Comunicação na Conferência promovida pelo Instituto para a
Democracia e o Progresso (IDP)que ocorre na Praia nos dias 20 e 21 de Abril de
2018 intitulada O Sistema Político Cabo-verdiano e a Participação dos Cidadãos
– uma abordagem construtiva
INTRODUÇAO
Neste artigo, apresento um conjunto de ideias que foram defendidas
na minha recente intervenção na conferência “O Sistema Político e o Exercício da Democracia em Cabo
Verde: uma abordagem construtiva” promovida pelo Instituto para a Democracia e
o Progresso, na Praia, nos dias 20 e 21 de Abril de 2018. Apesar de não serem
ideias novas, já que vêm sendo defendidas há anos pelo Grupo de Reflexão da
Diáspora (um think tank informal com
mais de uma década a pensar Cabo Verde), este artigo reflecte todo o nosso
pensamento actual, tendo em conta a evolução do debate e os novos
posicionamentos.
É cada dia mais consensual que é necessário
avançar para a descentralização de Cabo Verde, pondo termo a décadas de
centralismo, sistema que bloqueia processos e dinâmicas regionais e locais. O actual sistema político cabo-verdiano está,
pois, numa encruzilhada, prenhe de um novo paradigma que inaugurará um
novo capítulo da democracia, que alguns já consideram o advento da Terceira República.
O fim do
centralismo e a emergência da regionalização não são, todavia, as únicas
exigências que se perfilam no elenco de reformas que julgamos imprescindíveis
para a reconfiguração do Estado cabo-verdiano. Com efeito, a regionalização é
algo tão importante que não pode ser descontextualizado de todo o conjunto de
mudanças que o país exige para a sua modernização e inserção no mundo moderno. Para
perceber isso é forçoso ir à génese do problema. Cabo Verde, como estado
independente, foi pensado, concebido e formatado como se fosse um país
continental: as suas referências estruturais e normativas são, em geral, as de
realidades e modelos continentais, o que, logo à partida, dificulta o melhor
equacionamento das problemáticas específicas que se prendem com a projecção do
seu desenvolvimento económico e social. Ora, um país arquipelágico exige
metodologias e ferramentas específicas, mais adequadas à sua realidade
humano-geográfica, e a descentralização se identifica como o lugar geométrico
de todas as soluções indispensáveis para uma boa governação do
arquipélago/estado e do seu desenvolvimento equilibrado.
Nesta
perspectiva, o Estado cabo-verdiano carece de uma reforma tão profunda e
alargada que obrigará a rever e a ajustar os alicerces e as estruturas de todo o
edifício político, tanto a nível central como local. O novo nível de poder
local, que surge como um nível intermédio, entre o poder central e o poder
autárquico, não pode ser concebido como peça isolada do puzzle, sob pena de
dificuldades e problemas com o seu encaixamento no conjunto. A regionalização
deve implicar o redimensionamento de todo o estado central e da administração
pública, de modo a permitir a inclusão da nova estrutura de poder. Obviamente,
esta tarefa, pela sua complexidade e pelas suas demandas, só pode ser levada a
cabo com um faseamento no tempo, após terem-se definido claramente objectivos e
metas.
1-A Encruzilhada actual
a) O
Conselho de Ministros, reunido no passado dia 29 de Março, aprovou “a proposta
de lei do MPD que cria e regula o modelo de regionalização”.
b) O PAICV,
o principal partido de oposição, apresentou ao país uma “Proposta de Lei da
Regionalização”, que muitos já qualificam de bastante avançada.
As
iniciativas políticas, agora assumidas pelo MPD e o PAICV, revestem-se de uma
extrema importância para o futuro de Cabo Verde, colocando o actual sistema
político perante uma verdadeira encruzilhada, irreversível nas opções que
coloca:
-O governo
tenderá a cumprir o programa do seu partido, o MPD, tal como prometera quando
disputou o pleito eleitoral em 2016: avançar com a Regionalização durante a
presente legislatura.
-O PAICV
cumpre a sua missão de principal de partido de oposição, apresentando um
contributo tendente a melhor envolver-se no debate, que é seguramente uma
questão de regime. Para além disso, reconhece a necessidade de reformas mais
alargadas do que uma regionalização entendida como medida isolada, e força a
obtenção de um consenso com o MPD, actual partido do poder. A atitude é tanto
mais louvável e democrática quanto a aprovação
do diploma em sede parlamentar necessita de uma maioria qualificada dos
deputados, ou seja, o voto de 2/3 dos
deputados nacionais. Por isso, é
importante que uma discussão clara e sincera faça luz sobre todas as questões
pertinentes envolvendo a problemática, de modo a melhor definir os contornos
deste processo e a amplitude dos seus desígnios, e para que se reúnam consensos
alargados sobre as linhas fundamentais da regionalização e das reformas que se
impõem. E, sobretudo, para que haja
abertura de espírito, clarividência cívica e intelectual e se assumam as
responsabilidades políticas no sentido de se apreenderem o significado e a
importância das medidas reformistas e de efeito concorrente, para amplificar e
cimentar a profunda reorganização política e administrativa de que Cabo Verde
carece.
2-O
Contexto da Regionalização/Reformas em Cabo Verde
A regionalização defronta-se com uma realidade que é poliédrica nos seus
aspectos humano-espaciais, económicos, sociais, ecossistémicos e culturais. A
incipiente sociedade civil cabo-verdiana está bastante fragmentada pelo
partidarismo e por um paroquialismo paralisante e por um nível fraco de
participação e cidadania. Os órgãos de informação, os meios de comunicação,
reflectem as limitações do país e o seu nível cultural. Neste sentido, compete
às elites e aos partidos mobilizar a sociedade civil em torno do debate cívico,
criando assim condições para um verdadeiro processo democrático participativo.
É portanto imperioso aprofundar a análise de todo o quadro de interacção entre
as razões do Estado e as dinâmicas sociais que determinarão o grau de sucesso
da regionalização e das reformas que a enquadram:
Ø Clarificação de conceitos e objectivos em torno
da regionalização e das reformas, para que se distinga a diferença entre o que
é uma mera instituição formal e o que é susceptível de produzir rupturas
sociais positivas que alavanquem o progresso da economia e contribuam para a
melhoria do bem-estar das populações;
Ø Um enunciado claro da regionalização e das
reformas que permitam edificar uma estrutura de Estado mais compatível com a
fisionomia geográfica de um arquipélago, naturalmente regionalizado mas com óbvias
soluções de sustentabilidade, tendo em consideração a realidade socioeconómica
de Cabo Verde.
Por isso, a regionalização não pode ser como um emplastro no actual
sistema, deve implicar o redimensionamento e reconfiguração de todo o Estado central
e da administração pública, de modo a permitir a inclusão do novo poder local,
evitando redundâncias e desperdícios. A criação
de um Estado convenientemente
reestruturado será condição para não onerar os custos do poder regional, já que
os detractores da regionalização recorrem incessantemente ao argumento dos
custos.
Pensamos (o Grupo de Reflexão da Diáspora) que o
Estado Cabo-verdiano deve ser reorganizado nos seguintes moldes:
Ø Um aparelho de Estado descartado de artefactos
institucionais e organismos inúteis;
Ø Um aparelho de Estado dimensionado às
características regionais e arquipelágicas de Cabo Verde, integrando o poder
regional, tendo como meta esta tríade de objectivos: descentralização;
desburocratização; democratização.
3- Elenco
de Propostas Reformistas associadas à Regionalização de Cabo Verde
q Criação de regiões dotadas de competências e
atribuições transferidas do governo central: economia; transportes; assuntos
sociais; educação primária e secundária; gestão hospitalar; coordenação dos
sistemas regionais de segurança e protecção civil; planeamento regional;
ordenamento do território; administração regional nas áreas mencionadas;
q Emagrecimento, reconfiguração e reorientação
estratégica do poder central, virado para as funções essenciais do Estado
soberano: justiça, diplomacia, defesa, segurança, finanças e coordenação geral;
q Extinção do Tribunal Constitucional, cujas
atribuições podem ser exercidas por uma secção especializada integrada no
Supremo Tribunal de Justiça;
q Extinção de demais órgãos ou instituições
redundantes, ou que não sejam essenciais à funcionalidade do Estado;
q Reconfiguração do actual dispositivo autárquico, adequando-o à realidade do
novo nível de poder – o regional – o que exige a reformulação das atribuições
do município e em alguns casos a extinção daqueles cuja criação se deveu mais
ao clientelismo político do que a uma lógica da organização do espaço. Esta
medida é curial para evitar áreas de possível conflito de competências no
interior das regiões, devendo ficar claramente definidas na lei as situações de
tutela e dependência hierárquica;
q Redimensionamento das Assembleias Nacionais e
Municipais (redução drástica do número de deputados nacionais e municipais);
q Aliviar a dimensão macrocéfala do Estado
central mediante a deslocalização, para outras ilhas a designar, de órgãos, serviços
e instituições;
q A Introdução de um sistema presidencialista, em
que o chefe do executivo é por acumulação o chefe do Estado, nos parece o
melhor modelo para um Cabo Verde descentralizado e regionalizado. Este modelo
de representação do poder soberano permite uma importante redução de recursos
humanos e financeiros, além de eliminar um acto eleitoral. A concentração do
poder no presidente poderá ser equilibrada com os poderes regionais e uma democracia
local revigorada e outras instituições democráticas que funcionarão como contrapoderes;
q Adopção de um poder legislativo bicameral,
constituído por uma Câmara Baixa, formada por um número mais reduzido de
deputados eleitos, e uma Câmara Alta, integrando uma representação igualitária
de todas as ilhas (O Presidente do Governo Regional e o Presidente da
Assembleia Regional). Este sistema estabelece maior equilíbrio na representação
da vontade popular, na medida em que, contrabalançando a hegemonia dos números tout court, evita que a ilha mais
populosa condicione sempre a orientação das decisões políticas nacionais,
subvertendo assim a democraticidade inerente ao diálogo igualitário entre as
regiões;
q Repensar o estatuto e o papel das Forças Armadas. A par do conjunto de medidas
reformistas, a existência de Forças Armadas, no seu figurino clássico, para um
país insular e com parcos recursos, como é Cabo Verde, é questionável. Países
como Costa Rica, Granada e alguns Estados insulares do Pacífico não têm ou
prescindiram do aparelho militar em benefício de forças policiais, confiando a
sua segurança a sistemas regionais. A ideia é que Cabo Verde atingiria um duplo
objectivo: investiria nas forças de segurança de terra e mar os recursos
humanos e financeiros absorvidos pelas Forças Armadas, potenciando a sua
eficácia, ao mesmo tempo que pouparia meios em proveito do investimento público
em outros sectores vitais do Estado.
4-Medidas
Essenciais de Acompanhamento das Reformas para a Racionalização do País
● Reduzir consideravelmente a espessura do Estado central,
descentralizando, desconcentrando e deslocalizando organismos públicos, a
definir, para que os recursos orçamentais de sustentação do aparelho administrativo
sejam reafectados de uma forma mais diversificada em vez de concentrados no
mesmo espaço. O relançamento da economia nas regiões depende muito desta
medida;
● Rever a organização autárquica do país, reformulando o conceito de
município, elegendo em seu lugar uma estrutura subdimensionada, mais ajustável
à nova realidade regional e arquipelágica. A questão orçamental preside também
a esta medida, pela mesma razão aduzida na alínea anterior;
● Como medida transversal a qualquer solução regionalizante, promover uma
melhor relação das comunidades emigrantes/diaspóricas com as suas regiões de
origem, mediante o apoio ao associativismo e a criação de órgãos
representativos que lhes permitam um maior contacto com as políticas nacionais,
sobretudo onde lhes caiba pronunciar-se mais directamente sobre os seus
direitos de cidadania e sobre incentivos à sua reintegração.
5-Implicações
sociais e políticas das Reformas
No cenário que desenhamos e desejamos, perspectivamos os seguintes
ganhos:
Ø A revalorização cívica do cidadão cabo-verdiano;
Ø A reconfiguração e modernização das forças
partidárias;
Ø Uma renovação e clarificação ideológica dos dois
principais partidos políticos, o PAICV e o MpD;
Ø Uma normalização e um aperfeiçoamento do sistema
político cabo-verdiano;
Ø Maior arejamento da democracia: o sistema fica
mais capacitado para sua valorização institucional.
É indispensável a aprendizagem cívica e a pedagogia educativa essenciais
à afirmação da democracia, com todo o seu escol de virtudes, em que os direitos
se rivalizam com exigências e deveres, duas faces que são da mesma moeda.
Importante é que tudo se traduza numa consciencialização ética e numa outra
atitude e sentido de responsabilidade para com a vida comunitária, que empenhe
o cidadão comum mas principalmente os que se candidatam a cargos públicos ou
carreiras políticas.
6-
Conclusão
-É num quadro geral de reformas alargadas e bem concebidas que entendemos
dever inserir-se a nova realidade do poder que se perspectiva para Cabo Verde
para os níveis nacional, regional e autárquico:
-Necessidade de uma ampla reforma do Estado;
-Reabilitação das ilhas/regiões para um papel mais condizente com as suas
vocações naturais;
-Promoção de um
modelo de desenvolvimento sustentável, multipolar, plural e aberto ao mundo;
São condições necessárias para que Cabo Verde se torne um país mais
moderno, mais próspero e na vanguarda da democracia.
Mindelo,
aos 25 de Abril de 2018
José
Fortes Lopes
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