OS CAMINHOS DE CABO VERDE: A REGIONALIZAÇÃO
E A DESCENTRALIZAÇÃO
Segundo notícia publicada no jornal
online Notícias do Norte, o primeiro-ministro de Cabo Verde acabou de anunciar
durante a abertura do VIII Congresso da Associação Nacional dos
Municípios de Cabo Verde (ANMCV), que decorreu na Cidade da Praia no início de
Dezembro de 2016, que o Governo de Cabo Verde vai relançar em Janeiro do
próximo ano o debate sobre a Regionalização. A proposta é de avançar com o
modelo de “regionalização administrativa, em que haverá um órgão com poderes intermédios,
entre governo e as autarquias”. Segundo o chefe do executivo, ”temos um modelo de regionalização que é
administrativo. Vai haver um órgão com poder executivo, mas com poderes que
estão entre os poderes do governo central e os dos municípios”, adiantando que “haverá
ainda um órgão deliberativo que será a assembleia regional, eleita. O objectivo,
conforme o chefe do governo, “é ter uma perspectiva global e integrada das
necessidades da ilha, a nível político, administrativo, económico-social,
linguístico e cultural”. Ulisses Correia e Silva considera que com este modelo “não
haverá sobreposição de poderes e competências entre os poderes central e local.”
É de felicitar a coragem do MpD (e do
seu líder Ulisses Correia e Silva) em ter introduzido o conceito de regionalização
na sua plataforma eleitoral, assim como no seu projecto de governo, embora este
tema já viesse, há quase uma década, a
fazer parte do debate político em Cabo Verde. Esta postura contrasta com as
delongas e as indecisões do PAICV nesta matéria e que não lhe foram benéficas
politicamente, para mais tratando-se de um partido que se proclama
progressista, mas que, na prática, sempre representou os sectores mais
reaccionários e conservadores da sociedade cabo-verdiana. Por isso, não são
despiciendos os ganhos eleitorais que a bandeira da regionalização proporcionou
ao MPD, nomeadamente na ilha de S. Vicente. Mesmo assim, ponderando, reconheça-se,
e como crédito para o MpD, que havia o risco de alienar a sua base social e eleitoral na ilha
de Santiago, assim como sectores e corporações adversos a qualquer ideia de descentralização
e de regionalização, que vêem com alguma desconfiança o projecto. É preciso não
esquecer que Cabo Verde, que nasceu com uma ideologia marxista-leninista, é, pois, um país em que o centralismo,
burocrático ou democrático, moldando o dirigismo estatal, continua a ser a
ideologia mestra a reger a acção política, sobrepondo o partido ao estado e à nação. É por isso que qualquer reforma no país se defronta
com o ónus de pôr em causa os interesses centralistas já bem instalados na
cidade capital, bem como as prerrogativas que a ilha de Santiago e a sua
capital, Praia, conquistaram com a independência.
Como escrevi há algum tempo, os
sucessivos anúncios sobre regionalização podiam levar-nos a embandeirar em vitoriosos,
aclamando o fim do centralismo e uma vitória intelectual dos regionalistas. Mas
é preciso lembrar que a regionalização e a descentralização são duas coisas bem distintas, podendo haver
regionalização com centralismo e regionalização com descentralização. Com
efeito, este anúncio poderia ser considerado o fim de uma luta que teve o seu
início há precisamente 6 anos (Dezembro de 2010) quando foi criado o Movimento
de Regionalização de Cabo Verde (nome que foi baptizado na Diáspora, mas que em
Cabo Verde deu origem ao Grupo de Reflexão para a Regionalização de Cabo Verde
(GRRCV), e foi lançado em S. Vicente o Manifesto da Regionalização, promovido
pelo Grupo da Diáspora, ao qual se associou o núcleo duro de Mindelo,
actualmente dirigente do GRRCV.
Mesmo assim, será um grande passo em frente na senda da descentralização que o
Estado de Cabo Verde tenha reconhecido a necessidade da regionalização para a
modernização do país. É evidente que o debate sobre a descentralização e a
melhor maneira de organizar e ordenar o arquipélago, não se esgotará com o
projecto do governo e irá continuar por longos anos em Cabo Verde. Pois o
objectivo dos regionalistas não é a conquista do poder, mas ver concretizada a
verdadeira descentralização, desconcentração e a desburocratização de Cabo
Verde, por acreditarem que é única via para aproximar a decisão política dos cidadãos,
e assim agilizar e acelerar a eficácia da governação.
Recorde-se que durante a campanha
eleitoral de 2015 foi prometido o início da implementação desta reforma para
finais de 2016, sendo a ilha de S. Vicente a cobaia e o palco dessa
experiência. No entanto, acredita-se que o adiamento será benéfico, se se
tencionar abrir um espaço de diálogo e de debate, assim como um maior
envolvimento da sociedade civil.
Ainda não conhecemos o conteúdo
definitivo do projecto do MpD, mas pelas declarações do primeiro-ministro
parece-me que a tónica continua sendo posta no conceito de região administrativa supra-municipalista e no de Ilha-região. Segundo os proponentes, a
actual Constituição em vigor contempla a regionalização, que é definida como
sendo um poder supra-municipal.
Estaria em parte satisfeito e de acordo com o MpD, caso a regionalização administrativa
implicasse uma verdadeira descentralização (económica, humana (recursos
humanos) política, linguísitca e cultural (jornais, rádio, televisão, deporto
etc)), e implicando ainda a desconcentração da capital do país, assim promovendo-se
uma maior justiça e solidariedade entre as regiões do arquipélago. Tais políticas
de que carece Cabo Verde estão longe de ser garantidas num projecto de regionalização
que não contemple uma efectiva descentralização. É que a regionalização administrativa
pode não significar descentralização do país, se não forem atribuídas às regiões,
meios, poderes e estruturas adequados. Por outro lado, a regionalização,
qualquer que seja o seu formato, terá que ter uma necessária dimensão política.
É preciso lembrar que uma coisa é deslocalizar órgãos do governo central, em
que naturalmente, e por doutrina, não haverá delegação de competências, e outra
bem diferente é transferir serviços, recursos humanos e financeiros e poder de
decisão às estruturas do poder regional.
Por outro lado, é por demais evidente que o sistema político cabo-verdiano,
cópia chapada de sistemas continentais, (aliás, cópia quase fidedigna do modelo
continental português e que não se adapta completamente às características
arquipelágicas de Cabo Verde, um país constituído por duas regiões naturais:
Barlavento e Sotavento e 9 ilhas), carece de uma profunda reforma, pois ele
mesmo já é um fardo para o país, sendo responsável pelo surgimento de graves
assimetrias regionais, pela geração do deficit financeiro actual,
para além de produzir poderes locais fracos ou de má qualidade. É cada vez mais
evidente a necessidade de uma migração para um sistema federativo e
presidencialista, associada à regionalização e à descentralização, acompanhada de
corte drástico no monstro que é hoje o Estado de Cabo Verde, fonte de
desperdícios administrativos e despesismo.
Por outro lado, algumas perguntas que
temos colocado recorrentemente aos defensores do municipalismo e do supra-municipalismo persistem: Como vão o poder regional e
o poder municipal encaixar-se e articular-se? Este processo vai colocar-se de
maneira premente numa ilha-região como S. Vicente? Quem vai mandar, como
gerir os egos numa situação de indefinição de poderes? Será que o poder municipal
dependerá e/ou estará subordinada ao regional? Existirão dois poderes independentes
e em competição na mesma região? Como se articularão esses poderes com o poder
central? Será possível, no quadro de uma reforma da administração local, que é
a regionalização, pelo menos do ponto de vista do poder actual, não mexer no municipalismo?
De facto, acredito que no caso das
ilhas unimunicipais, como S. Vicente, a existência de dois poderes políticos
paralelos, o municipal e o regional, poderá ser fonte de conflito se não houver
uma clara definição da fronteira entre as suas competências. Se a solução for
atribuir ao governo regional o essencial do poder de decisão, com relevo nas
áreas política, económica, linguístca, cultural e social, será necessário
reformular as atribuições da câmara municipal, talvez circunscrevendo-as ao
essencial da gestão urbana com as suas tradicionais servidões. Caso contrário,
instalar-se-á a cacofonia política e administrativa, e mesmo caos na ilha. Além
de que uma solução que não elimine redundâncias funcionais e não passe por um
criterioso aproveitamento e transferência dos recursos humanos das câmaras para
as regiões, vai acarretar custos adicionais, quiçá contraproducentes, ao modelo
que se pretende implementar.
É paradoxal que Cabo Verde, um país
surgido de uma (pseudo) revolução que iria mudar o “mundo”, se tenha tornado no
paradigma do conservadorismo social e político. Com efeito, a impossibilidade
de levar avante reformas ousadas em Cabo Verde tem sido uma realidade bem
patente e resulta precisamente desse estado de conservadorismo. Esta situação
deriva da inexistência de uma sociedade civil forte, independente e parceira da
classe política (medias, grupos de pressão, associações, movimentos, etc). Os elementos mais activos da
sociedade pecam pela demissão das suas responsabilidade e alheamento dos
problemas da sociedade, convencidos de que as mudanças só podem acontecer por exclusivo
arbítrio dos partidos. Na realidade, reformar é um processo evolutivo que deve
estar sob o escrutínio da sociedade civil. Esta deve ser, por conseguinte, mais
activa, interveniente e à altura da situação. A regionalização é, por exemplo,
um caso paradigmático de uma reforma que não será efectiva se a sociedade civil
e as populações se demitirem ou continuarem passivas. É muito provável que um tratamento aprofundado
da problemática da regionalização e das necessárias reformas do actual sistema
político obrigue a mexidas futuras na actual Constituição, ou seja uma reforma
constitucional. Mas a Constituição, segundo os neo-conservadores cabo-verdianos, apresenta-se como pano
para todas as mangas, e panaceia para todos os males, porque a consideram
representativo do que há de mais actual no pensamento moderno e democrático, razão
por que a ela nos remetem invariavelmente sempre que se fala em reformas. O
conceito genérico de “supra-municipalismo” incluso na Constituição e com que
nos acenam como o modelo mais perfeito para Cabo Verde, terá sido pensado, após
a queda do regime de partido único, para suprir os defeitos do centralismo, mas
por alguma razão nunca foi aplicado e é desejável que evolua no futuro para uma regionalização de carácter federal.
Concedo, por enquanto, a possibilidade de se chegar
a um consenso sobre o modelo de supra-municipalismo que o MPD entende como regionalização,
e que ele possa ser implementado como um arremedo daquela reforma. Mas é óbvio
que isso será insuficiente para os desafios do futuro de Cabo Verde, se não houver
uma efectiva descentralização do poder, visível em todo o espectro das
competências político-administrativas.
O MPD, que se define como partido
“liberal reformista”, terá que ser mais ousado em matéria de reformas. Se este
partido acredita nos princípios que propugna, não deve temer os conservadores,
deve prosseguir as suas políticas. O aprofundamento da descentralização e a desburocratização
total do país, são pois, indispensáveis para que cada ilha possa tornar-se um
pólo de criatividade e desenvolvimento, ao encontro das oportunidades que o
mundo global oferece. Mas para que o processo
alcance os resultados que almejamos, será necessário criar um “Observatório da Descentralização”
para o acompanhar, avaliar e revalidar em todas as etapas do seu percurso. Este
observatório deve incluir especialistas, consultores independentes, externos e
estrangeiros, para que se possa fazer uma avaliação objectiva da regionalização
e descentralização (as suas etapas, metas e futuros desenvolvimentos)
Antecipa-se, portanto, que o processo
de reformas atingirá os limites
tolerados pela actual Constituição, o que pode provocar o surgimento de alguma
crise provocada pelas próprias contradições geradas pelo sistema, que é adverso
à evolução e à inovação. A Constituição será, pois, obrigada a evoluir em
função dos contextos nacionais que são hoje muito voláteis.
Aceitar como definitiva uma reforma,
mesmo a mais perfeita, quando há muitas questões a merecerem uma abordagem
profunda, é pactuar com um statu-quo social e político que já não garante
nenhum futuro para Cabo Verde.
Dezembro
de 2016
José
Fortes Lopes
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