sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

SUBSÍDIOS PARA HISTÓRIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA DE CABO VERDE

Introdução:
Estes Subsídios (em duas partes) têm por objectivo contribuir para uma melhor compreensão da História Política Contemporânea  de Cabo Verde.
Não sou historiador nem cientista político, mas as circunstâncias e o meu envolvimento cívico em prol de Cabo Verde, nomeadamente a minha ilha natal, S. Vicente, tem-me levado por vias que no âmbito da minha actividade normal nem imaginaria e nunca teria antecipado. Esta tarefa rouba do meu tempo, mas a situação de Cabo Verde chegou a tal ponto de degradação social, cívica intelectual e cultural que não deixa indiferente o menos justo dos cristãos, que no passado teve a felicidade de conhecer um país que tinha muito para dar certo, sobretudo boa gente, e encontra-se num impasse e em vias de se inviabilizar. Assim, se puder contribuir para alguma reposição de Verdades e do Bem, então a minha tarefa não é inglória. Este é o meu propósito e móbil.

Assiste-se hoje a manipulações grosseiras da história, a omissão de factos e dados,  a exageros e inverdades e mesmo situações que configuram fraudes científicas do ponto de vista do tratamento de material histórico. Fruto da guerra civil ideológica e política ocorrida no arquipélago durante cerca de 60 anos, os protagonistas do sistema partidarizado tentam, em função das conjunturas, colar a realidade histórica às suas narrativas. A história política do arquipélago, reescrita segundo os novos cânones partidários, resume-se, hoje,  a uma dialéctica entre os dois principais partidos, o PAIGC/CV e o MPD, que se consideram demiurgos da nacionalidade, da liberdade e da democracia cabo-verdiana. De acordo com os seus pontos de vista, a nação cabo-verdiana pura e simplesmente não existia antes da independência ou da liberdade, considerando-se os pais criadores. Criaram Homens Novos, numa Nova Nação que, usando a lógica das suas teses, emergiu de geração espontânea, por isso somente os militantes do PAICV e do MpD têm existência e legitimidade política e histórica. Factos, personagens e dados importantes da história de Cabo Verde, anteriores ou contemporâneos, mas não simpáticos para com as suas narrativas, são assim pura e simplesmente apagados. Cidadãos e comunidades que não lêem o mundo pelas suas narrativas são marginalizados ou desaparecem das narrativas. Mesmo os que contribuíram para que tais partidos alcançassem o poder, podem cair na desgraça, ao passo que o número de heróis e participantes nas lutas é inflacionado para gerir as novas clientelas partidárias e impressionar os mais jovens, normalmente a faixa etária com menos de 40 anos. Acresce que o centralismo pretende resumir todo Cabo Verde à ilha de Santiago. ‘Faits divers’ locais transformam-se em eventos de dimensão histórica nacional, ao passo que outros acontecimentos que marcaram a história tornam-se irrelevantes e omitidos. Séculos da história de Cabo Verde não são revelados ou tidos em consideração. A este fenómeno chama-se Revisionismo Histórico, um aspecto típico de sistemas totalitários que pretendem manipular e moldar as mentalidades de acordo com obediências ideológicas. Participam nesta operação a sociedade inteira, mais precisamente, os médias, intelectuais e a classe política que daí tira dividendos. Estaremos ainda numa situação totalitária em regime democrático?

1- A mitologia oficial sobre a paternidade da fundação de Cabo-Verde, da independência e da democracia cabo-verdianas
Sobre a história de Cabo Verde, duas leituras exclusivas e antagónicas estão a perfilar-se no momento actual: a da Independência e do Patriotismo e seus Heróis; a da Liberdade e da Democracia e seus protagonistas. Ambas circunscrevem a história de Cabo Verde a um período bastante delimitado, cuja génese é o nascimento do PAIGC, que se reclama de partido fundacional da nacionalidade cabo-verdiana e consagra o seu protagonismo com a independência política conquistada em 1975, sob a  égide da luta armada no mato da Guiné, denominada Luta de Libertação Nacional, embora em solo estrangeiro. Depois, com a cisão ocorrida no seio do PAIGC em 1980, nasce o PAICV, pondo-se termo ao utópico e contranatura projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde, mas a perspectiva ideológica mantém-se inalterável nos seus princípios e na sua prática. Mais tarde, o ano de 1990 marcaria o fim da primeira leitura, a da Independência e dos Heroísmos, com a queda do famoso artigo IV da Constituição de Cabo Verde, que sustentava o regime do Partido Único, e consagrava o PAICV como luz e guia de Cabo Verde. 
É a partir daí, com a liberalização do regime, que se abre o espaço para a outra leitura, a da Liberdade e da Democracia, e de que se reclama o MpD, o partido que se forma em 1990 com base em dissidentes do PAIGC original e uma maioria de militantes saída do PAICV. É assim que, em oposição ao PAICV, o MpD considera-se o pai da “Democracia e da Liberdade”.
Estas são, pois, as duas narrativas oficiais que, aparentemente, tendem a prevalecer na actual historiografia cabo-verdiana, cobrindo um curto período de 60 anos no máximo, desde 1960 (data do nascimento de movimentos nacionalistas na Guiné que incorporavam Cabo Verde no seus propósitos, à actualidade). Todo o período histórico anterior fica omisso ou encoberto em  especulações de cariz demasiadamente ideológicos. No entanto, entre as duas narrativas não há sequer  espaço para inserir a mais fina folha de papel. Acresce um fenómeno recente, as narrativas revisionistas do Fundamentalismo originário de Santiago, estribado no Centralismo Político e Cultural em voga em Cabo Verde, que vem ocupando progressivamente todo o espaço das narrativas políticas, reescrevendo uma versão da História, que usa ‘faits divers’ locais, trasformados em factos históricos de dimensão nacional, ao mesmo tempo excluindo a contribuição do Norte de Cabo Verde, nomeadamente a ilha de S. Vicente, o palco da História contemporânea de Cabo Verde, dos últimos dois séculos. Eventos, factos e personagens oriundos destas regiões são censurados e omissos deliberadamente e mesmo boicotados.
 Há, pois, de artificioso e falso nas narrativas actuais, já que demasiado restritivas na interpretação da história e na análise sociológica do processo de consciencialização político-cultural do homem cabo-verdiano. De resto, costuma-se dizer que a história é escrita, ou reescrita, pelos vencedores e os detentores do poder, e é por isso que o PAIGC/PAICV, o MpD e os Fundamentalistas, cada um reclamando o seu quinhão de vitória, se julgam com direito à sua própria narrativa fundacional e de tentar impô-las.
Sem querer recuar muito no tempo para uma clarificação conceptual, bastará citar o sociólogo, especialista da Emigração/Diáspora, Luiz Silva, quando afirma que Cabo Verde não nasce no 5 de Julho, mas existiu muito antes. Silva defende que Cabo Verde como nação, como conceito ideológico, nasceu na emigração /diáspora com núcleos autónomos que cultivavam a sua cabo-verdianidade do local de origem. Na realidade esta construção ocorreu durante várias etapas, ao longo dos 500 anos da História de Cabo Verde, desde que se descobriu e povoou o arquipélago.
Pode considerar-se como acontecimento inaugural e simbólico do processo de construção da nacionalidade cabo-verdiana, a criação da Cidade Velha na ilha de Santiago, a primeira fundada por europeus nos trópicos e que foi o pivot do tráfego de escravos africanos. Cabo Verde cresce e floresce, pois, a partir do comércio transatlântico entre a Europa e a América, contribuindo para o povoamento deste continente. Todavia, as vicissitudes históricas, as condições climatéricas desfavoráveis e a  escassez de recursos naturais, não propiciaram as melhores condições para que o arquipélago progredisse economicamente e crescesse demograficamente.
Na verdade, até inícios do século XX,  a população de Cabo Verde apenas atingia as 100 mil almas. Com a queda da Cidade Velha, nunca mais se constituíram centros populacionais expressivos em Santiago até inícios do século XX. A própria cidade da Praia, a capital administrativa, onde residia o governador e o seu staff, até à data da independência não passava de um pequeno burgo com algumas ruas, onde residia a burguesia local afecta à máquina administrativa,  sem infra-estruturas adequadas. Todo o resto consistia em populações rurais vivendo na mais extrema pobreza, habitando povoados dispersos pela ilha e sem significado.
Espanta obviamente que a cidade da Praia fosse ainda em 1975 algo precário e carente de vitalidade urbana, sendo ela a capital da colónia, onde residia o governador e estavam sediadas as estruturas da governação colonial. Mas a única razão plausível é que a cidade não possuía uma sociedade civil dinâmica, imaginativa e produtiva, situação a que se acomodou o governo colonial. A cidade vivia basicamente da empregabilidade assegurada pela administração pública à sua elite, e a ilha subsistia dos magros recursos da agricultura de sustentação em regime de sequeiro, num arquipélago no seu todo fustigado por secas e emigração.
Em meados do século XIX, com o povoamento de S. Vicente, a cidade do Mindelo, graças ao Porto Grande e à presença britânica, torna-se o mais importante centro populacional, económico, político, intelectual e cultural de Cabo Verde, a metróple cabo-verdiana, com o reconhecimento da administração colonial e da ex-Metrópole. O arquipélago torna-se de novo viável e autosufiente graças a actividade económica desenviolvida no Porto Grande. A ilha de S. Vicente, à escala de Cabo Verde, adquiria uma actividade económica, comercial e industrial que lhe permitia o desenvolvimento de fenómenos tipicamente urbanos: lutas sindicais, sociais e políticas, assim como actividades culturais e intelectuais relevantes. Para ela afluem gentes de todo o arquipélago e da Metrópole, assim como estrangeiros, nomeadamente italianos e judeus, que passam a incorporar uma sociedade civil dinâmica e  criativa. É por mérito exclusivo desta, que a ilha passa a destacar-se consideravelmente no contexto do arquipélago, abrindo-se para o progresso e para o futuro e introduzindo a modernidade no território. É nela que ocorrem os movimentos literários e políticos do século XX, de que é exemplo mais destacado a Claridade.  S. Vicente é em todos os sentidos uma ilha de cultura liberal, não sendo por acaso que é no seu chão que o 25 de Abril encontra eco no arquipélago, acolhendo-o com incontidas explosões libertárias, enquanto o resto de Cabo Verde passa praticamente ao lado dos acontecimentos. Desta maneira, com o contributo activo do MFA, S. Vicente é que proporcionou as condições para a instalação prematura em Cabo Verde do PAIGC e para a montagem do palco do discurso libertador que haveria de condicionar o futuro do território e influenciar a sua história (Continua em 2- Contestação da alegada paternidade da independência e da democracia cabo-verdianas).
Janeiro de 2017
José Fortes Lopes


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