2-Diagnóstico
da situação actual do país: A problemática do Centralismo versus a
Regionalização. In Jornadas da SEMANA DA REPÚBLICA
Poder
Local/Poder regional na Encruzilhada da Regionalização
Não é novidade que a actual situação
política, administrativa e económica de Cabo Verde se caracteriza por uma
concentração total, na capital do país, dos órgãos de soberania, do aparelho do
Estado, das actividades públicas e privadas e dos centros de decisão. É o
fenómeno que o meu companheiro de grupo, Adriano Miranda Lima, designou por
“Pecado Original”, cometido na concepção e edificação do Estado independente,
em 1975.
Esta metáfora justifica-se porque o
paradigma concentracionário condicionou o desenvolvimento económico, social e
cultural do país como um todo. A sucessão encadeada dos seus efeitos nocivos
deu azo a que a capital se tornasse praticamente no objectivo primário e no fim
exclusivo do próprio Estado e da elite que a constrói, com isso subvertendo-se
a expectativa de igualdade que o ideário da independência criara nos espíritos
dos cidadãos de todas as ilhas. É como um ferrete de que não nos livramos senão
com uma remissão completa do “pecado” cometido, remissão que a todos nos deve
obrigar.
Foi desta maneira que a inércia criada a
favor do centro do país, provocou uma acção centrípeta sobre o resto do
território, absorvendo quadros e população das restantes ilhas, e das
periferias da mesma ilha para a capital, para garantir o funcionamento do
Estado e das empresas, a maioria estatais, ali concentrados. A consequência
imediata foi a macrocefalia da capital e o desequilíbrio regional, com o seu
corolário que é desertificação humana e a carência de recursos humanos nas
periferias, condicionando a gestão das prioridades nacionais e a distribuição
dos recursos, e bloqueando perversamente as energias cívicas dispersas pelo
espaço nacional como pela Diáspora. E como se não chegasse, a criação
artificial de municípios foi mais um factor concorrente para o
sobredimensionamento do Centro e o depauperamento das periferias. Esta situação
é grave porque condiciona drasticamente o Orçamento do Estado, implicando uma
assimetria na distribuição dos recursos. Este é um problema que merece aqui uma
abordagem particularizada, já que é o poder local no seu todo que está em causa,
seja ele municipal ou regional, porque ambos imbrincados na mesma malha
organizativa.
Ora, a criação de um município
justifica-se, acima de tudo, por razões de ordem económica e de eficiência
administrativa, antes da interferência de factores menores e de outro jaez que
grosso modo possam emergir no campo da luta pelo poder, como, por exemplo, estratégias
eleitorais para conquistar a adesão política de comunidades locais em vésperas
de eleições. É um facto inegável que a seguir à independência houve municípios
cuja criação não obedeceu a critérios de racionalidade administrativa, mas a
compromissos político-partidários para captar e fixar clientelas eleitorais.
Alguns desses municípios não passam de ficções autárquicas, destituídos de
fundamento económico, sociológico e administrativo, sem uma clara relação com
um projecto de ordenação territorial e a melhor utilização de fundos públicos.
É impossível não reconhecer a influência do centralismo político na urdidura de
uma proliferação de municípios em Cabo Verde, à revelia de uma reforma da
quadrícula autárquica que teria de basear-se em parâmetros de objectividade,
exequibilidade e utilidade pública.
Na verdade, a ilha de Santiago, que
até à data da independência dispunha de três municípios, acrescentou à sua
quadrícula autárquica mais seis unidades a partir de 1996, com possível fundamento
no crescimento populacional e no respaldo do progresso económico e social. De
facto, a população da ilha cresceu de 182.782 almas em 1970 para 303.499 em
2015, em grande parte mercê da absorção de população de outras ilhas, mas nada
disso justificava que se criassem municípios questionáveis do ponto de vista da
racionalidade administrativa. Quanto à segunda ilha do arquipélago, S. Vicente,
a sua população passou de 31.578 almas em 1970 para 81.014 em 2015. O
crescimento demográfico percentual foi, portanto, similar nas duas ilhas mais
populosas, Santiago e São Vicente, com a diferença de que a taxa de crescimento
económico da primeira superou de longe a da segunda, exactamente pelos efeitos
induzidos do centralismo político. Mas o curioso é que o mesmo factor que
fundamentou o considerável aumento de municípios em Santiago não foi aplicado a
S. Vicente, que continua com um único município. Esta situação é de manifesta
incongruência quando ilhas com metade da população de S. Vicente (S. Antão e
Fogo), ou um sexto (S. Nicolau), têm, respectivamente, três e dois municípios.
Pergunta-se se factores como distância física e acessibilidade têm hoje o mesmo
peso quando outrora justificaram a diversificação de municípios. É claro que
não. As vias terrestres, os meios de transporte e as tecnologias de comunicação
hoje disponíveis aproximam as comunidades umas das outras, tornando irrelevante
a distância entre si. Deslocar-se de automóvel e usar o telefone e a internet
são diferentes de andar de burro ou a pé pelos cutelos fora para levar um
recado. Daqui se deduz que uma das medidas de racionalização económica do país
passa pela extinção de alguns municípios e por uma reconfiguração da malha
autárquica.
Este problema levanta-se com pertinência
quando se vê o peso que o número de municípios representa na ponderação das
fatias orçamentais a atribuir a cada ilha. Cada ilha devia ser tratada do ponto
de vista orçamental em função da realidade global que incorpora, em que
pontificam valores como o peso demográfico e social, o contributo para o PIB e
potencialidades económicas exploráveis em benefício do conjunto nacional. Mas
não, o número de municípios, mesmo que pouco relevantes do ponto de vista
social e económico, tem sido um factor de majoração no critério de distribuição
do Orçamento Geral do Estado, pelo que, nesta conformidade, S. Vicente tem sido
e tende a ser indiscutivelmente prejudicada por só possuir um município. E no
entanto é a segunda ilha do país em todos os parâmetros de avaliação,
designadamente: demografia; peso económico; e importância social e cultural.
Mas outra questão delicada se coloca.
Numa altura em que se prevê um projecto de regionalização para o país, o número
de municípios em cada ilha não é irrelevante na configuração da estrutura do
poder regional. Como o modelo que está nas intenções dos dois principais
partidos é o de região-ilha, com cada ilha a constituir uma unidade regional,
com excepção de Santiago, para a qual se prevêem duas, S. Vicente volta de novo
a confrontar-se com o constrangimento da sua condição de ilha uni-municipal, ao
lado do Sal, Boavista, Maio e Brava. Dado que o poder regional tem sob a sua
tutela jurisdicional os municípios, se há um único município no espaço
regional, suscita-se desde logo um conflito de competências ou então a
necessidade do seu reajustamento entre os dois poderes locais, exigindo
possivelmente uma redefinição e redução das atribuições da câmara municipal.
Caso contrário, pode gerar-se no interior do espaço regional situações de
embaraço e curto-circuito, o que, no entanto, não será tão potencialmente
gravoso nas ilhas uni-municipais menores como o será para a segunda ilha do
país, a qual aspira, com o poder regional, sair da redoma que trava o seu
progresso.
Portanto, temos assim duas realidades
conjugadas que condicionam uma distribuição mais equânime dos recursos e travam
um desenvolvimento mais equilibrado do território nacional: um Estado concentrado e centralizado; um
ordenamento autárquico talvez sobredimensionado na mesma ilha e porventura em
outras que tem que ser questionado ou repensado. Tudo isto traduzindo-se no aprofundamento
das assimetrias regionais e em dotações orçamentais inadequadas
para o equilíbrio do país.
Felizmente que hoje é unânime o
reconhecimento de que o centralismo centrípeto em torno da capital do país é
uma ideologia ultrapassada e uma prática avessa a uma democracia participativa,
porque distorce a lógica e os princípios em que ela se funda. Apesar de se
apregoar ao mundo o exemplo da democracia cabo-verdiana, a verdade é que o
centralismo vigente é antítese de uma verdadeira democracia representativa. O
Estado central até há bem pouco tempo defendia o centralismo como pedra basilar
da sua política de desenvolvimento autocentrado, apontando-o até como condição
da unidade nacional. Ainda bem que essa teoria hoje já não faz coro, com a
realidade a demonstrar quão errado foi conceber a organização
político-administrativa de Cabo Verde como um país continental e
territorialmente contínuo, ignorando a sua condição de arquipélago de dez ilhas
dispersas na imensidão do mar. Estava claro que o nosso país traz na sua
genética uma matriz regional, pela natureza e pela sua própria história, com
toda uma dispersão parcelar a sugerir uma organização que não pode basear-se em
figurinos de países continentais.
Portanto, é ilusório
pensar que se pode avançar com a regionalização colocando pura e simplesmente
uma camada de poder entre o poder municipal e o central, permanecendo tudo
igual como está. A criação do poder regional exige a reconfiguração do poder
autárquico, pois como se diz em linguagem popular, “dois proveitos não cabem no
mesmo saco”. (Continua com 3ª Parte - A Solução 3D para Cabo Verde no âmbito da
Regionalização: Descentralizar, Desburocratizar e Democratizar Cabo Verde)
Praia, 17 de Janeiro de
2018
José Fortes Lopes
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