segunda-feira, 17 de junho de 2019



                         
Propostas Reformistas para uma melhor 
Regionalização de Cabo Verde       

Comunicação na Conferência promovida pelo Instituto para a Democracia e o Progresso (IDP)que ocorre na Praia nos dias 20 e 21 de Abril de 2018 intitulada O Sistema Político Cabo-verdiano e a Participação dos Cidadãos – uma abordagem construtiva                                                       

INTRODUÇAO
Neste artigo, apresento um conjunto de ideias que foram defendidas na minha recente intervenção na conferência “O Sistema Político e o Exercício da Democracia em Cabo Verde: uma abordagem construtiva” promovida pelo Instituto para a Democracia e o Progresso, na Praia, nos dias 20 e 21 de Abril de 2018. Apesar de não serem ideias novas, já que vêm sendo defendidas há anos pelo Grupo de Reflexão da Diáspora (um think tank informal com mais de uma década a pensar Cabo Verde), este artigo reflecte todo o nosso pensamento actual, tendo em conta a evolução do debate e os novos posicionamentos.

É cada dia mais consensual que é necessário avançar para a descentralização de Cabo Verde, pondo termo a décadas de centralismo, sistema que bloqueia processos e dinâmicas regionais e locais. O actual sistema político cabo-verdiano está, pois, numa encruzilhada, prenhe de um novo paradigma que inaugurará um novo capítulo da democracia, que alguns já consideram o advento da Terceira República.

O fim do centralismo e a emergência da regionalização não são, todavia, as únicas exigências que se perfilam no elenco de reformas que julgamos imprescindíveis para a reconfiguração do Estado cabo-verdiano. Com efeito, a regionalização é algo tão importante que não pode ser descontextualizado de todo o conjunto de mudanças que o país exige para a sua modernização e inserção no mundo moderno. Para perceber isso é forçoso ir à génese do problema. Cabo Verde, como estado independente, foi pensado, concebido e formatado como se fosse um país continental: as suas referências estruturais e normativas são, em geral, as de realidades e modelos continentais, o que, logo à partida, dificulta o melhor equacionamento das problemáticas específicas que se prendem com a projecção do seu desenvolvimento económico e social. Ora, um país arquipelágico exige metodologias e ferramentas específicas, mais adequadas à sua realidade humano-geográfica, e a descentralização se identifica como o lugar geométrico de todas as soluções indispensáveis para uma boa governação do arquipélago/estado e do seu desenvolvimento equilibrado.
Nesta perspectiva, o Estado cabo-verdiano carece de uma reforma tão profunda e alargada que obrigará a rever e a ajustar os alicerces e as estruturas de todo o edifício político, tanto a nível central como local. O novo nível de poder local, que surge como um nível intermédio, entre o poder central e o poder autárquico, não pode ser concebido como peça isolada do puzzle, sob pena de dificuldades e problemas com o seu encaixamento no conjunto. A regionalização deve implicar o redimensionamento de todo o estado central e da administração pública, de modo a permitir a inclusão da nova estrutura de poder. Obviamente, esta tarefa, pela sua complexidade e pelas suas demandas, só pode ser levada a cabo com um faseamento no tempo, após terem-se definido claramente objectivos e metas.
1-A Encruzilhada actual
a) O Conselho de Ministros, reunido no passado dia 29 de Março, aprovou “a proposta de lei do MPD que cria e regula o modelo de regionalização”.
b) O PAICV, o principal partido de oposição, apresentou ao país uma “Proposta de Lei da Regionalização”, que muitos já qualificam de bastante avançada.
As iniciativas políticas, agora assumidas pelo MPD e o PAICV, revestem-se de uma extrema importância para o futuro de Cabo Verde, colocando o actual sistema político perante uma verdadeira encruzilhada, irreversível nas opções que coloca:
-O governo tenderá a cumprir o programa do seu partido, o MPD, tal como prometera quando disputou o pleito eleitoral em 2016: avançar com a Regionalização durante a presente legislatura.
-O PAICV cumpre a sua missão de principal de partido de oposição, apresentando um contributo tendente a melhor envolver-se no debate, que é seguramente uma questão de regime. Para além disso, reconhece a necessidade de reformas mais alargadas do que uma regionalização entendida como medida isolada, e força a obtenção de um consenso com o MPD, actual partido do poder. A atitude é tanto mais louvável e democrática quanto a aprovação do diploma em sede parlamentar necessita de uma maioria qualificada dos deputados, ou seja, o voto de 2/3 dos deputados nacionais. Por isso, é importante que uma discussão clara e sincera faça luz sobre todas as questões pertinentes envolvendo a problemática, de modo a melhor definir os contornos deste processo e a amplitude dos seus desígnios, e para que se reúnam consensos alargados sobre as linhas fundamentais da regionalização e das reformas que se impõem. E, sobretudo, para que haja abertura de espírito, clarividência cívica e intelectual e se assumam as responsabilidades políticas no sentido de se apreenderem o significado e a importância das medidas reformistas e de efeito concorrente, para amplificar e cimentar a profunda reorganização política e administrativa de que Cabo Verde carece.

2-O Contexto da Regionalização/Reformas em Cabo Verde
A regionalização defronta-se com uma realidade que é poliédrica nos seus aspectos humano-espaciais, económicos, sociais, ecossistémicos e culturais. A incipiente sociedade civil cabo-verdiana está bastante fragmentada pelo partidarismo e por um paroquialismo paralisante e por um nível fraco de participação e cidadania. Os órgãos de informação, os meios de comunicação, reflectem as limitações do país e o seu nível cultural. Neste sentido, compete às elites e aos partidos mobilizar a sociedade civil em torno do debate cívico, criando assim condições para um verdadeiro processo democrático participativo. É portanto imperioso aprofundar a análise de todo o quadro de interacção entre as razões do Estado e as dinâmicas sociais que determinarão o grau de sucesso da regionalização e das reformas que a enquadram:
Ø  Clarificação de conceitos e objectivos em torno da regionalização e das reformas, para que se distinga a diferença entre o que é uma mera instituição formal e o que é susceptível de produzir rupturas sociais positivas que alavanquem o progresso da economia e contribuam para a melhoria do bem-estar das populações;
Ø  Um enunciado claro da regionalização e das reformas que permitam edificar uma estrutura de Estado mais compatível com a fisionomia geográfica de um arquipélago, naturalmente regionalizado mas com óbvias soluções de sustentabilidade, tendo em consideração a realidade socioeconómica de Cabo Verde.
Por isso, a regionalização não pode ser como um emplastro no actual sistema, deve implicar o redimensionamento e reconfiguração de todo o Estado central e da administração pública, de modo a permitir a inclusão do novo poder local, evitando redundâncias e desperdícios. A criação de um Estado convenientemente reestruturado será condição para não onerar os custos do poder regional, já que os detractores da regionalização recorrem incessantemente ao argumento dos custos.
Pensamos (o Grupo de Reflexão da Diáspora) que o Estado Cabo-verdiano deve ser reorganizado nos seguintes moldes:
Ø  Um aparelho de Estado descartado de artefactos institucionais e organismos inúteis;
Ø  Um aparelho de Estado dimensionado às características regionais e arquipelágicas de Cabo Verde, integrando o poder regional, tendo como meta esta tríade de objectivos: descentralização; desburocratização; democratização.

3- Elenco de Propostas Reformistas associadas à Regionalização de Cabo Verde
q  Criação de regiões dotadas de competências e atribuições transferidas do governo central: economia; transportes; assuntos sociais; educação primária e secundária; gestão hospitalar; coordenação dos sistemas regionais de segurança e protecção civil; planeamento regional; ordenamento do território; administração regional nas áreas mencionadas;
q   Emagrecimento, reconfiguração e reorientação estratégica do poder central, virado para as funções essenciais do Estado soberano: justiça, diplomacia, defesa, segurança, finanças e coordenação geral;
q  Extinção do Tribunal Constitucional, cujas atribuições podem ser exercidas por uma secção especializada integrada no Supremo Tribunal de Justiça;
q  Extinção de demais órgãos ou instituições redundantes, ou que não sejam essenciais à funcionalidade do Estado;
q  Reconfiguração do actual dispositivo autárquico, adequando-o à realidade do novo nível de poder – o regional – o que exige a reformulação das atribuições do município e em alguns casos a extinção daqueles cuja criação se deveu mais ao clientelismo político do que a uma lógica da organização do espaço. Esta medida é curial para evitar áreas de possível conflito de competências no interior das regiões, devendo ficar claramente definidas na lei as situações de tutela e dependência hierárquica;
q  Redimensionamento das Assembleias Nacionais e Municipais (redução drástica do número de deputados nacionais e municipais);
q   Aliviar a dimensão macrocéfala do Estado central mediante a deslocalização, para outras ilhas a designar, de órgãos, serviços e instituições;
q  A Introdução de um sistema presidencialista, em que o chefe do executivo é por acumulação o chefe do Estado, nos parece o melhor modelo para um Cabo Verde descentralizado e regionalizado. Este modelo de representação do poder soberano permite uma importante redução de recursos humanos e financeiros, além de eliminar um acto eleitoral. A concentração do poder no presidente poderá ser equilibrada com os poderes regionais e uma democracia local revigorada e outras instituições democráticas que funcionarão como contrapoderes;
q  Adopção de um poder legislativo bicameral, constituído por uma Câmara Baixa, formada por um número mais reduzido de deputados eleitos, e uma Câmara Alta, integrando uma representação igualitária de todas as ilhas (O Presidente do Governo Regional e o Presidente da Assembleia Regional). Este sistema estabelece maior equilíbrio na representação da vontade popular, na medida em que, contrabalançando a hegemonia dos números tout court, evita que a ilha mais populosa condicione sempre a orientação das decisões políticas nacionais, subvertendo assim a democraticidade inerente ao diálogo igualitário entre as regiões;
q  Repensar o estatuto e o papel das Forças Armadas. A par do conjunto de medidas reformistas, a existência de Forças Armadas, no seu figurino clássico, para um país insular e com parcos recursos, como é Cabo Verde, é questionável. Países como Costa Rica, Granada e alguns Estados insulares do Pacífico não têm ou prescindiram do aparelho militar em benefício de forças policiais, confiando a sua segurança a sistemas regionais. A ideia é que Cabo Verde atingiria um duplo objectivo: investiria nas forças de segurança de terra e mar os recursos humanos e financeiros absorvidos pelas Forças Armadas, potenciando a sua eficácia, ao mesmo tempo que pouparia meios em proveito do investimento público em outros sectores vitais do Estado.
4-Medidas Essenciais de Acompanhamento das Reformas para a Racionalização do País
● Reduzir consideravelmente a espessura do Estado central, descentralizando, desconcentrando e deslocalizando organismos públicos, a definir, para que os recursos orçamentais de sustentação do aparelho administrativo sejam reafectados de uma forma mais diversificada em vez de concentrados no mesmo espaço. O relançamento da economia nas regiões depende muito desta medida;
● Rever a organização autárquica do país, reformulando o conceito de município, elegendo em seu lugar uma estrutura subdimensionada, mais ajustável à nova realidade regional e arquipelágica. A questão orçamental preside também a esta medida, pela mesma razão aduzida na alínea anterior;
● Como medida transversal a qualquer solução regionalizante, promover uma melhor relação das comunidades emigrantes/diaspóricas com as suas regiões de origem, mediante o apoio ao associativismo e a criação de órgãos representativos que lhes permitam um maior contacto com as políticas nacionais, sobretudo onde lhes caiba pronunciar-se mais directamente sobre os seus direitos de cidadania e sobre incentivos à sua reintegração.
5-Implicações sociais e políticas das Reformas
No cenário que desenhamos e desejamos, perspectivamos os seguintes ganhos:
Ø  A revalorização cívica do cidadão cabo-verdiano;
Ø  A reconfiguração e modernização das forças partidárias;
Ø  Uma renovação e clarificação ideológica dos dois principais partidos políticos, o PAICV e o MpD;
Ø  Uma normalização e um aperfeiçoamento do sistema político cabo-verdiano;
Ø  Maior arejamento da democracia: o sistema fica mais capacitado para sua valorização institucional.
É indispensável a aprendizagem cívica e a pedagogia educativa essenciais à afirmação da democracia, com todo o seu escol de virtudes, em que os direitos se rivalizam com exigências e deveres, duas faces que são da mesma moeda. Importante é que tudo se traduza numa consciencialização ética e numa outra atitude e sentido de responsabilidade para com a vida comunitária, que empenhe o cidadão comum mas principalmente os que se candidatam a cargos públicos ou carreiras políticas.
6- Conclusão
-É num quadro geral de reformas alargadas e bem concebidas que entendemos dever inserir-se a nova realidade do poder que se perspectiva para Cabo Verde para os níveis nacional, regional e autárquico:
-Necessidade de uma ampla reforma do Estado;
-Reabilitação das ilhas/regiões para um papel mais condizente com as suas vocações naturais;
-Promoção de um modelo de desenvolvimento sustentável, multipolar, plural e aberto ao mundo;
São condições necessárias para que Cabo Verde se torne um país mais moderno, mais próspero e na vanguarda da democracia.

Mindelo, aos 25 de Abril de 2018
José Fortes Lopes




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