Introdução:
Estes Subsídios (em duas partes) têm
por objectivo contribuir para uma melhor compreensão da História Política
Contemporânea de Cabo Verde.
Não
sou historiador nem cientista político, mas as circunstâncias e o meu
envolvimento cívico em prol de Cabo Verde, nomeadamente a minha ilha natal, S.
Vicente, tem-me levado por vias que no âmbito da minha
actividade normal nem imaginaria e nunca teria antecipado. Esta tarefa rouba do
meu tempo, mas a situação de Cabo Verde chegou a tal ponto de degradação
social, cívica intelectual e cultural que não deixa indiferente o menos justo
dos cristãos, que no passado teve a felicidade de conhecer um país que tinha
muito para dar certo, sobretudo boa gente, e encontra-se num impasse e em vias
de se inviabilizar. Assim, se puder contribuir para alguma reposição de Verdades
e do Bem, então a minha tarefa não é inglória. Este é o meu propósito e móbil.
Assiste-se hoje a manipulações
grosseiras da história, a omissão de factos e dados, a exageros e
inverdades e mesmo situações que configuram fraudes científicas do ponto de
vista do tratamento de material histórico. Fruto da guerra civil ideológica e
política ocorrida no arquipélago durante cerca de 60 anos, os protagonistas do
sistema partidarizado tentam, em função das conjunturas, colar a realidade
histórica às suas narrativas. A história política do arquipélago, reescrita
segundo os novos cânones partidários, resume-se, hoje, a uma dialéctica
entre os dois principais partidos, o PAIGC/CV e o MPD, que se consideram
demiurgos da nacionalidade, da liberdade e da democracia cabo-verdiana. De
acordo com os seus pontos de vista, a nação cabo-verdiana pura e simplesmente
não existia antes da independência ou da liberdade, considerando-se os pais
criadores. Criaram Homens Novos, numa Nova Nação que, usando a lógica das suas
teses, emergiu de geração espontânea, por isso somente os militantes do PAICV e
do MpD têm existência e legitimidade política e histórica. Factos, personagens
e dados importantes da história de Cabo Verde, anteriores ou contemporâneos,
mas não simpáticos para com as suas narrativas, são assim pura e simplesmente
apagados. Cidadãos e comunidades que não lêem o mundo pelas suas narrativas são
marginalizados ou desaparecem das narrativas. Mesmo os que contribuíram para
que tais partidos alcançassem o poder, podem cair na desgraça, ao passo que o
número de heróis e participantes nas lutas é inflacionado para gerir as novas
clientelas partidárias e impressionar os mais jovens, normalmente a faixa
etária com menos de 40 anos. Acresce que o centralismo pretende resumir todo
Cabo Verde à ilha de Santiago. ‘Faits divers’ locais transformam-se em eventos
de dimensão histórica nacional, ao passo que outros acontecimentos que marcaram
a história tornam-se irrelevantes e omitidos. Séculos da história de Cabo Verde
não são revelados ou tidos em consideração. A este fenómeno chama-se
Revisionismo Histórico, um aspecto típico de sistemas totalitários que pretendem
manipular e moldar as mentalidades de acordo com obediências ideológicas.
Participam nesta operação a sociedade inteira, mais precisamente, os médias,
intelectuais e a classe política que daí tira dividendos. Estaremos ainda numa
situação totalitária em regime democrático?
1- A mitologia oficial sobre a
paternidade da fundação de Cabo-Verde, da independência e da democracia
cabo-verdianas
Sobre a história
de Cabo Verde, duas leituras exclusivas e antagónicas estão a perfilar-se no
momento actual: a da Independência e do Patriotismo e seus Heróis; a da
Liberdade e da Democracia e seus protagonistas. Ambas circunscrevem a história
de Cabo Verde a um período bastante delimitado, cuja génese é o nascimento do
PAIGC, que se reclama de partido fundacional da nacionalidade cabo-verdiana e
consagra o seu protagonismo com a independência política conquistada em 1975,
sob a égide da luta armada no mato da
Guiné, denominada Luta de Libertação Nacional, embora em solo estrangeiro. Depois,
com a cisão ocorrida no seio do PAIGC em 1980, nasce o PAICV, pondo-se termo ao
utópico e contranatura projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde, mas a perspectiva
ideológica mantém-se inalterável nos seus princípios e na sua prática. Mais tarde,
o ano de 1990 marcaria o fim da
primeira leitura, a da Independência e dos Heroísmos, com a queda do famoso
artigo IV da Constituição de Cabo Verde, que
sustentava o regime do Partido Único, e consagrava o PAICV como luz e guia de
Cabo Verde.
É a partir daí, com a liberalização do regime,
que se abre o espaço para a outra leitura, a da Liberdade e da Democracia, e de
que se reclama o MpD, o partido que se forma em 1990 com base em dissidentes do
PAIGC original e uma maioria de militantes saída do PAICV. É assim que, em
oposição ao PAICV, o MpD considera-se o pai da “Democracia e da Liberdade”.
Estas são, pois,
as duas narrativas oficiais que, aparentemente, tendem a prevalecer na actual
historiografia cabo-verdiana, cobrindo um curto período de 60 anos no máximo,
desde 1960 (data do nascimento de movimentos nacionalistas na Guiné que
incorporavam Cabo Verde no seus propósitos, à actualidade). Todo o período
histórico anterior fica omisso ou encoberto em
especulações de cariz demasiadamente ideológicos. No entanto, entre as
duas narrativas não há sequer espaço
para inserir a mais fina folha de papel. Acresce um fenómeno recente, as
narrativas revisionistas do Fundamentalismo originário de Santiago, estribado
no Centralismo Político e Cultural em voga em Cabo Verde, que vem ocupando
progressivamente todo o espaço das narrativas políticas, reescrevendo uma
versão da História, que usa ‘faits divers’ locais, trasformados em factos
históricos de dimensão nacional, ao mesmo tempo excluindo a contribuição do
Norte de Cabo Verde, nomeadamente a ilha de S. Vicente, o palco da História
contemporânea de Cabo Verde, dos últimos dois séculos. Eventos, factos e personagens
oriundos destas regiões são censurados e omissos deliberadamente e mesmo
boicotados.
Há, pois, de artificioso e falso nas
narrativas actuais, já que demasiado restritivas na interpretação da história e
na análise sociológica do processo de consciencialização político-cultural do
homem cabo-verdiano. De resto, costuma-se dizer que a história é escrita, ou
reescrita, pelos vencedores e os detentores do poder, e é por isso que o
PAIGC/PAICV, o MpD e os Fundamentalistas, cada um reclamando o seu quinhão de
vitória, se julgam com direito à sua própria narrativa fundacional e de tentar
impô-las.
Sem querer recuar muito no tempo para uma
clarificação conceptual, bastará citar o sociólogo, especialista da
Emigração/Diáspora, Luiz Silva, quando afirma que Cabo Verde não nasce no 5 de
Julho, mas existiu muito antes. Silva defende que Cabo Verde como nação, como
conceito ideológico, nasceu na emigração /diáspora com núcleos autónomos que
cultivavam a sua cabo-verdianidade do local de origem. Na realidade esta
construção ocorreu durante várias etapas, ao longo dos 500 anos da História de
Cabo Verde, desde que se descobriu e povoou o arquipélago.
Pode considerar-se como acontecimento
inaugural e simbólico do processo de construção da nacionalidade cabo-verdiana,
a criação da Cidade Velha na ilha de Santiago, a primeira fundada por europeus
nos trópicos e que foi o pivot do tráfego de escravos africanos. Cabo Verde
cresce e floresce, pois, a partir do comércio transatlântico entre a Europa e a
América, contribuindo para o povoamento deste continente. Todavia, as vicissitudes
históricas, as condições climatéricas desfavoráveis e a escassez de recursos naturais, não propiciaram
as melhores condições para que o arquipélago progredisse economicamente e
crescesse demograficamente.
Na verdade, até inícios do século XX, a
população de Cabo Verde apenas atingia as 100 mil almas. Com a queda da Cidade
Velha, nunca mais se constituíram centros populacionais expressivos em Santiago
até inícios do século XX. A própria cidade da Praia, a capital administrativa,
onde residia o governador e o seu staff,
até à data da independência não
passava de um pequeno burgo com algumas ruas, onde residia a burguesia local
afecta à máquina administrativa, sem
infra-estruturas adequadas. Todo o resto consistia em populações rurais vivendo
na mais extrema pobreza, habitando povoados dispersos pela ilha e sem
significado.
Espanta obviamente que a cidade da Praia fosse
ainda em 1975 algo precário e carente de vitalidade urbana, sendo ela a capital
da colónia, onde residia o governador e estavam sediadas as estruturas da
governação colonial. Mas a única razão plausível é que a cidade não possuía uma
sociedade civil dinâmica, imaginativa e produtiva, situação a que se acomodou o
governo colonial. A cidade vivia basicamente da empregabilidade assegurada pela
administração pública à sua elite, e a ilha subsistia dos magros recursos da
agricultura de sustentação em regime de sequeiro, num arquipélago no seu todo fustigado
por secas e emigração.
Em meados do século XIX, com
o povoamento de S. Vicente, a cidade do Mindelo, graças ao Porto Grande e à
presença britânica, torna-se o
mais importante centro populacional, económico, político, intelectual e cultural
de Cabo Verde, a metróple cabo-verdiana, com o reconhecimento da administração
colonial e da ex-Metrópole. O arquipélago torna-se de novo viável e
autosufiente graças a actividade económica desenviolvida no Porto Grande. A
ilha de S. Vicente, à escala de Cabo Verde, adquiria uma actividade económica,
comercial e industrial que lhe permitia o desenvolvimento de fenómenos
tipicamente urbanos: lutas sindicais, sociais e políticas, assim como actividades
culturais e intelectuais relevantes. Para ela afluem gentes de todo o
arquipélago e da Metrópole, assim como estrangeiros, nomeadamente italianos e judeus, que passam a incorporar uma
sociedade civil dinâmica e criativa. É
por mérito exclusivo desta, que a ilha passa a destacar-se consideravelmente no
contexto do arquipélago, abrindo-se para o progresso e para o futuro e
introduzindo a modernidade no território. É nela que ocorrem os movimentos
literários e políticos do século XX, de que é exemplo mais destacado a
Claridade. S. Vicente é em todos
os sentidos uma ilha de cultura liberal, não sendo por acaso que é no seu chão
que o 25 de Abril encontra eco no arquipélago, acolhendo-o com incontidas
explosões libertárias, enquanto o resto de Cabo Verde passa praticamente ao
lado dos acontecimentos. Desta maneira, com o contributo activo do MFA, S.
Vicente é que proporcionou as condições para a instalação prematura em Cabo
Verde do PAIGC e para a montagem do palco do discurso libertador que haveria de condicionar o futuro do
território e influenciar a sua história (Continua em 2- Contestação da alegada paternidade da independência e da democracia
cabo-verdianas).
Janeiro de 2017
José Fortes Lopes
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