Quando Cabo Verde e o PAICV/MpD estão
numa encruzilhada de mudanças num mundo em crise e em transformação
Neste texto
embora se faça menção frequente ao PAICV, partido no poder, é fácil extrapolar
para o MpD alguns aspectos deste ensaio (caso venha ao poder, o que poderá
acontecer num futuro próximo), pelo que as referências são extensíveis a este
partido.
Ocorreu nos finais do mês de Julho o debate
tido como o mais esperado do país − ‘O Estado da Nação’ (1) − que a Semana online de 31 Julho 2013 caracterizou
como tendo dividido a classe política em duas visões distintas, uma reflectindo
uma situação nacional catastrófica e outra um país confiante no futuro.
Todavia, é com muita perplexidade que se assistiu a esse evento, que, simulando
um ritual de democracia, foi mais um show
para povo ver, destinado,
como já se suspeitava, a não debater coisa alguma de real consistência, tudo
isso passando-se num país onde a vontade de olhar para os verdadeiros
problemas é corrompida pela ânsia de atingir ou conservar o poder a todo o
custo. É
um país que parece ter-se transformado numa terra de indiferentes, dotado de
uma elite faz-de-conta, que nunca ‘ta Cdi’ a qualquer contributo da cidadania,
um país, enfim, onde dificilmente pode ocorrer um debate sério sobre matérias
que são de importância candente para o futuro,
sobretudo quando se tem em conta um mundo em crise e em transformação. Assim,
promover um debate com essa pretendida envolvência só pode ser entendido como
um acto de encenação ou de puro folclore político. Como é possível debater o
Estado da Nação quando o partido no poder, o mentor e principal sustentáculo do
regime, tem manifestado um autismo total em relação à sociedade civil,
recusando debater as verdadeiras questões da actualidade e cruciais para o
futuro do país, tais como o fim do Centralismo, a Descentralização, a Reforma
do Estado, a Regionalização e o aprofundamento da Democracia? De notar que
nenhum contencioso com a sociedade civil até hoje foi à concertação ou teve
desfecho consensual ou favorável.
Cabo Verde vive hoje num mundo aberto e em constante mutação (crises,
oportunidades, desafios), onde os processos se desencadeiam praticamente ao
mesmo ritmo em que circula a informação.
A crise
económica veio relativizar a importância dos estados soberanos e desvalorizar
os trunfos com que antes blindavam a sua economia, provando que mesmo os EUA e
a EU não estão imunes a uma possível desclassificação nos seus actuais ranking
mundiais. Nuvens cinzentas continuam a pairar
no horizonte da economia mundial,
antecipando profundas mudanças de paradigma político-económico mundial para as
próximas décadas. Novos países emergentes irromperam na cena internacional
manifestando pujança e dinamismo surpreendentes, e associando práticas
económicas e comerciais agressivas (salários baixos, dumping nos preços dos produtos exportados), o que desestabilizou
por completo os alicerces tradicionais da economia mundial, gerando sérias
dificuldades de readaptação aos países industrializados.
O impacto das novas tecnologias de
comunicação veio tornar o mundo mais próximo e mais igualitário no acesso às
inovações. A circulação instantânea de capitais, pessoas e bens a nível
planetário, os problemas ambientais e energéticos, a crise financeira global,
tornaram-se desafios do séc. XXI. Nenhuma sociedade ou país estará ao abrigo
das transformações que, para o bem ou para o mal, irão ocorrer no seu seio.
Grandes nações, incluindo os EUA, enfrentam desafios no tocante à
sustentabilidade das suas dívidas e dos seus sistemas de protecção social. A
sustentabilidade do estado social nos países da EU acarreta endividamento crescente,
um problema complexo e sem solução fácil à vista. Para complicar a situação, a
crise energética e o encarecimento das matérias-primas criam pressões cada vez
maiores nos recursos naturais e eventualmente uma ruptura climática à escala
planetária. Grandes blocos económicos, financeiros, industriais e políticos
tanto se formam como se poderão desfazer em função da evolução das políticas
económicas. As crises serão oportunidades para uns e desgraça para outros.
Muitas nações estão a preparar-se para os
desafios do futuro flexibilizando a sua economia (com custos sociais enormes) e
adoptando sistemas político-administrativos e económicos que possam dotá-las de
vantagens competitivas. Este é o novo paradigma da economia mundial no qual
Cabo Verde vai ter que se inserir, queira ou não queira, o que constitui um
desafio ingente para um país com vulnerabilidades congénitas. O fecho económico,
cultural, linguístico ou político de um país só pode significar problemas
irresolúveis a longo prazo. Daí que espanta que àquelas vulnerabilidades se
pretenda acrescer ainda um problema linguístico de trazer por casa.
Os recentes discursos do presidente do PAICV, José Maria Neves, têm
sido reveladores da evolução do pensamento do actual do regime em matéria
económica (2), destoando ou mesmo contrastando com o tom eufórico de há alguns anos,
o que denota uma maior consciencialização sobre a complexidade dos problemas que enfrenta Cabo Verde num
mundo contemporâneo em plena transformação. As declarações recentes entram como uma luva na mão do principal partido da
oposição, o MpD, e de vários sectores críticos da actual situação
socioeconómica do país, ao ponto de o PAICV em termos de política económica
parecer ter ocupado o centro (perigosamente para o principal partido da
oposição) do espectro político cabo-verdiano. No último documento
estratégico sobre a acção externa, o regime defende uma nova fase, consistindo
em "redinamizar fortemente" a acção externa no domínio económico,
passando Cabo Verde de receptor passivo da ajuda externa para atractor de
investimento externo, mercê de uma plena e activa inserção competitiva do país
no mercado mundial e da expansão e diversificação dos parceiros no mercado
mundial. Para isso pretende dar um salto, provocar rupturas (?!) para mobilizar
todos os actores, estatais, da sociedade civil e do sector privado, construir
parcerias e criar mais oportunidades para que o sector privado possa assumir
efectivamente o seu papel de motor da economia e para que Cabo Verde possa
"redinamizar fortemente" a acção externa no domínio económico. JMN
reconhece que o país não tem outra escolha senão inserir-se na economia mundial. Temos aqui na
pessoa do PM ‘uma autêntica oposição’ às políticas do governo do PAICV
aplicadas nos últimos 10 anos!? Mas Cabo Verde
não podia ser excepção, e não
podia estar blindado aos estilhaços da crise mundial, tendo em conta sua total
dependência do exterior.
Esta revolução
conceptual operada no discurso do poder foi, todavia, temperada ou
complementada, dias depois, com uma visão voluntarista do desenvolvimento,
defendendo-se a necessidade de “mais défice” e “mais endividamento”, como
condição para prosseguir o desenvolvimento de Cabo Verde, em ordem a que se
transforme num país moderno, competitivo, mais justo e de oportunidades para
todos. E como exemplo apontou as barragens inauguradas (todas construídas em
Santiago), os portos, os aeroportos, as estradas asfaltadas, etc., na linha da
demagogia da pseudo política desenvolvimentista do PAICV. Assim, num curto
espaço de tempo conseguiu o governo agradar a gregos e troianos, mas baralhando
o seu anterior discurso de rigor associado às reformas estruturais impostas
pelo FMI e várias organizações Internacionais e o Banco de Cabo Verde.
O PM encena assim
uma visão voluntarista do desenvolvimento, mas politicamente incorrecta para os
partidários da ortodoxia económica. JMN pretende
continuar com a fuga à frente na sua ‘soit disant’ agenda de transformação de
Cabo Verde, que tem sido um exercício de utopia pura, convencido que reproduzir
betão em larga escala no país contribui para algum desenvolvimento. De notar
que esta política de transformação de JMN tem sido amplamente denunciada pelos
regionalistas, que acusam o regime de pretender desequilibrar Cabo Verde,
criando um único pólo e acentuando o centralismo político e económico em
benefício exclusivo da capital Praia e da ilha de Santiago.
Mesmo dando de barato
‘o amor infinito’ do PM por Cabo Verde, é questão para perguntar-lhe qual é o
seu projecto ou verdadeiro conceito estratégico para este seu sonhado Cabo
Verde, que o impele a continuar a endividar um país de fracos recursos e sem
alavancas económicas. Como pensa pagar os encargos e a dívida acumulada? Que tipo de economia estes investimentos gerarão? Acredita, Sr. PM, que
poderá levar à frente um projecto revolucionário do ponto de vista económico,
na ausência de qualquer diálogo ou discussão com a oposição, com parceiros
sociais e económicos e a sociedade civil? Será que esta política novo-riquista
de betão e asfalto, que em muitos casos substitui levianamente o Velho pelo
Novo (como as demolições e obras de fachada que tem provocado uma descaracterização
acelerada e acentuada do centro histórico da cidade do Mindelo), será
prosseguida impunemente, continuando a desrespeitar, ao bel-prazer do regime,
valores patrimoniais materiais e imateriais das ilhas e do país?
Ok, não questiono
a legitimidade da sua aspiração por um país mais justo e de oportunidades para
todos, mas este Projecto “Casa para Todos”, com um nome pomposo, tirado do
vocabulário socialista, cheira à demagogia, pois não se vislumbra a criação de
um estado assistencial e providência, num país pobre que ainda não tem onde
cair morto. Mas esquece que em vez de prometer casa para todos, melhor seria criar
condições económicas para que todos tenham trabalho e uma vida condigna que
lhes permita aceder à propriedade.
Ok, para
barragens, portos, aeroportos, estradas asfaltadas ‘ao gosto do freguês’ em
todas as ilhas, mas onde está a visão de ‘Conjunto’ destes investimentos para o
desenvolvimento de Cabo Verde, a garantia do retorno dos investimentos, as
exportações geradas? Como e com quê prevê pagar a factura acumulada? Já pensou
na hipótese de falência técnica de Cabo Verde devido a estas políticas, com
aconteceu em Portugal e na Grécia?
Este é o busílis
da questão, a menos que o governo de Cabo Verde aposte singelo contra dobrado
que as nações ricas continuarão a injectar dinheiro a fundo perdido na nossa economia,
caucionando de ânimo leve a existência de um estado pouco
mais que falhado, mas com custos ou riscos que só a ignorância ou a má
consciência podem negligenciar. As lições de Portugal, Grécia e vários outros
países que se endividaram por suposta boa causa, mas irresponsavelmente, devem
ser objecto de ponderada reflexão em Cabo Verde. É preciso saber que uma
política de endividamento e défice excessivo nos mercados financeiros internacionais
é extremamente perigosa para a soberania de qualquer país. Acima de certa
percentagem do PIB (riqueza total produzida por um país num ano) as dívidas
tornam-se impagáveis, a menos que se proceda a um ‘Hair Cuts’ (perdão parcial
ou total da divida), opção que só pode ser conseguida com o apoio de grandes
nações e instituições, mas sempre com condições draconianas anexadas, porque os
investidores privados não gostam de perder dinheiro. Para além disso, é preciso estar consciente de que o contexto mundial
mudou drasticamente desde 2008, pelo que o Cabo Verde actual e do futuro não
podem continuar a reger-se sob a batuta de políticas voluntaristas ou
repentistas, muitas vezes ditadas pelo caderno eleitoral, mas sim por critérios de racionalidade nos investimentos reprodutivos
e na concepção de planos de desenvolvimento regional que rompam definitivamente
com os ciclos pobreza e estagnação do país. O povo
cabo-verdiano deveria estar consciente dos perigos de uma política aventureira
baseada exclusivamente no endividamento se nenhum projecto
consistente lhe estiver subjacente. O recurso a
empréstimos sistemáticos nos mercados internacionais é sempre uma moeda de duas
faces, se é certo e sabido que doravante os cabo-verdianos terão de pagar eles
mesmos os custos da sua soberania, não sendo bom conselheiro fazer vista grossa
ao ónus de um endividamento irresponsável. Tanto mais que cada dia vamos
percebendo melhor a lógica que comanda os desígnios dos mercados financeiros
mundiais, o lucro e a especulação.
Os alarmes do
FMI surgem assim como consequência das políticas de défice e endividamento em curso e servem para
lembrar que estas opções têm limites e custos. Com efeito, a dívida pública nos últimos anos atingiu níveis perigosos (95% para os
mais optimistas ou acima dos 100% do PIB), tendo em conta as dívidas das
empresas do Estado. O estado de vulnerabilidade de Cabo Verde está, assim, claramente
patente. Por
outro lado, segundo a revista inglesa “Economist Intelligence Unit” (3), a alta
volatilidade dos "fluxos de turismo e a dependência excessiva de Cabo
Verde neste único sector vai deixar a economia excessivamente vulnerável a
choques externos negativos. Por outro lado, a inexistência de dados oficiais do
PIB publicados a partir de 2010 tem impedido uma avaliação precisa do
desempenho económico recente de Cabo Verde.
Segundo Humberto
Cardoso (4) deputado MPD “Isso já era previsível e o governo não se preparou. E
agora diz que foi a crise que nos caiu sobre a cabeça. A verdade é que o país
não se libertou da dependência extrema, da ajuda externa. Todo o tempo de
transição devia servir para isso mesmo, fazer a transição. Mas o governo não a
fez. Limitou-se a surfar sobre o que existia, foi ganhando eleições no processo
e não fez o que devia ter feito, e que era óbvio, como o MpD insistiu durante
todos estes anos. Pelo contrário, deixaram morrer a indústria, desbaratam o
turismo, as novas opções que poderiam surgir em termos de tecnologia e inovação
ficam só em discursos, arruinaram a praça financeira e perderam-se
oportunidades sistematicamente por causa de uma postura conservadora de fazer o
papel de bom aluno para o exterior, conseguir fluxos de capitais e geri-los cá
dentro num quadro de manutenção do poder”. Conclui ”Os governos
do PAICV quando colocados perante o dilema desenvolver ou controlar, preferem
controlar’. Embora tenha razões de sobra para esta afirmação, não acredito que esta
atitude seja o apanágio exclusivo deste partido. Todavia a análise
profunda que Humberto Cardoso faz da situação de Cabo Verde deve merecer
atenção e tido em conta na procura de soluções para os problemas do país.
Persiste assim
sempre a dúvida se haverá alguma visão integradora e coerente, ou seja um
verdadeiro projecto nesta agenda de Transformação de Cabo Verde, cara a JMN e
ao regime. É caso para levantar então a questão, na medida em que se anuncia
que a cidade da Praia passará a ter o maior Porto do País, segundo informação
avançada pela Administração da Enapor da Praia. Esta ideia nunca tinha passado
pela cabeça de nenhum governante, nem antes nem depois da independência. A verdadeira
motivação do publicitado Urbi et Orbi
Cluster do Mar para S. Vicente fica assim desmascarada e apanhada
flagrantemente em contradição: um pretexto para avançar com o dito maior porto
de Cabo Verde na Praia, retirando o tapete ao Porto Grande (sobre esta matéria
ler a entrevista de Amiro Faria (4) no Expresso da Ilhas “O Porto
Grande é um potencial de facturação que não está a ser aproveitado”), despindo
Pedro para vestir Paulo, não obstante as condições de agitação marítima
naquele porto não serem favoráveis a uma tal pretensão?! Afinal, há sempre
dinheiros para investir na Praia, o que dá argumentos aos que acusam este regime de querer construir uma República de
Santiago! É preciso analisar todos estes sinais e saber como é que as elites
mexem os cordelinhos nesta aventura centralista. Mas onde param os
responsáveis, designadamente deputados por S. Vicente (na lua?), quando temos
aqui claramente uma política contraditória ao publicitado Cluster do Mar. Não
será o papel desta gente levantar dúvidas, interpelar e contrariar projectos
que aparentemente vão contra o interesse da ilha por que foram eleitos?
Tendo em conta
o contexto internacional e as diferentes pressões internas a que o regime vai
estar sujeito, conclui-se que Cabo Verde e o PAICV/MpD estão hoje numa
encruzilhada de mudanças. O PAICV, estando forçado a governar economicamente no
centro, coloca-se perante vários dilemas, e fica confrontado com a necessidade
de proceder à modernização do partido, tornando-o mais aberto à sociedade e ao
diálogo, incentivando reformas ‘progressistas’ no país. Caso contrário,
aprofundará o seu caciquismo, estilo mugabista, precipitando Cabo Verde para
uma dessas democracias de tipo africano, com um sistema político atrofiado e
uma economia dominada por uma clientela partidária ao serviço exclusivo de
interesses de uma pseudo-elite clientelar. As aspirações políticas de JMN,
fundadas num suposto desígnio redentor do PAICV, mediante a promessa de uma
longa duração do regime do seu partido, para além de 2030, denunciam claramente
uma tentação de hegemonia irredutível. Quanto ao MpD, não obstante ter pessoas
brilhantes, tem sido uma oposição apagada, sem ideias, sem discurso, que só faz
oposição durante os períodos eleitorais. É uma oposição expectante, esperando
que o poder lhe caia nos regaços com o mínimo esforço. Mas este partido estará
em sérias dificuldades se o PAICV tiver tempo de se reorganizar e ocupar
definitivamente o centro ideológico do país. Mas nada disso pode ser garantido
se o povo cabo-verdiano assumir a consciência de que é ele o verdadeiro suporte
das dinâmicas sociais e políticas do seu país. Até porque a imprevisibilidade e
a mutabilidade são marcas de um paradigma tão verdadeiro nos fenómenos do
comportamento humano como nas transformações vertiginosas do mundo actual.
(2)
-http://www.alfa.cv/anacao/index.php/economia/5326-cupula-do-paicv-preocupado-com-situacao-socio-economica
(3) -http://caboverdedirecto.com/index.php?option=com_content&view=article&id=3024:crise-tensoes-sociais-podem-incendiar-o-pais&catid=13&Itemid=102
(4)
-http://www.expressodasilhas.sapo.cv/exclusivo/item/37198-os-governos-do-paicv-quando-colocados-perante-o-dilema-desenvolver-ou-controlar-preferem-controlar
PS: Ao fechar
este artigo fui informado que o governo noticiou ter encomendado um estudo
sobre Regionalização que não está ainda concluído, uma vez que o prazo
inicialmente dado à equipa encarregada da tarefa teve que ser alargado devido à
necessidade de acolher, a posteriori, algumas novas preocupações inventariadas
pelo executivo!?.
Embora não conhecendo os contornos desta iniciativa o Movimento aguarda com
algumas expectativas os resultados deste estudo e os próximos passos do
governo.
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