segunda-feira, 17 de junho de 2019


2-Diagnóstico da situação actual do país: A problemática do Centralismo versus a Regionalização. In Jornadas da SEMANA DA REPÚBLICA
Poder Local/Poder regional na Encruzilhada da Regionalização
        Não é novidade que a actual situação política, administrativa e económica de Cabo Verde se caracteriza por uma concentração total, na capital do país, dos órgãos de soberania, do aparelho do Estado, das actividades públicas e privadas e dos centros de decisão. É o fenómeno que o meu companheiro de grupo, Adriano Miranda Lima, designou por “Pecado Original”, cometido na concepção e edificação do Estado independente, em 1975.
        Esta metáfora justifica-se porque o paradigma concentracionário condicionou o desenvolvimento económico, social e cultural do país como um todo. A sucessão encadeada dos seus efeitos nocivos deu azo a que a capital se tornasse praticamente no objectivo primário e no fim exclusivo do próprio Estado e da elite que a constrói, com isso subvertendo-se a expectativa de igualdade que o ideário da independência criara nos espíritos dos cidadãos de todas as ilhas. É como um ferrete de que não nos livramos senão com uma remissão completa do “pecado” cometido, remissão que a todos nos deve obrigar.
       Foi desta maneira que a inércia criada a favor do centro do país, provocou uma acção centrípeta sobre o resto do território, absorvendo quadros e população das restantes ilhas, e das periferias da mesma ilha para a capital, para garantir o funcionamento do Estado e das empresas, a maioria estatais, ali concentrados. A consequência imediata foi a macrocefalia da capital e o desequilíbrio regional, com o seu corolário que é desertificação humana e a carência de recursos humanos nas periferias, condicionando a gestão das prioridades nacionais e a distribuição dos recursos, e bloqueando perversamente as energias cívicas dispersas pelo espaço nacional como pela Diáspora. E como se não chegasse, a criação artificial de municípios foi mais um factor concorrente para o sobredimensionamento do Centro e o depauperamento das periferias. Esta situação é grave porque condiciona drasticamente o Orçamento do Estado, implicando uma assimetria na distribuição dos recursos. Este é um problema que merece aqui uma abordagem particularizada, já que é o poder local no seu todo que está em causa, seja ele municipal ou regional, porque ambos imbrincados na mesma malha organizativa.
        Ora, a criação de um município justifica-se, acima de tudo, por razões de ordem económica e de eficiência administrativa, antes da interferência de factores menores e de outro jaez que grosso modo possam emergir no campo da luta pelo poder, como, por exemplo, estratégias eleitorais para conquistar a adesão política de comunidades locais em vésperas de eleições. É um facto inegável que a seguir à independência houve municípios cuja criação não obedeceu a critérios de racionalidade administrativa, mas a compromissos político-partidários para captar e fixar clientelas eleitorais. Alguns desses municípios não passam de ficções autárquicas, destituídos de fundamento económico, sociológico e administrativo, sem uma clara relação com um projecto de ordenação territorial e a melhor utilização de fundos públicos. É impossível não reconhecer a influência do centralismo político na urdidura de uma proliferação de municípios em Cabo Verde, à revelia de uma reforma da quadrícula autárquica que teria de basear-se em parâmetros de objectividade, exequibilidade e utilidade pública. 
         Na verdade, a ilha de Santiago, que até à data da independência dispunha de três municípios, acrescentou à sua quadrícula autárquica mais seis unidades a partir de 1996, com possível fundamento no crescimento populacional e no respaldo do progresso económico e social. De facto, a população da ilha cresceu de 182.782 almas em 1970 para 303.499 em 2015, em grande parte mercê da absorção de população de outras ilhas, mas nada disso justificava que se criassem municípios questionáveis do ponto de vista da racionalidade administrativa. Quanto à segunda ilha do arquipélago, S. Vicente, a sua população passou de 31.578 almas em 1970 para 81.014 em 2015. O crescimento demográfico percentual foi, portanto, similar nas duas ilhas mais populosas, Santiago e São Vicente, com a diferença de que a taxa de crescimento económico da primeira superou de longe a da segunda, exactamente pelos efeitos induzidos do centralismo político. Mas o curioso é que o mesmo factor que fundamentou o considerável aumento de municípios em Santiago não foi aplicado a S. Vicente, que continua com um único município. Esta situação é de manifesta incongruência quando ilhas com metade da população de S. Vicente (S. Antão e Fogo), ou um sexto (S. Nicolau), têm, respectivamente, três e dois municípios. Pergunta-se se factores como distância física e acessibilidade têm hoje o mesmo peso quando outrora justificaram a diversificação de municípios. É claro que não. As vias terrestres, os meios de transporte e as tecnologias de comunicação hoje disponíveis aproximam as comunidades umas das outras, tornando irrelevante a distância entre si. Deslocar-se de automóvel e usar o telefone e a internet são diferentes de andar de burro ou a pé pelos cutelos fora para levar um recado. Daqui se deduz que uma das medidas de racionalização económica do país passa pela extinção de alguns municípios e por uma reconfiguração da malha autárquica.
        Este problema levanta-se com pertinência quando se vê o peso que o número de municípios representa na ponderação das fatias orçamentais a atribuir a cada ilha. Cada ilha devia ser tratada do ponto de vista orçamental em função da realidade global que incorpora, em que pontificam valores como o peso demográfico e social, o contributo para o PIB e potencialidades económicas exploráveis em benefício do conjunto nacional. Mas não, o número de municípios, mesmo que pouco relevantes do ponto de vista social e económico, tem sido um factor de majoração no critério de distribuição do Orçamento Geral do Estado, pelo que, nesta conformidade, S. Vicente tem sido e tende a ser indiscutivelmente prejudicada por só possuir um município. E no entanto é a segunda ilha do país em todos os parâmetros de avaliação, designadamente: demografia; peso económico; e importância social e cultural.
          Mas outra questão delicada se coloca. Numa altura em que se prevê um projecto de regionalização para o país, o número de municípios em cada ilha não é irrelevante na configuração da estrutura do poder regional. Como o modelo que está nas intenções dos dois principais partidos é o de região-ilha, com cada ilha a constituir uma unidade regional, com excepção de Santiago, para a qual se prevêem duas, S. Vicente volta de novo a confrontar-se com o constrangimento da sua condição de ilha uni-municipal, ao lado do Sal, Boavista, Maio e Brava. Dado que o poder regional tem sob a sua tutela jurisdicional os municípios, se há um único município no espaço regional, suscita-se desde logo um conflito de competências ou então a necessidade do seu reajustamento entre os dois poderes locais, exigindo possivelmente uma redefinição e redução das atribuições da câmara municipal. Caso contrário, pode gerar-se no interior do espaço regional situações de embaraço e curto-circuito, o que, no entanto, não será tão potencialmente gravoso nas ilhas uni-municipais menores como o será para a segunda ilha do país, a qual aspira, com o poder regional, sair da redoma que trava o seu progresso.
        Portanto, temos assim duas realidades conjugadas que condicionam uma distribuição mais equânime dos recursos e travam um desenvolvimento mais equilibrado do território nacional: um Estado concentrado e centralizado; um ordenamento autárquico talvez sobredimensionado na mesma ilha e porventura em outras que tem que ser questionado ou repensado. Tudo isto traduzindo-se no aprofundamento das assimetrias regionais e em dotações orçamentais inadequadas para o equilíbrio do país.
        Felizmente que hoje é unânime o reconhecimento de que o centralismo centrípeto em torno da capital do país é uma ideologia ultrapassada e uma prática avessa a uma democracia participativa, porque distorce a lógica e os princípios em que ela se funda. Apesar de se apregoar ao mundo o exemplo da democracia cabo-verdiana, a verdade é que o centralismo vigente é antítese de uma verdadeira democracia representativa. O Estado central até há bem pouco tempo defendia o centralismo como pedra basilar da sua política de desenvolvimento autocentrado, apontando-o até como condição da unidade nacional. Ainda bem que essa teoria hoje já não faz coro, com a realidade a demonstrar quão errado foi conceber a organização político-administrativa de Cabo Verde como um país continental e territorialmente contínuo, ignorando a sua condição de arquipélago de dez ilhas dispersas na imensidão do mar. Estava claro que o nosso país traz na sua genética uma matriz regional, pela natureza e pela sua própria história, com toda uma dispersão parcelar a sugerir uma organização que não pode basear-se em figurinos de países continentais.
Portanto, é ilusório pensar que se pode avançar com a regionalização colocando pura e simplesmente uma camada de poder entre o poder municipal e o central, permanecendo tudo igual como está. A criação do poder regional exige a reconfiguração do poder autárquico, pois como se diz em linguagem popular, “dois proveitos não cabem no mesmo saco”. (Continua com 3ª Parte - A Solução 3D para Cabo Verde no âmbito da Regionalização: Descentralizar, Desburocratizar e Democratizar Cabo Verde)

Praia, 17 de Janeiro de 2018
José Fortes Lopes

Sem comentários:

Enviar um comentário