leccionava a fina flor de Cabo-Verde, pessoas de grande craveira moral e intelectual, que hoje justificariam o estatuto de catedráticos. Este movimento pretendia simplesmente colocar Cabo Verde no mapa da literatura, abordando questões como a identidade cabo-verdiana e os problemas sociais e económicos do arquipélago. A electrificação da cidade e o surgimento do movimento literário são assim dois elos de uma conjugação simbólica, pelo que se pode dizer que Fiat Lux simultaneamente nas ruas e nos espíritos. E a propagação da luz operou-se em todo o território, a partir do ponto de irradiação que foi a ilha de S. Vicente. Em 2014, publiquei no Jornal de São Nicolau o seguinte artigo: Do fim da Sociedade Escravocrata à Eclosão do Cabo Verde Moderno no Mindelo (Quando a Inglaterra Achou/Redescobriu S.Vicente: http://www.jsn.com.cv/opiniao/496-jose-fortes-lopes-do-fim-da-sociedade-escravocrata-a-eclosao-do-cabo-verde-moderno-no-mindelo.html), onde demonstrei como a história do arquipélago mudou, quando em início do século XIX Portugal cedeu ao seu aliado britânico a ilha de S. Vicente, para estabelecer uma base de comunicações e transporte marítimo no Atlântico Norte. S. Vicente era uma ilha perdida, quase inabitada, situada no extremo norte de um arquipélago que o Tratado de Tordesilhas trouxe para a História, mas que as vicissitudes da própria História levariam a que voltasse a perder-se por muito tempo na imensidão do Atlântico, fora do mapa mundial. Mas em meados do século XIX ela converteu-se de repente num ponto estratégico, num nó da densa rede ultramarina e colonial do Reino Unido. Cabo Verde voltou, assim, à luz da ribalta, pelo efeito induzido da presença da então primeira potência mundial, ganhando de novo uma importância geoestratégica que tinha perdido havia séculos. Este evento teve no arquipélago um impacto socioeconómico revolucionário, marcando a ruptura com a antiga sociedade, estruturalmente tradicional e rural.

Sendo os ingleses praticamente senhores e donos da ilha (indirectamente governavam, visando os seus interesses e objectivos), esta deixou-se configurar nos moldes do modelo anglo-saxónico, formatando o próprio traçado da cidade, tanto na definição do espaço edificado como na tipologia habitacional. A própria população acabou por se tornar  anglófila, a elite ganhando tiques aristocráticos britânicos. Para além disso, onde se instalavam ingleses prosperava a actividade económica, e não tardou que portugueses, italianos, judeus, indianos, sírios, etc., fossem atraídos e se instalassem na cidade, ao passo que a população trabalhadora (essencialmente camponesa e oriunda do arquipélago) acorria em massa para o que representava um verdadeiro eldorado cabo-verdiano. Em S. Vicente, o modelo britânico impulsiona o comércio, criam-se empresas de serviços, nasce uma pequena burguesia e indústrias em torno das actividades portuárias do Porto Grande, surgem sindicatos, grémios, rádios, e associações diversas florescem, o que gera um clima de total liberdade, “sui generis” no arquipélago e mesmo no espaço português. Generaliza-se a prática do desporto: ginástica, atletismo, natação futebol, golfe, cricket, ténis etc.

Na prática, Cabo Verde estava cada vez mais a depender do Reino Unido, tomado como modelo, para além da atracção e do fascínio natural da elite local pela primeira potência mundial. Dava-se assim o nascimento de uma micro-sociedade funcionando nos moldes e valores ocidentais: uma sociedade cosmopolita, sofisticada, estratificada, e com todas as contradições e consequências que daí podiam advir. Apesar da dependência administrativa e política em relação à metrópole colonial, a hegemonia britânica gerava um universo social  onde coabitavam as autoridades coloniais, a elite social e os interesses britânicos. Este caldo social, com o tempero da liberdade, estará na origem de alguma reivindicação nativista e da aspiração de uma maior autonomia em relação à metrópole colonial, a ilha tornando-se um paradigma das lutas cívicas e democráticas. Haveria mesmo quem pensasse inclusivamente na separação em relação a Portugal (a independência), já que o modelo clássico colonial de dependência estava a ser posto em causa. Daí se pretender que já no início do século germinava a ideia de que Cabo Verde deveria deixar de ser colónia para adquirir outro estatuto mais condigno, tal como o deputado Adriano Duarte Silva viria a aspirar e a advogar junto de Lisboa, nos anos 30 do século passado. É pois neste contexto que se criaram  as condições para o nascimento em Mindelo do movimento literário e intelectual Claridoso. O que é que o jovem guineense Cabral pensaria do Mindelo dos finais dos anos 30, aonde se tinha deslocado para fazer o seu ensino liceal, numa ilha em pleno boom social e económico, em tudo diferente da desolação da Praia, de Bissau ou de Bafatá onde nascera? Vejamos então:
........................................................................................................................... A evolução da sociedade cabo-verdiana a partir dos meados do século XIX poderia ser a de um banal arquipélago perdido no oceano, saído lentamente e dificilmente do período escravocrata. Situar-se-ia do ponto de vista cultural e civilizacional muito aquém de uma qualquer ilha tropical caribenha, ou pior, poderia ter um destino bem triste, sem nenhum interesses económico nem estratégico, fechado inexoravelmente em torno do seu umbigo ou totalmente dependente da assistência da metrópole. Ascenderia talvez à independência em 1975, mas a sua história poderia ser tão conflituosa como a de qualquer país africano.
Mas no século XIX o mundo já tinha sido varrido pela avassaladora influência da revolução francesa e americana e entrava na era da revolução industrial inglesa, caracterizada por ideias liberais e por um capitalismo mercantil, dominado pelo imperialismo britânico, que tentava a todo o custo de reforçar o seu poderio mundial em detrimento das outras potências rivais, ganhando posições geoestratégicas para assegurar a comunicação e a circulação dos bens essenciais entre os diversos ponto do seu império.
É neste contexto de afirmação do imperialismo britânico que S. Vicente/Mindelo surge na cena de Cabo Verde e do Mundo, num momento histórico não muito distante da abolição da escravatura no arquipélago......................................................................
...................................................................................................................................... In Quando a Inglaterra Achou/Redescobriu S.Vicente: http://www.jsn.com.cv/opiniao/496-jose-fortes-lopes-do-fim-da-sociedade-escravocrata-a-eclosao-do-cabo-verde-moderno-no-mindelo.html
19 de Outubro de 2016
José Fortes Lopes
Bibliografia
Do fim da sociedade escravocrata à eclosão do Cabo Verde moderno no Mindelo (Quando a Inglaterra Achou/Redescobriu S.Vicente:
http://www.jsn.com.cv/opiniao/496-jose-fortes-lopes-do-fim-da-sociedade-escravocrata-a-eclosao-do-cabo-verde-moderno-no-mindelo.html)
http://www1.umassd.edu/specialprograms/caboVerde/jewslobban.html




Quando o PAIGC Achou/Redescobriu S. Vicente:  

2ª Parte-A decadência de S. Vicente: o triunfo da ruralidade, o retorno ao passado, a crise de valores e o lento apagamento do farol civilizacional do arquipélago  (Janeiro de 2015)

Quando nos inícios dos anos 60 Portugal começou a tropeçar em África, estava em gestação o prenúncio de uma ‘revolução’ em Cabo Verde e teria como palco pela 2ª vez a ilha de S. Vicente com a adesão total aos ideais do 25 de Abril, ao PAIGC e aos ideais da Independência: ao Redescobrir o S. Vicente revolucionário o PAIGC achou Cabo Verde.
Esta revolução terá todavia feito a longo prazo (40 anos) uma vítima colateral, o derrube completo da ilha, de todos os valores que a caracterizavam: liberalismo, cosmopolitismo, abertura de espírito etc. O regime instalado em Cabo Verde embora de cariz justicialista e mesmo messiânico, era incompatível com uma sociedade de valores livres e liberais, incarnada em S. Vicente, por razões que desenvolvidas mais a frente.
Na realidade é o advento do Estado Novo conservador em 1922 e a sua longevidade de 50 anos aliada ao lento decair da influência e da presença inglesa que marcam uma segunda revolução da ilha e no arquipélago, representando agora um rude golpe na economia e na trajectória que parecia imparável. O conservadorismo do regime salazarista e a ausência de perspectivas económicas, constituíram o primeiro desencontro da ilha com a história. Punha-se fim a uma experiência de cerca de um século e o ‘Cabá Carvon’ engendrou  ‘Cabá Vapor’, entrava-se num novo ciclo, numa nova era caracterizada pela emigração em larga escala (para os que mesmo assim podiam emigrar), ao passo que para a população residente as perspectivas ficavam cada vez mais sombrias, sem trabalho empobrecia-se irreversivelmente. O imobilismo do Estado Novo contrastou com o dinamismo francês na vizinha Dakar e o espanhol nas Canárias, que atempadamente souberam e atrair para si o trafego marítimo internacional. S. Vicente e Cabo Verde ficariam à espera por novos ventos que não tardariam de soprar.
O 25 de Abril e o 5 de Julho constituíram momentos revolucionários nunca dantes vividos na ilha, em que os mindelense liderados pela juventude estudantil e a pequena burguesia local, participaram efusivamente numa ampla movimentação social só comparada com as manifestações religiosas que no passado ocorriam. Estes momentos marcaram início de uma nova era no arquipélago, uma ruptura com o passado sufocante associado ao Estado Novo conservador e colonial. Desta vez o povo mindelense participara numa revolução pacífica, foi o principal actor dando o seu corpo inteiro à uma justa causa. O povo da ilha desafiou a sociedade de então, dançou, cantou ruidosamente com todas as suas energias, manifestou, amou livremente, enfim fez tudo o que era proibido, tornara-se proibido proibir. Nada seria como dantes na ilha. Teoricamente entrava-se na era liberdade total de expressão de pensamento e de criação, de liberdade nacional, de progresso material e espiritual, pão e trabalho para todos, brevemente ver-se-iam águas a correr pelas levadas como prometiam as canções revolucionárias. Mas como todos sabemos nada disto se passou, e a festa foi de pouca dura, ou melhor uma ‘festa’ continua ao ritmos dos festivais de um dia que animam uma população em desnorte de valores, sem trabalho, nem futuro, em que o que resta de esperança na ilha rima com  o passado e com a palavra mítica e intraduzível palavra ‘sabe’ : ‘Passá Sabe’, ‘Sabura’, ‘Depôs de Sabe Morrê Ca Nada’ ou ‘Soncente Eh Sabe…’.  
Com o 25 de Abril o PAIGC entra logo em cena, partido antes desconhecida pela esmagadora maioria da população cabo-verdiana, é levado aos píncaros pelos mindelenses, ao mesmo tempo que se marginalizaram forças autóctones entretanto nascidas do 25 de Abril assim com as figuras consideradas proeminentes no arquipélago, por serem na época consideradas ilegítimas (o PAIGC ganhou toda a legitimidade histórica por ter combatido Portugal na Guiné em nome de Cabo Verde) negociando assim unilateralmente com Portugal a transferência de poderes, sem que as população e as forças politicas autóctones fossem tidas ou achadas no processo negocial e no desenho do país independente. O PAIGC tornou-se num ápice força dirigente de Cabo Verde, a luz e o guia do povo de modo que o governo. Estavam lançados os dados em Cabo Verde e o seu futuro ia depender desta trajectória inicial.
O programa do PAIGC em 1975 não se anunciava de todo amigável para ilha, nem para Cabo Verde, deixando muita apreensão no ar: nacionalizações (?), restrições, racionamentos, economia centralizada e estatizada, colectivismo, reforma agrária (?), partido único e delito de opinião a quem tivesse ideias contrárias ao poder. Pior o regime que se pretendeu ter nascido nas matas da Guiné, forjado na luta de libertação, que envolveu essencialmente camponeses, pretendia constituir a sua principal base de apoio nos campos (?) de Cabo Verde, ou seja na ilha mais populosa do arquipélago, Santiago. Esta opção representaria o triunfo da ruralidade, o retorno ao passado, muito marcado pelas teses revolucionárias em voga no 3º Mundo. Em segundo lugar pretendia-se uma ruptura total com o passado colonial, extirpando aquilo que denominavam de sequelas do colonialismo português em Cabo Verde e por fim construir um homem novo limpo das mesmas sequelas. Nesta corrida S. Vicente estava mal posicionada pois de ilha revolucionária que adoptou incondicionalmente o programa do Paigc, estaria corrompida espiritualmente, sendo mesma vista por alguns como filha bastarda do colonialismo. Lançou-se deliberadamente o estigma de a ilha ter sido aliada do colonialismo português. Inicia-se assim a longa marcha rumo ao Centralismo em Cabo Verde na Praia, uma opção declaradamente assumida pelos poderes. É nesta perspectiva que uma ilha como S. Vicente não foi comtemplada com uma única representação do Estado, Praia de Bote ficou mais uma vez a ver navios passar: ao mesmo tempo que perdia massa crítica, o dinheiro deixava de circular na ilha. De ilha nobre, culta, intelectual e com elevados padrões de valores morais e civilizacionais, participativa confiante no futuro radiante prometido, transformou-se em ilha abandona, deserta, descrente, sem trabalho, onde nada acontece para além de alguns festivais e o carnaval inicialmente improvisados, depois institucionalizados. O ‘Passá Sabe’ tornou o leitmotiv do povo e a infindável farra que se iniciou no 25 de Abril tornou parte da decoração. Enquanto isso assiste-se impávido e sereno à descaracterização rampante da nossa linda cidade e alguns mindelenses embriagados declararam ‘Tud Pa Tchom’ ao nosso lindo património arquitectónico, enquanto grupo militam para a requalificação do património e monumentos históricos, outros modernizadores e demagogos prometem atirar ‘o Velho’ de Cabo Verde para o Lixo da História, usam palavreado neo-revolucionário, apelidando de Pardieiros Imundos, Refúgios de Drogados ou Lixeira Degradantes da Cidade do Mindelo, a antiga Casa Adriana o Eden Park e talvez Liceu Gil Eanes, o Fortim e tantos outros edifícos deixados intencionalmente cair em ruina.
Segundo uma absurda tese económica em voga no Cabo Verde, S. Vicente não se devia desenvolver mais, tinha que parar no tempo (imaginem) para que as outras partes do país chegassem ao seu nível de ‘desenvolvimento’. O objectivo desta política justicialista seria, segundo os mentores, contrariar a tendência colonial que alegam ter consistido em apostar em S. Vicente, pelo que esta ilha devia ser punida durante décadas. Para fazer justiça re-investiu-se tudo numa ilha e criou-seuma nova burguesia nacional na mesma ilha. Este efeito nunca mais parou, e a tendência de transferia de recursos para a nova capital foi continuamente prosseguida, o que descapitalizou humanamente e economicamente o resto do país, explicando grande parte a situação de decadência que encontramos na ilha e no resto de Cabo Verde. No preciso momento em que existe um discurso de recuperação da ilha, fruto de inúmeras pressões da sociedade civil para que se desenvolva políticas para travar o declínio de S. Vicente, prossegue a hemorragia humana da ilha e o centralismo inexorável do país: todo o centro político e económico está situado ou tem tendência a centrar-se na capital, todos os quadros mais competentes ou recém-formados, todas as profissões, todos os projectos, só tem um destino, a capital, transformando Santiago a única ilha onde os investimentos são mais viáveis, onde circula capital e dinheiro, onde há poder de compra, onde se criam empregos, onde há perspectiva de ascensão na carreira etc. Poucos países no mundo apresentam tais características. Se isto não resulta de um plano conspirativo, então pode-se afirmar que os regimes e as elites que governaram o país não têm noção e sensibilidade para administrar país, pelo que nunca farão nada para contrariar os efeitos perversos desta política injusta e absurda.
Tirando estas considerações, pode-se mesmo assim argumentar que se o modelo de desenvolvimento, centralizado, estatizado pudesse ser sustentável numa legislatura com o intuito equilibrar as contas do país recém-independente, a sua persistência a sua duração no tempo, para além do prazo, foi um contrassenso económico, um erro grave que está pagando caro o resto do país.
Mas esta política não foi implantada sem resistências. Os primeiros sinais preocupantes que a economia da ilha de S. Vicente (que era o centro económico do arquipélago) entrava em declínio foram emitidos em 1977 por uma sindicância de comerciantes mindelense e enviados ao regime (que acolheu mal essa manifestação). As políticas de austeridade, racionamento, colectivismo e centralismo na Praia, começavam a asfixiar a ilha e por ricochete o resto de Cabo Verde. Todo o potencial da ilha estava morrendo de inanição a olhos vistos, sem alternativas possíveis no quadro dos fundamentos em que se assentavam o regime. Exigia-se um NEP tal como Lenine na Rússia nos anos 20 do século passado. Mesmo a própria Diáspora que podia ser o maior parceiro do desenvolvimento do país foi alienada em 1975 posta de costa virada ao país. Iniciou-se a crispação, a revolta na ilha e o início do sentimento de oposição: nascia em S. Vicente a contestação ao regime que se alastrou à Diáspora. A resposta não se fez esperar, numa onda de repressão sem precedentes abateu sobre a ilha. Não fosse a esperança na Perestroika de Gorbatchev o fim do Muro de Berlim e a alternância nascida 1992, o arquipélago estaria ainda mergulhado sistema de partido único sem perspectivas de saídas possíveis.
Com os sinais de abertura no Mundo e em Cabo Verde, S. Vicente podia de novo acreditar no futuro na medida em que a democracia seria a panaceia, o remédio para os seus males. Nada mais falso! Hélas, por detrás da Democracia emergia um novo fenómeno em Cabo Verde, que progredia silenciosamente por dentro dos partidos, o Fundamentalismo Santiaguense, que eclodiu no início do milénio.
Chegou a hora de Santiago subjugada esquecida, oprimida, a hora da interioridade de Cabo Verde, do outro Cabo Verde. Tenta-se voltar aos Fundamentos de Cabo Verde e consagra-se a Cidade Velha século XV. Triunfava a da maioria dos números que curiosamente em cabo Verde não é da maioria sociológica, o confronto duas realidades bem diferentes no arquipélago. No espaço de uma geração os Fundamentalistas estavam convencidos de terem realizado uma revolução sociológica em Cabo Verde, de ter nascido enfim um homem novo com raiz fincada em Santiago. À ‘Exuberância Irracional de Santiago’ condenava o resto de Cabo Verde a transformar-se em paisagem. Estava-se assim decidido construir a todo o custo um utópico Estado Nação à imagem da maior ilha do arquipélago. Os problemas recomeçavam para S. Vicente!
                                                                             
José Fortes Lopes


Bibliografia
JOSÉ FORTES LOPES Quando um filho de S. Nicolau, Baltazar Lopes da Silva, poderia ter jogado um papel político proeminente no Cabo Verde do pós-25 de Abril e do pós-Independência.
JOSÉ FORTES LOPES: Pensando Cabo Verde de outra maneira - Quando as Reformas Democráticas e o Conceito Plural de Cabo Verde deram razão a Baltazar Lopes da Silvahttp://www.jsn.com.cv/index.php/opiniao/93-jose-fortes-lopes-pensando-cabo-verde-de-outra-maneira-quando-as-reformas-democraticas-e-o-conceito-plural-de-cabo-verde-deram-razao-a-baltazar-lopes-da-silva. Jornal de São Nicolau, 15Outubro de 2013.



3- CABO VERDE 40 ANOS APÓS A INDEPENDÊNCIA: DA NORMALIZAÇÃO À RECONCILIAÇÃO NO QUADRO DA LEI DE RECONCILIAÇÃO NACIONAL
       In ‘Cabo Verde 40 anos após a Independência; Da  Independência à 1ª Via’  (Julho de 2015)

No artigo precedente (1, 2), na abordagem à notícia sobre a anunciada “Lei de Reconciliação Nacional” (3), suscitou dúvidas o emprego das palavras “indultar”, “amnistiar” e “reinserir” a que se refere aquela lei, no pressuposto de que poderia apenas tratar-se de uma questão de empregabilidade semântica. E isto porquê? Porque simplesmente aqueles termos se aplicavam a pessoas que entendem que não cometeram qualquer crime ao fazerem uso do direito de opinião e de reunião devolvido aos cidadãos com o 25 de Abril de 1974.

Em todo o caso, essa lei poderá ter o mérito de criar a possibilidade de abertura e revisão de todo do período revolucionário que começou em finais de 1974, assim como outros episódios menos dignificantes da 1ª República, implicando assim a necessidade de reescrever a história.
Por outro lado, a existência desta lei reconhece implicitamente que terão sido cometidos ‘erros’ e eventualmente delitos da parte das então autoridades, o que até agora tinha sido invariavelmente negado ou ignorado pelas diferentes versões da história até hoje contada. Mesmo tardiamente, ela não deixa de constituir uma censura a todos aqueles que, por motivações de ideal revolucionário ou impelidos pelo fulgor dos acontecimentos, conscientemente ou inconscientemente, praticaram ou deram cobertura a actos actualmente condenáveis no quadro nova ordem moral e política. Mas o mais importante é que a Lei pode abrir a possibilidade de um despertar de consciência de muitos cabo-verdianos entorpecidos pela desinformação e pela propaganda sobre um capítulo bastante controverso da história de Cabo Verde, e que engloba todo o processo revolucionário iniciado em 1974. Se a sociedade não estivesse anestesiada, poderia reabrir um debate interessante, descomplexado e maduro, que pudesse envolver, para além dos protagonistas ainda vivos, a sociedade em geral, incluindo jornais e redes sociais. Mas aparentemente estas coisas ainda não conseguem quebrar a placidez em que vivemos.
Como vimos no artigo precedente, o número de pessoas que possam considerar-se injustiçadas e em condições de litigar é potencialmente superior ao dos declarados expropriados, pelo que poderá não ser fácil passar uma esponja a este período, do jeito tomem lá uns tostões e calem-se, pois, como é óbvio, as pessoas que se consideram injustiçadas com as práticas do passado não se contentarão com indemnizações mas sim com uma completa ilibação e as devidas desculpas públicas. Tudo isto revela a enorme dificuldade moral e política em lidar com a questão, agora que está aberta a caixa de Pandora.
Como poderemos antecipar, uma eventual revisão do período revolucionário levará ao confronto duas posições antagónicas: uma baseada na Lei e no Direito formal e outra baseada na legalidade revolucionária, ou seja no direito do povo a uma forma de justiça, ou mesmo de violência, determinada pela lógica revolucionária. Tudo isto veremos mais à frente.

Como vimos precedentemente, o perfil dos protagonistas em confronto nesta saga revolucionária de 1974 pode resumir-se nestes termos:
- De um lado, os que ficaram ou estavam em Cabo Verde, a Tapadinha (esta denominação de S. Vicente quando se refere à terra-mãe na sua desolação). Referindo ao grupo que se opôs ao PAIGC, eram essencialmente homens nascidos nos finais do século XIX até ao início do século XX, que nunca ou quase nunca saíram da sua terra, para além dos estudos e das férias graciosas passadas na Metrópole. Eram em geral pessoas cultas, bem formadas ou que conseguiram singrar na vida, e formavam a elite colonial, administrava e económica do país. Do ponto de vista político, eram na sua maioria conservadoras, muito identificadas com a ideologia reinante, fossilizadas socio-politicamente no sistema colonial-salazarista e fechadas no Grémio elitista, entendido pelo povo como um clube de ‘aristocratas’. Todavia, era a elite influente que contava tanto em Cabo Verde como na ex-Metrópole em tudo o que determinava os destinos de Cabo Verde. Esta elite, segundo a lógica dos seus opositores, ao organizar-se politicamente no pós 25 de Abril na UDC e ao opor-se aos ‘libertadores’ do PAIGC, queria pura e simplesmente preservar os seus privilégios e o seu estatuto através de um regime alegadamente democrático e pluripartidarista, mas que na prática lhes permitiria manter as rédeas do poder e assegurar uma ligação à ex-Metrópole, perpetuando uma situação de neocolonialismo clássico. Se os principais protagonistas da UDC foram “decapitados” pelas vicissitudes da própria revolução, nem todos o seriam, pois, aparentemente, alguns reaparecem em 1977 na alegada intentona contra-revolucionária e outros não abandonaram a causa política, associando-se nos anos oitenta à Oposição na emigração, engrossando as fileiras da UCID. A UDC em tudo se opunha ao PAIGC, apresentando-se como atlantista, ocidentalista e radicalmente contrária à Unidade Guiné-Cabo Verde (4) e à africanização de Cabo Verde. Entendia o país como um caso à parte em África, e mesmo como uma espécie de anexo de Portugal nos trópicos. Defendia uma economia de mercado e um sistema político parlamentar, classificado na época de burguês pelos revolucionários.

 - Do outro lado, os recém-chegados líderes do PAIGC, que eram, para a população residente no arquipélago, um punhado de ilustres desconhecidos da maioria da população (compreensível no ambiente falta de informação e de censura em que se vivia), são hoje (1974) aclamados heróis do povo, pela luta política levada a cabo no estrangeiro e pela luta armada nas matas da Guiné Bissau em nome de Cabo Verde, aos quais se juntam os resistentes antifascistas ou militantes nos partidos de esquerda em Portugal, assim como alguns funcionários cabo-verdianos nas ex-colónias portuguesas, alegadamente apoiantes do PAIGC na clandestinidade. É de realçar o papel dos emigrantes cabo-verdianos de Moselle (França) que terão em 1964 engrossado as fileiras da guerrilha na Guiné (5,6,7): Segundo informa o jornal online A Semana“…Era um grupo constituído por 26 originários de Santo Antão, São Vicente e Santiago, que tinha iniciado o seu trabalho nas minas de ferro e na indústria siderúrgica na região de Moselle, nordeste da França. Mas a parte mais expressiva era constituída por camponeses da Ribeira Grande de Santo Antão a mobilização política realizada na região de Moselle, nordeste da França, em 1964, ficou gravada no itinerário da luta pela independência e liberdade da Nação Cabo-verdiana. Por isso, ela simboliza a generosa contribuição das comunidades cabo-verdianas no exterior a esta causa patriótica, depois da mobilização em Bissau em finais de cinquenta, e Dakar, em princípios de sessenta”. Estes bravos que se juntaram ao grupo de Paris terão sido formados na arte da guerrilha e da revolução nas montanhas de Escambray (Cuba) no intento de um dia tentarem uma operação anfíbia e desencadearem uma guerra de guerrilha em solo cabo-verdiano (8). Convenhamos que esta seria uma operação em todos os pontos de vista suicida, dado a fraca ou inexistente implantação do PAIGC em Cabo Verde nesta altura e a inviabilidade de manter uma guerra de guerrilha num arquipélago com as características de Cabo Verde.
 Como vimos nos dias de hoje, a lista dos combatentes não pára de crescer, aparecendo, para surpresa de todos, novos que se declaram autores de alegadas acções antes do 25 de Abril em solo cabo-verdiano ou no estrangeiro, contra a presença colonial portuguesa, para além dos que se evidenciaram depois dessa data, durante o período revolucionário cabo-verdiano, ou que adquiriram este estatuto por outros motivos.
Os cabo-verdianos do PAIGC tinham pura e simplesmente rompido na altura certa com o sistema colonial em vigor no arquipélago e no império, quando novos ventos de liberdade sopravam em todo o mundo e em África, onde o sistema colonial europeu claudicava. Os mais instruídos eram em geral pequeno-burgueses nascidos entre os anos 20 e 50 do século XX, estudaram no Liceu Gil Eanes e muitos foram alunos ou discípulos de alguns dos homens que agora afrontavam. Alguns fizeram uma formação universitária em Portugal, conviveram com os círculos de esquerda portugueses e internacionais, assim como os círculos anticoloniais africanos, alinhando com o espírito da época na luta anticolonialista ou de Maio de 1968 (Paris). Eram, pois, jovens cabo-verdianos que contactaram com outras realidades, outros regimes sociopolíticos (socialistas e sociais-democracias), e familiarizaram-se com as mais modernas correntes de pensamento do seu tempo, a saber, o socialismo, o terceiro-mundismo, o pan-africanismo e o anti-neocolonialismo. Podiam ser, portanto, considerados, para o contexto da época, progressistas, revolucionários e de esquerda, sem terem todavia experienciado os valores da democracia parlamentar, social-democrata ou democrata-cristã. O PAIGC, como todos sabemos, defendia a Unidade Guiné-Cabo Verde, a africanização de Cabo Verde, a aproximação ao países africanos e/ou Não Alinhados de tendência progressista, assim como aos países do Bloco Socialista, que concederam uma ajuda determinante durante a sua luta armada. Segundo este partido o arquipélago era um caso tipicamente africano, ou mesmo uma espécie de anexo da Guiné-Bissau, país irmão no qual se desenrolava o essencial da luta de libertação de Cabo Verde. Defendia para depois da independência um regime centralizado, baseado uma economia planificada do estilo ‘socialista’ e um sistema político de partido único, sendo o Partido, o único e legítimo representante do povo, o porta-voz das suas aspirações.

É, pois, em torno destes personagens em oposição ideológica que se desenrola a saga do pós-25 de Abril, da descolonização e da Independência, deflagrando o confronto político em Cabo Verde, pelo menos na primeira e curta fase do processo revolucionário, uma vez que os potenciais opositores ao regime que estava a ser instituído foram prontamente postos fora de jogo ou expulsos do país manu militari em finais de 1974.
É claro que não me propus descrever na sua globalidade todos os protagonistas dos dois campos em toda a diversidade ideológica, moral e política que a complexidade da situação proporcionou, mas sim as características mais marcantes dos dois campos. Sobretudo, não pretendo neste artigo fazer um julgamento moral dos mesmos. Em ambos campos, havia boa gente, bem formada e bem-intencionada, mas que simplesmente se posicionava em posições diametralmente opostas e que nunca se dialogaram.

Se a análise desta problemática utilizar hoje o crivo sociológico adequado a uma realidade livre e plural, desde logo ter-se-á de concluir que a sociedade cabo-verdiana contemporânea está dividida em várias correntes políticas, ideológicas, morais e jurídicas, a saber:

- Uma corrente, subitamente tornada maioritária por injunção de impulsos ideológicos em ambiente político privilegiado, que se revê nos ideais de Amílcar Cabral e do PAIGC/CV ou da esquerda revolucionária, e que analisa a problemática de um ponto de vista estritamente revolucionário e no viés do processo de descolonização. Ela defende que uma acção revolucionária em nome da justiça e do povo acarreta forçosamente excessos que não podem ser julgados a posteriori;

-Uma outra corrente que incorpora uma fracção não menos representativa da opinião pública e que analisa a problemática estritamente de um ponto de vista de novos valores modernos, democráticos e jurídicos, trazidos pelo 25 de Abril e pela posterior instauração da democracia em 1992, demolindo assim os pressupostos da outra;

- Entre estas duas correntes fundamentais e representativas de campos ideológicos em confronto, jaz o largo sector dos indecisos, constituído de gente pouco esclarecida ou timorata, simples espectadores dos acontecimentos mas que são os que determinam as maiorias sociológicas. Incluem-se também os vira-casacas e a legião de oportunistas mais papistas que o papa que caracterizam os períodos pós-revolucionários.

Assim, na lógica dos primeiros, os que defendem a legitimidade revolucionária (apoiada então pela força militar colonial ainda estacionada na colónia, que antes combatia o campo dos vencedores mas que agora protegia o dos vencidos, e que até ao último momento poderia determinar o lado para o qual penderia a balança), Indultar e Indemnizar aqueles que foram justamente punidos de 1974-1981 pela nova ordem popular revolucionária, é um contrassenso político, uma traição aos ideais revolucionários dessa época e uma injustiça a todos os que lutaram por um Cabo Verde livre, justo e sem exploração do homem pelo homem, e que inclusivamente pegaram em armas. Os eventos ocorridos nesta época e os subsequentes aconteceram no quadro de um processo revolucionário, tomado no seu sentido mais lato, este era o espírito predominante entre os seus protagonistas. Não sendo possível fazer omeletes sem partir ovos, os eventuais actos delituosos cometidos nesse período não foram senão uma consequência natural do mesmo processo, para além de serem um ajuste de contas com o colonialismo e os seus lacaios, em suma, com um passado de 5 séculos de exploração colonial. Para os revolucionários, o Grémio era um refúgio dos representantes do regime deposto e a tomada da Rádio Barlavento, sua propriedade, foi um acto que se reveste de um marcante simbolismo na história de Cabo Verde: representa o fim do colonialismo e o início da revolução cabo-verdiana. ‘Après tout’, esses cabo-verdianos constituíam a autêntica elite colonial ‘aristocrática’ (já que não havia assim tantos colonos portugueses), soberba, fechada sobre si mesma, discriminadora, ou mesmo racista-social, que desprezava o povo e estava alheia à sua condição. Para além disso, arrostavam o pecado capital de serem representantes ou apoiantes do odioso regime de Salazar, os zelosos serviçais do colonialismo português em Cabo Verde, e que, inclusivamente, apoiaram incondicionalmente a guerra colonial em África, onde o PAIGC se batia gloriosamente. Portanto, o que restava do sistema colonial em Cabo Verde devia ser desmantelado e os seus principais actores não podiam jogar nenhum papel no novo país ou mesmo corridos do país. De resto muitos foram parar a Caxias. Para os revolucionários não podia haver outra justiça senão esta baseada na moral revolucionária.
De resto, numa interpelação irrecusavelmente pertinente, impregnada de materialismo histórico, os protagonistas da corrente revolucionária perguntarão mesmo se essa elite não foi vítima do seu próprio imobilismo e acomodação acrítica e oportunista a um sistema colonial caduco e sem intenção de se regenerar, ela incapaz de amadurecer e ser a voz representativa e reivindicativa da comunidade em que se inseria. Mas convenhamos que nem toda a elite cabo-verdiana estava no refúgio de ‘aristocratas’ que era o Grémio, nem tão pouco partilhava o conjunto dos seus valores. A elite cabo-verdiana era, na realidade, complexa, multifacetada e estava estratificada socialmente, culturalmente, embora fracamente preparada ideologicamente, visto depender totalmente da Metrópole. 
Embora não se questione que por essa altura a elite social local já não dava sinais da mesma vitalidade cívica e interventiva de outrora, mais preocupada com as rotinas do seu estatuto de casta do que com o activismo que lhe competia em proveito da comunidade, reconheça-se, todavia, que sem esse sector social Cabo Verde teria sido no passado uma colónia banal, no imobilismo clássico da administração colonial, como o era por exemplo o caso da Guiné, que, sem elites locais, tinha de recorrer a quadros cabo-verdianos excedentários para a sua administração. O que na verdade distinguiu Cabo Verde do resto dos territórios africanos sob administração portuguesa, foi precisamente a sua capacidade de gerar pessoal qualificado nos mais diferentes sectores de actividade, não obstante a sua pequenez e as suas parcas condições naturais. Dir-se-á que numa relação desproporcional com o seu território, Cabo Verde produziu homens da ciência como o célebre químico Roberto Duarte Silva (10) e o engenheiro Humberto Duarte Fonseca (11), um militar de alta patente Viriato Gomes da Fonseca (12) (o General de Coculi), zeladores do bem comum como o senador Vera Cruz, o deputado Adriano Duarte Silva e os cidadãos Júlio Oliveira e Leça Ribeiro de Almeida, figuras da cultura como Eugénio Tavares, José Lopes, Baltasar Lopes, Aurélio Gonçalves, Jorge Barbosa e Teixeira de Sousa, o distinto professor e Reitor do Liceu Gil Eanes Antero Barros, e da arte musical como B. Leza, Bana e Cesária. Isto só para citar nomes sonantes e alguns de notoriedade internacional, pois o que se pretende relevar é a circunstância extraordinária de um território pequeno e desprovido de recursos ter sempre gerado ao longo da sua história gente qualificada mais do que suficiente para assegurar a sua própria administração e orientar as suas pulsões cívicas, sem o que talvez ele tivesse sido votado a um maior abandono pela potência administrante.
Esta é uma verdade que não poderia ter sido ignorada no momento da exaltação revolucionária, uma verdade que deveria ter obrigado a um mais rigoroso critério na hora do julgamento, com o cuidado de separar o trigo do joio. Mais prudente tivesse sido a atitude do novo poder político, talvez a ilha de S. Vicente não se visse subitamente privada de parte importante da sua massa crítica, ela que foi sem dúvida a principal, se não a única, vítima da fuga maciça de importantes quadros do território. E talvez este pecado original é a mãe de todos os problemas que assombram hoje Cabo Verde, e em particular a ilha de S. Vicente.
Seguindo, pois, o pensamento da corrente revolucionária, foi a própria caducidade do sistema colonial que ditou a sentença de morte da elite colonial cabo-verdiana, afogada na sua própria ‘água’. Deste ponto de vista, tudo o que lhes aconteceu foi merecido, e mais: o regime de partido único instaurado em 1975 pelo povo e para o povo, era uma resposta, uma retaliação natural ao “Mal” que se vivia em Cabo Verde, para além de ser uma vacina contra um eventual retorno encapotado da elite de “má memória” ao poder através de eleições livres. Para além disso, a revolução se propunha, do alto da sua presunção ideológica, salvar a alma dessa elite através de uma longa reeducação revolucionária que incluiria o seu Suicídio de Classe, a criação do Homem Novo e a Reafricanização do seu espírito, conforme o pensamento de Amílcar Cabral. Assim sendo, exações, atropelos à ainda lei colonial vigente em 1974, dirigidos contra a elite e a burguesia colonial, não podem ser julgados hoje como delitos, são consequências naturais de um processo revolucionário de descolonização, e nesta conformidade devem ser vistas à luz da legalidade revolucionária e, portanto, perfeitamente justificadas e até bondosas!

No entanto, na óptica dos direitos elementares da pessoa humana, a verdade é que muitos cabo-verdianos se viram privados dos seus direitos de propriedade e muitos deles presos, vilipendiados e feridos na sua dignidade moral, por mor de um processo de descolonização feito à pressa e promovido por via revolucionária na onda dos acontecimentos propiciados pela súbita queda do regime político anterior. Só que o ímpeto revolucionário acabou por ser daninho nos seus efeitos, pouco precavido no julgamento das intenções e das culpabilidades.

No sopeso dos factos históricos e na análise da sua relação com as teorias sociais e políticas, diz o Luiz Silva (1,2), um sociólogo e nacionalista convicto que não ascendeu ao poder, nem teve o privilégio das suas benesses e que por isso está bem situado para fazer uma análise ponderada e equidistante do processo: “Em todos os países colonizados os partidos políticos foram emanações do movimento sindical e associativo. No entanto, houve países como a Inglaterra em que independência das colónias foi objecto de diálogo e concertação. A França, que concedeu direitos sindicais, aboliu o indigenato desde 1946 e procurou integrar os representantes das colónias no parlamento, no entanto tentou pelas armas dominar os movimentos independentistas. Mas a maioria dos presidentes das repúblicas dos países francófonos passou pelo parlamento francês onde teve o treino da democracia, e alguns como Senghor e Houphouet Boigny chegaram a ser ministros na Terceira Republica. Quanto a Portugal, em caso algum quis saber do exemplo dado pelas potências colonizadoras, tão renitente era o ditador Salazar em seguir contra os ventos da História. Pelo contrário, a partir de 1933 foi estabelecida a censura, criada a PIDE e proibido o movimento associativo e entre ele a Maçonaria, que teve um papel importante em Cabo Verde. Amílcar Cabral, que conhecia os movimentos pacifistas, tanto mais que deu o nome de Indira a uma das suas filhas, procurou sempre dialogar com o governo colonial e foi quase forçado a entrar na luta de libertação, inspirando-se no seguinte lema (apoiado na cultura com a bela frase): a luta de libertação é um acto cultura.
O Governo colonial, com a conivência da Igreja Católica e mercê do seu aparelho repressor, conseguiu sustentar o seu regime autocrático com quadros dóceis, temerosos de que uma simples atitude crítica pusesse em causa os seus postos de trabalho e os seus privilégios. O curioso, mas não de todo surpreendente, é que alguma dessa gente, numa atitude servil, aderiu imediatamente ao PAIGC, trocando as voltas às suas convicções, se é que na verdade houvesse alguma, o que é perfeitamente natural depois da clausura dos espíritos ao longo de décadas. Assim, não havendo sindicatos e nem associativos, que podiam ser geradores de partidos políticos ou de lideranças cívicas suficientemente estribadas, o PAIGC, ao chegar a Cabo Verde com um treino politico importante, encontrou a adesão imediata das massas populares sedentas de justiça social, de salários justos e da liberdade de que o regime colonial lhes tinha coarctado. E por mais aceitáveis que fossem as intenções dos neófitos partidos UDC ou a UPIC, alguns dos seus membros também vítimas do regime colonial, mas com o ónus do seu silêncio comprometedor durante a vigência do regime deposto, a sua mensagem não encontrou eco na sociedade, até porque o ambiente se tornou pouco favorável ao confronto livre das ideias. O 25 de Abril caiu de surpresa  e os revolucionários dirão que se erros cometidos houve foi devido a um percurso diferente do dos outros regimes coloniais. Mas quem não erra é aquele que nunca fez nada..” …“A descolonização é uma questão violenta, dizia Frantz Fanon, um dos teóricos da descolonização e da negritude e que mais influenciou o Amílcar Cabral e muitos patrícios da minha geração…..Embora a formação teórica marxista de Amílcar Cabral, ninguém pode afirmar qual o modelo económico e social que seria aplicado nos dois países. Do que estou certo é que ele nunca iria excluir do debate sobre o destino da Nação qualquer cabo-verdiano, como aconteceu aqui em França com De Gaulle, que aliás foi buscar o André Malraux, antigo companheiro de Trotsky na guerra da Espanha, para o Ministério da Cultura.”

Recentemente, ressurgiu uma corrente fundamentalista/irredentista, que revisita e reactualiza o discurso do período revolucionário reinvocando agora a problemática da escravatura (que há muito tinha desaparecido do imaginário cabo-verdiano, embora revisitado depois desde a Independência). Ela, para além de evocar a clássica recriminação anticolonial, acusando a elite colonial de ser aliada do colonialismo e do regime salazarista, vai mais longe e acusa-a de ser o principal mentor de um sistema que vigorava em Cabo Verde e que é caracterizada de racista por subjugar e reprimir as raízes africanas do arquipélago. A herança da escravatura em Cabo Verde, que consistia no seu papel como placa giratória do tráfico internacional e mesmo na sua prática no território, envolveria não somente a potência colonial mas também esclavagistas cabo-verdianos (a dita elite) cujo papel era importante se não determinante. Ao levantar esta questão das compensações pelo regime de escravatura em Cabo Verde, que foi abolido em meados do século XIX, está-se a associar, implicitamente, a potência administrante colonial a um possível processo de ressarcimento que não deixará de amplificar e complexificar o âmbito da aplicação dessa Lei da Reconciliação Nacional. Um comentário à notícia (5) exprime esta corrente de opinião: “ … foi, de facto, um grande erro não termos nacionalizado, depois da Independência, todas as terras e empresas dos colonizadores e estrangeiros, em Cabo Verde, como fizeram os nossos manos palopianos… Conceder, de mãos beijadas, grande parte do território nacional ou pagar milhões de dólares ou euros aos herdeiros dos antigos colonizadores e dos estrangeiros, isto é um assunto muito sério, isto é hipotecar ou perder, de vez, a própria INDEPENDÊNCIA NACIONAL, o que nos custou muito caro, o nosso orgulho maior como POVO INDEPENDENTE. Se for possível lutar outra vez, vamos lutar. Vamos lutar pela nossa SEGUNDA INDEPENDÊNCIA. Que as lições de CABRAL nos sirvam de exemplos; que as acções dos nossos bravos e verdadeiros combatentes da Pátria nos sirvam de inspiração“ ou “Os deputados aprovam leis que prejudicam, Cabo Verde e favorecem o colonialismo…”  ou “De acordo. Primeiro paguem a Escravatura de Negros vendidos como alimárias, depois de nativos humilhados, sem escolas e sem hospitais, o País herdado sem sentinas, nem latrinas, nem estradas, nem coisas mais elementares de saúde publica…
Mas convenhamos que esta questão da Escravatura poderá extravasar o horizonte geográfico e temporal da sua incidência (Portugal e Cabo Verde), tornando-se numa questão global e permanente. Todavia, embora se perceba esta argumentação, este assunto não pode ser debatido de ânimo leve e no quadro da Lei em questão, pois não é lícito Cabo Verde ter de assumir o protagonismo de uma tal cruzada, sobretudo quando os países africanos deixaram há muito tempo cair o pan-africanismo revolucionário e reivindicativo e existem ainda alguns países que praticam escravatura. Ou não fosse precisamente através do Tráfico de Escravos que se deu à luz nas nossas ilhas o actual povo cabo-verdiano em toda a sua riqueza e diversidade.

 Do outro quadrante, os que analisam a problemática de um ponto de vista técnico-político estrito, destacando os novos valores democráticos ao abrigo da actual ordem jurídica e constitucional democrática e de direitos do Homem, interrogam-se se é lícito falar de ‘amnistia’ quando as vítimas não cometeram crime político algum comprovado e demonstrado, para além de simplesmente terem sido os perfeitos anti-heróis da situação revolucionária e de estarem na oposição. Nesta perspectiva, Armindo Ferreira, num artigo publicado há anos (9) em que defende “RECONCILIAÇÃO, SIM! INDULTO OU AMNISTIA, NÃO!”, escreve: “Ao tentar escamotear a realidade, com a palavra escrita, o Governo fez um mau registo histórico e, por via disto, prestou um péssimo serviço à História. O Governo não pode pensar que no processo é apenas mediador, como pretende. É parte. Como o foi nas condecorações. Não pode por isso haver reconciliação se ele insiste em condecorar, e tratar como heróis, os responsáveis directos pelos acontecimentos de 1974/75, que diz condenar, e fazer das suas vítimas criminosos que ora pretende artificiosa e sub-repticiamente “indultar ou amnistiar”….”Fazer a reconciliação apenas reparando materialmente os prejuízos causados é negar a sua essência. A vítima não está à procura de dádivas ou esmolas do Governo em troca da sua honra ferida. Ela quer justiça! A reparação implica também a restituição da dignidade ultrajada. E isto só se consegue com humildade e nunca com arrogância e sobranceria como a manifestada no título do artigo 3º da proposta de lei: “Reabilitação e reinserção na comunidade política”. Talvez, por descuido, não se tenha feito a análise sociológica dos vocábulos “reabilitação” e “reinserção”. Não é abonatória para vítimas… possivelmente se aplica bem a criminosos, a marginais!” Efectivamente, pergunto, como é possível ter o descaso de pretender indultar/amnistiar inocentes e vítimas? “…. “É assim que, p.e., no ponto 2 dessa “Exposição de motivos”, escreve: Em 1974/75, alguns cidadãos, e de entre eles, funcionários públicos, foram internados no Campo de Chão, e depois expatriados para Portugal, com o fundamento de que constituíam perigo para o processo de descolonização.” (O sublinhado é meu)….. Chamar internamento ao encarceramento de um punhado de compatriotas, durante meses, sem culpa formada, e rebaptizar o Campo de Concentração do Tarrafal como Campo de (internamento) de Chão não é retórica  ou figura de estilo, mas sim uma total desconsideração e desrespeito pela nossa História  e por todos aqueles, sem excepção, que por lá passaram e sofreram na alma e no corpo os efeitos da prepotência, da intolerância e da perseguição. É uma tentativa pouco séria e pouco elegante de reescrever a História.” …” Ainda no mesmo artigo – o 3º – há um exercício do absurdo que é o de nivelar as monstruosidades, os desmandos e as tropelias de 1974/75 com as acções praticadas, “na instalação e consolidação da democracia pluralista”, isto é, de acordo com as próprias palavras do Governo, no exercício da democracia. Não é apenas o que popularmente se diz juntar alhos com bugalhos mas sobretudo procurar a quadratura do círculo. Mas para haver reconciliação, insisto, tem que haver um pedido formal de desculpa. O arrependimento. O mea culpa! O Governo que em nome do Estado faz condecorações para acontecimentos de há trinta anos, em nome desse mesmo Estado tem legitimidade e o dever de pedir formalmente desculpas por excessos cometidos nessa mesma altura. É uma questão de coerência. E o PAICV que se diz herdeiro dos activos do PAIGC deve igualmente assumir a herança dos seus passivos. Noblesse oblige!”
   Assim, segundo esta linha de pensamento, não bastam eventuais indemnizações a expropriados da Independência, impõe-se um pedido de desculpas por parte do Estado, mas poderá ser o precedente para que todos os que se consideram vítimas e lesados materialmente e moralmente do processo de descolonização em Cabo Verde e do processo revolucionário subsequente, exijam, para além das devidas desculpas políticas, compensações e indemnizações.
Sobre este assunto Arsénio de Pina afirma (1,2): “Só muito mais tarde é que me fui apercebendo da realidade, mas sem acreditar que os governantes principais estivessem ao corrente das anomalias. Foi a partir daí que botei a mão na pena, embora mansamente e sem meter a boca no trombone para não ferir eventuais inocentes. O artigo mais revulsivo foi produzido em 1988 e levou seis meses a ser publicado no Voz Di Povo, e só o foi por ter ameaçado publicá-lo noTerra Nova, onde falava da nossa socialização da Medicina e da necessidade de se entrar no multipartidarismo. Constou-me que esse número do jornal se esgotou na Praia e houve gente a fazer fotocópias do mesmo”. Embora condenando os actos delituosos do período revolucionário, Arsénio de Pina não acredita nas boas intenções da UDC “por os seus dirigentes terem estado conluiados com o governo colonial e haver risco neocolonial pelas posições defendidas por Spínola, e a UPIC não dispor de força para levar avante a sua política. Somente o PAIGC, no contexto revolucionário que se vivia no mundo lusófono, poderia, como fez, levar à independência, e teria tido melhores resultados, causando menos sofrimento a muito boa gente (que classifiquei num artigo às direitas que foi considerada da direita) que foi ofendida, caluniada, forçada a abandonar o país, ou presa por simplesmente discordar da sua política, se os seus dirigentes não se tivessem empolado de arrogância e tornado intratáveis, impedindo-os de ouvir a opinião de pessoas competentes, experientes e idóneas que não militavam no Partido. A infalibilidade, somente papal, e mesmo esta, embora limitada a assuntos de fé, contestável.”

Ou seja, perante os traumas do período de transformação ainda em curso, existem na população cabo-verdiana vários ressentimentos antagónicos e problemas do foro psico-político que só podem ser resolvidos com uma serena reflexão e a aceitação da irreversibilidade das consequências de um processo histórico revolucionário que ultrapassou tudo e todos, e por fim o Reconhecimento, o Perdão e a Reconciliação, ou seja, a Normalização.
É, pois, minha opinião que a problemática aqui em discussão não está minimamente clarificada, sobram ainda muitas pontas soltas para uma cabal compreensão do processo e do papel exercido pelos principais protagonistas. Por outro lado, a questão da Reconciliação merece uma melhor atenção e aprofundamento. Nesse sentido, devia-se constituir uma Comissão Nacional séria e independente, com um mandato claro e objectivo, para se investigar toda a época em causa, analisar arquivos, recolher depoimentos, ouvir os protagonistas ainda vivos, em ordem a apurar os factos e a esclarecer as responsabilidades, porque só assim se contribui para que a História se escreva com verdade e não se confunda com a propaganda política ou com as versões desencontradas dos diferentes protagonistas. As conclusões do trabalho dessa Comissão deverão ser do conhecimento público, para que nenhuma dúvida paire sobre a linearidade da intenção de abrir caminho para uma verdadeira Reconciliação Nacional. É hora de virar definitivamente esta página dolorosa, repensar Cabo Verde e unir toda a nação cabo-verdiana em torno dos difíceis desafios do futuro: rumo às necessárias e inadiáveis reformas de que carece o país.

Janeiro de 2015                             
José Fortes Lopes

Bibliografia:
1-Da Independência à 1ª Via: 1974, a tomada do Poder pelo PAIGC e a fuga da Elite Cabo-verdiana
2-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/02/7754-o-lugar-da-historia-2.html#comment-form
3- http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106666&ak=1
4-GUINÉ – BISSAU E CABO VERDE: DA UNIDADE À SEPARAÇÃO Por Antero da Conceição Monteiro Fernandes PORTO 2007;http://pt.slideshare.net/barrosjonatas/guine-bissau-e-cabo-verde-da-unidade-a-separacao

5- Santo Antão: Ribeira Grande celebra 20 de Janeiro com homenagem aos combatentes do Grupo de Moselle

http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106592&ak=1#ancre_comm

6-http://www.familcarcabral.org.cv/index.php?option=com_content&view=article&id=293:historia-de-jaime-mota&catid=131&Itemid=567

7-http://rtc.cv/index.php?paginas=45&id_cod=38148

8-Tricontinentale, Quand Che Guevara, Ben Barka, Cabral, Castro et Hô Chi Minh préparaient la révolution mondiale (1964-1968). Roger Faligot; Edition La Découverte

http://www.editionsladecouverte.fr/catalogue/index-Tricontinentale-9782707174079.html

9-http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2015/01/reconciliacao-sim-indulto-ou-amnistia.html
10-http://madeincaboverde.blogspot.pt/2012/03/roberto-duarte-silva-quimico-natural-de.html
11-http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/371892.html
12- http://arrozcatum.blogspot.pt/2014/05/6878-crioulos-ilustres.html