domingo, 29 de janeiro de 2017

SUBSÍDIOS PARA HISTÓRIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA DE CABO VERDE

2- Contestação das alegadas paternidades exclusivas da independência e da democracia cabo-verdianas


(Continuação do artigo “1- A mitologia oficial sobre a paternidade da fundação de Cabo-Verde, da independência e da democracia cabo-verdianas”)

Portanto, este é o Cabo Verde descrito na 1ª Parte que existia até 1974/75, onde o PAIGC vai lavrar o terreno para aplicar autocraticamente o seu programa político − Refundar, Reconstruir e instituir a contranatura e controversa Reafricanização dos Espíritos, do mais antigo arquipélago crioulo, com oficialmente 500 anos de existência, já com uma história sociocultural autónoma e independente da Europa e da África; apagar as sequelas do colonialismo português, como se propunha – processo que em princípio deveria terminar com a sua queda do poder por via eleitoral, se a inércia não fosse o que é e se o novo partido do poder não tivesse saído de uma costela do seu antecessor, como adiante se verá.
Com a independência, a lógica e o bom senso mandariam desenvolver Cabo Verde em dois ou vários pólos, uma solução descentralizada compatível com a sua realidade arquipelágica, já que a administração colonial tinha deixado como legado, um pólo administrativo na capital do país e um pólo económico industrial em S. Vicente. Ao invés, a cidade da Praia passou a ser o único palco da vida política e económica cabo-verdiana, depois de absorver os mais importantes recursos humanos e de centralizar radicalmente a governação do país. Por isso, quando, em 1990, o MpD se constitui como força partidária, não surpreende que o faça centrado na Praia e com os elementos que abandonam o PAIGC/CV depois da cisão que ocorre no seu seio. De igual modo, não surpreende que seja na ilha de Santiago que o novel partido recruta a maior parte dos seus quadros, situação que se reforça e consolida com a sua ascensão ao poder, e cuja consequência seria o prosseguimento do centralismo político, se não o seu reforço absoluto.
Portanto, há duas realidades sociológicas que importa sublinhar. Uma é a cidade da Praia como centro de um experimentalismo político imposto ao novo país e cujos agentes se arvoraram como os únicos intérpretes da verdade até ocorrer uma purga ou cisão no seu seio. A outra realidade é a constatação de que a nova e principal força partidária criada com os salvados dessa cisão dificilmente pode reivindicar uma narrativa que destoa profundamente da antecessora, qual seja a defesa da democracia e da liberdade. E porquê? Porque nada de substancialmente ideológico distingue os veteranos do PAIGC de Conacri dos denominados, erradamente, de esquerdistas (também, erradamente, apelidados de trostkistas ou maoistas, na mediada em que não eram, uma coisa nem outra, apesar das suas simpatias teóricas (VER NOTA-A),) que em grande parte formaram o MpD. No fundo, ambos os partidos prosseguiram a mesma agenda focalizada no centralismo político e elegendo Santiago/Praia como o seu baluarte e cenário da sua teatrologia política e cultural.
Assim, toda a razão nos assiste para concluir que o processo de radicalização política ocorrido entre 1974/75, adiou por cerca de duas décadas a possibilidade de instauração de um regime democrático, já que o PAIGC eliminou nesse período em conúbio com o MFA os germes de uma oposição nascente, ou seja a possibilidade de se implantar um regime pluri-partidario parlamentar, e fomentou a expulsão do território nacional de todos os que poderiam contrariar a narrativa que pretendia adoptar. Esta oposição, que tinha a sua praça-forte em S. Vicente, era em geral constituída pelas classes mais privilegiadas e pelas profissões liberais, assim como a maior parte da administração pública, ela que, apesar das recriminações a que foi vítima em 1974, seria essencialmente nacionalista (no sentido cabo-verdiano), pelo que dificilmente poderia partilhar o dogma da Unidade Guiné-Cabo Verde (ver NOTA-B).  Com a tomada da rádio Barlavento em finais de 1974, e a prisão subsequente dos principais responsáveis da oposição, numa operação conjunta MFA/PAIGC (encarcerados primeiro no Campo de Concentração do Tarrafal, depois levados para Caxias) a maior parte dos oposisitores evaporou-se misteriosamente em 1975: abandonou o país, forçada ao exílio,  rumo a Lisboa ou outras partes do Mundo. O caminho estava aberto para o PAIGC ‘libertar’ o país, dominar por completo a máquina administrativa, o poder, instalar a sua narrativa e colonizar as mentes com a sua narrativa.  Forjam-se heróis e actos de heroismo e o povo por alguns meses imagina-se no poder.!
Por outro lado, as facções mais à esquerda do PAIGC (como vimos, alguns hoje no MPD) ou as que perfilhavam uma visão da revolução de pendor europeu, acabariam por ser também eliminadas politicamente, num processo de exclusão tipicamente estalinista, felizmente não lamentando vítimas. Em meados dos anos 80, o PAICG/CV concentrava-se no essencial em torno dos militantes oriundos do PAIGC de Conacri e muitos residentes convertidos após o 25 de Abril, sendo a maior parte destes “cristãos-novos”, mais papistas que o próprio papa, ou “jóvens turcos” aspirando o poder. Poucos cidadãos, terão resistido à onda totalitária e avassaladora, somente alguns espíritos independentes terão afastado a tempo do processo político em curso, que já tomava uma feição, no mínimo, pouco democrática. Os elementos ‘dito extremistas de esquerda’ excluídos do PAIGC/CV, tirando um ou outro caso pontual, não terão feito posteriormente oposição significativa e declarada ao regime, muitos foram ‘estudar’, outros integraram discretamente o aparelhismo e a administração pública, fazendo-se irrelevantes politicamente até à abertura política de 1992, o que não impediria que viessem mais tarde a reclamar elevados dividendos por lutas pouco ou nada travadas.
Na verdade, a tarefa ingrata, o trabalho sujo e perigoso (pois na altura correspondia em colocar-se no campo dos ‘inimigos do povo’) de se opor ao regime de partido único incarnado pelo PAIGC/CV coube essencialmente aos Emigrantes/Diáspora cabo-verdiana, que a UCID soube corporizar (VER NOTA-C), um um partido ‘popular’, nascido em Roterdão em 1975/76, constituído essencialmente por trabalhadores,  em contestação e afrontamento directo ao PAIGC e opondo-se declaradamente ao regime instalado e seus dogmas. Concentrando-se inicialmente na diáspora, teve posteriormente uma expressiva implantação no Norte de Cabo Verde, nomeadamente S. Vicente. A UCID contou, assim, nas suas fileiras vários militantes mindelenses e santantonenses residentes em Cabo Verde, tendo-se transformado efectivamente no único rosto da oposição declarada e destemida ao regime de partido único. É este partido que denuncia junto da ONU exações recorrentemente perpetradas pelo regime do PAIGC/CV (incluindo mortes e torturas), o que o obrigaria a um maior cuidado e ponderação na repressão, pois um corte da assistência financeira e alimentar por parte da comunidade internacional, faria colapsar o regime em pouco tempo.
Nos primeiros anos do regime de partido único, os principais movimentos de descontentamento surgem em S. Vicente, a ilha por natureza contestatária, que começa a sentir-se abandonada pelo poder, apagada da agenda política e visivelmente menorizada nos planos de desenvolvimento. Cabo Verde estava a ser reformatado (reconstruído, segundo o eufemismo usado na época) segundo a visão dos seus novos donos todo-poderosos. Todo o poder  económico e cultural começa a deslocar-se para Santiago e a concentrar-se maciçamente na Praia, onde se situava o poder político. A população mindelense desamparada e impotente, começa a ver-se defraudada pela independência (o PAIGC em troca da adesão, terá feito em 1974, inúmeras e quiméricas promessas). O desencanto não tardou a instalar-se, sobretudo nas ilhas do Noroeste, face a uma situação política e económica que estava longe de corresponder às expectativas criadas com a independência, com a viabilidade desta a ser questionada, quando se tornava cada vez mais evidente que ela dependia unicamente da boa vontade da comunidade internacional. Os sinais de insatisfação ampliavam-se na Diáspora (Lisboa, Roterdão e várias cidades dos EUA) e repercutiam-se de novo nas ilhas, especialmente em S. Vicente, onde, apesar da sangria, ainda conservava uma cidadania residual. 
O período negro da ditadura situa-se, pois, entre 1977 a 1984, quando S. Vicente e S. Antão se tornam baluartes de resistência cívica. A pseudo-intentona, dita reaccionária, de S. Vicente em 1977, que no fundo era uma reacção política e pacífica de comerciantes à rápida degradação das condições económicas da ilha, e a imposição da Reforma Agrária em S. Antão em 1980, que originou a reacção violenta dos agricultores e proprietários, são dois testes políticos que abalam as fundações e a legitimidade do regime do PAICV, e que se saldam em violenta repressão policial e várias prisões, vitimando cidadãos. No entanto, o regime prosseguiria incólume o seu curso até à queda do Muro de Berlim. A partir deste evento de dimensão mundial, que varreu muitos regimes de partido único, a vida política cabo-verdiana renova-se sob os auspícios da democracia formal e pluripartidária. O MPD surge então na Praia, criado a partir das costelas do PAICV e dos quadros da administração central, e deste modo com uma coluna vertebral de Santiago. Cavalga oportunisticamente a onda da democracia e torna-se poder.
A UCID não dispondo de quadros jovens em Cabo Verde, tem um ano para se instalar no Norte de Cabo Verde e simultaneamente concorrer às eleições, mas não consegue legalizar-se, e nem teria condições para se implantar no eleitorado, por ter sido confinado à uma situação de clandestinidade durante o regime de partido único. É possível que na conjuntura criada pela abertura em 1992, a UCID pudesse potenciar toda a legitimidade política e histórica de resistência, para conquistar o poder democrático em Cabo Verde, o que não seria do agrado do Establishment, ele todo de mãos atadas ao regime precedente. Teria sido um interessante caso de estudo, uma vitória da UCID nas eleições livres de 1992, um partido social-democrata cristão, nascido e residente  na Diáspora. Hélas, não estava preparado como partido de poder, e Cabo Verde ainda estava demasiado condicionado pelo regime anterior. Passado esta conjuntura favorável, a UCID refugiou-se no seu santuário do Norte de Cabo Verde, instalando a sua sede na base eleitoral em S. Vicente, assumindo, assim, definitivamente a sua natureza, um partido de base regionalista, não obstante a permanente tentação e as pressões para mudar com armas e bagagens para a Praia, e assim transformar-se num ‘partido nacional’. Este continua a ser um dilema ao qual este partido tem sido confrontado. Na presente situação, tendo em conta a actual irrelevância política da ilha de S. Vicente, a UCID dificilmente poderá vingar-se em Cabo Verde, como era sua pretensão nos anos 80, não sendo, todavia, líquido que um partido de base regionlista ganhe mais audiência caso migre definitivamente para a capital. Actualmente a UCID encontra-se politicamente estagnada, situação que não é alheia, os seus próprios erros, a ausência de visão estratégica e a intensa competição política a que está confrontado na sua própria base eleitoral.
Os que reclamam a paternidade da Independência e Democracia não têm, pois, argumentação e legitimidade suficientes para convencer o Registo Civil. Esse tipo de paternidade é coisa muito séria e não pode justificar-se com protagonismos de ocasião que ignoram a História e o efeito das conjunturas internacionais. No caso da Independência, é abusivo o PAIGC-CV querer considerar-se o obreiro da consciencialização nacional, sem a qual jamais teria acontecido a independência, já que aquela é fruto de um longo e evolutivo processo em que pontificaram outros protagonistas. No caso da Democracia, é ainda mais flagrante a falsa paternidade invocada pelo MpD, justamente porque, sendo este partido uma emanação do PAIGC/CV, o teste de ADN não pode reconhecer a progenitura, tanto mais que é consabido que a criança veio no bico da cegonha, quando os ventos do Liberalismo sopraram em todas as direcções, depois da implosão da URSS. Não aceitar os ditames da Democracia teria posto em causa a própria Independência, já que ela é, em grande parte, sustentada pela ajuda da comunidade internacional.
Posto isto, resta dizer que parece-me que o povo de Cabo Verde bem dispensaria pais desnaturados ou Heróis de circunstância, porque ao longo de séculos percorreu, sozinho, as veredas do seu destino, “aprendendo com o vento a bailar na desgraça e com as cabras a ensinar-nos a comer pedras para não perecermos”, parafraseando Ovídio Martins, talvez ele, sim, um pai natural entre outros.
 Janeiro de 2017
José Fortes Lopes

NOTA-A: É preciso desmitificar o conceito de “extremismos de esquerda” em Cabo Verde. Em geral tratava-se de jovens estudantes universitários filiados aos partidos de esquerda portugueses, que faziam oposição activa ao regime salazarista. Alguns terão inclusivamente pertencido a partidos mais radicais, ditos maoista e trotskistas, mas todos declaravam simpatizantes da causa independentista do PAIGC de Cabral. Apesar de se terem reconvertido em Cabo Verde ao PAIGC em 1974, no sentido da filiação e militância partidária, mantiveram os estigmas que lhes tinham sido imputados.
NOTA-B: É provável que o que separava a UDC e a UPICV do PAIGC não seria tanto a questão da Independência, mas sim o seu timing e a forma como o processo estava a ser conduzido, tanto pelo MFA como pelo PAIGC, decorrendo dos acordos assinados. A oposição dos dois partidos teria mais a ver com  questões ligadas à Unidade Guiné-Cabo Verde, ao regime e o futuro político de Cabo Verde, tendo em conta as derivas radicais que já se verificavam. Daí que um conjunto de pessoas conceituadas, ou se mantiveram na retranca ou passaram para a oposição.

NOTA-C: É sabido que alguns veteranos da UCID terão militado ou integrado o PAIGC entre os anos 60 e dos anos 70, quando Amílcar Cabral na sua “tournée” pela Europa conseguiu cativar simpatias, mobilizando inclusivamente elementos cabo-verdianos na Holanda e França para a Luta de Libertação da Guiné. O PAIGC nas suas campanhas pela Emigração terá prometido Democracia e Participação da Diáspora no futuro de Cabo Verde. Terão precipitado a separação e a criação da UCID, poucos anos após a Independência, o não cumprimento das promessas, assim como a instauração do regime de partido único, e a questão da Unidade Guiné-Cabo Verde, tido como dogma fundamental para o PAIGC/CV. Segundo o sociólogo Luiz Silva o presente divórcio entre a Diáspora/Emigração e Cabo Verde poderá ter origem nesses contenciosos dos anos de Luta e do pós-independência. Acresce que entraves diversos existem à participação da Diáspora e da Emigração na vida económica social e política de Cabo Verde, o que gera um clima desconfiança pouco propício ao investimento da parte daqueles no país. Esta situação foi em parte resolvida após a instauração do regime democrático em 1992, com a aceitação da dupla nacionalidade aos emigrantes diaspóricos (uma velha guerra), do direito de voto dos emigrantes, assim como alguma ténue abertura económica. Espera-se que com a Regionalização esta problemática seja melhor abordada e resolvida no interesse da Diáspora e de Cabo Verde.

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