A Situação e o Estatuto dos Crioulos
de Cabo Verde:
A REGIONALIZAÇÃO E O DEBATE SOBRE O CRIOULO
Este
artigo, que resolvi publicar de novo devido à sua actualidade, integra-se numa
série de 3 artigos publicados em 2012 versando sobre os estatutos dos crioulos
falados nas ilhas do Arquipélago de Cabo Verde e da língua portuguesa.
O debate sobre o Crioulo parece ter
tido uma brusca
aceleração da História em Cabo Verde
por iniciativa oficial da Casa Parlamentar, que
promoveu um fórum parlamentar de 17 a 18 de Maio de 2013 na Assembleia Nacional, defendendo agora um bilinguismo
social efectivo e a oficialização da Língua Cabo-verdiana, uma posição mais
moderada em relação às posições radicais tidas no passado. O Ministro da Cultura, Mário Lúcio Sousa, afirma que o Crioulo tem sido
vítima de uma longa e injusta
clandestinidade, lamentando o facto de ele ser a única língua que não é oficial
no seu próprio solo, e que agora a acção e o tempo verbal conjugam-se no sentido de oficializar
o crioulo de Cabo Verde e que o futuro da escrita, a sua padronização e o seu ensino
dependem da respectiva oficialização. Estas afirmações provêm de quem vem sendo
identificado como o pivot, porventura o mais militante, da tendência
fundamentalista radicada no governo e seu partido, cujo intuito é um
emassamento sociológico em ordem a que a ilha de Santiago, a sua população, a
sua cultura, e desde logo o seu crioulo, representem a única matriz identitária
do povo cabo-verdiano. Longe de reunir o mínimo consenso, e com uma pressa que intriga
e levanta legítimas interrogações, tudo se faz para que essa realidade se
insinue paulatinamente no quotidiano cabo-verdiano, umas vezes de forma subtil,
outras com ostensividade e à custa do erário público, o que causa perplexidade
e repúdio aos cidadãos que ainda não hipotecaram a sua consciência cívica.
Esse debate coincidiu com o lançamento na versão ALUPEK de ‘Konstituison
di Republika’ por Mário Silva, presidente da Fundação Direito
e Justiça (FDJ), a tradução da carta magna para a versão badia do crioulo.
Recorde-se que o ALUPEK é um polémico alfabeto tropical que se propõe
substituir o actual alfabeto etimológico, e como tal considerado pelos seus
autores como o melhor processo de funcionalizar a escrita da variante que
elegeram como crioulo cabo-verdiano. É curioso sublinhar que todas estas
iniciativas têm o berço na ilha de Santiago mais propriamente na localidade de
Sª Catarina, reputada por ser o berço dos fundamentalismos e irredentismos.
Este debate coincide também numa
semana em que o Presidente da CMSV pôs a nu o marasmo social galopante que se
vive na ilha de S. Vicente, acusando o governo actual de ter praticamente
abandonado as outras ilhas à sua sorte e de ser um ‘governo de Santiago’, e de
o PAICV ter instalado a “República de Santiago”. Nesta lógica de pensamento
podemos dizer que só faltava a esta república a sua língua. E agora tem-na.
O debate sobre o Crioulo ganha assim nova dimensão e dinâmica numa
altura em que aquece um outro sobre a Regionalização, em que precisamente esta
política linguística do regime está na mira dos regionalistas, sem que no entanto apareça alguma iniciativa
oficial, ou que a Casa Parlamentar promova
um fórum parlamentar para debater Regionalização, um reforma tão imperiosa como fundamental
para Cabo Verde. Esta pressa na Oficialização do Crioulo ficou vincada na
afirmação do presidente da Assembleia
Nacional (AN), Basílio Mosso Ramos “Depositamos enormes expectativas neste Fórum
Parlamentar. Temos que admitir que todo o processo visando a oficialização da
língua Cabo-verdiana, sua padronização, escrita e ensino, não se afiguram como
sendo uma tarefa fácil. Assim, não podemos ter a pretensão de conseguir reunir
todas as condições, para só depois avançarmos”. Já o líder parlamentar do MpD, Elísio Freire, é mais cauteloso, reconhece
que na sociedade cabo-verdiana há um acordo global de que o crioulo é a língua
que nos une, mas considera que não se deve transformá-la numa língua que vai
desunir os cabo-verdianos.
O debate sobre o Crioulo tem sido uma constante nos últimos 50
anos, desde o tempo da administração portuguesa, passando pelo regime de
partido único, até se chegar à actual democracia pluripartidária. Neste momento
em que a Regionalização está na agenda nacional, faz todo o sentido trazer à
colação a problemática do Crioulo, quiçá incluindo-a no mesmo pacote, como
elemento indissociável daquela reforma do Estado em vista. Anteriormente,
durante o regime colonial, esse debate era passível de arrostar sempre uma certa
carga ideológica, causando constrangimento se não político pelo menos ao nível
de possíveis ressonâncias culturais indesejáveis para o poder então vigente. De
facto, por hipótese alguma se daria aval à projecção de uma língua que
concorresse com a língua oficial e de Estado. O resgate do Crioulo para a luz
da ribalta, no pós-independência, em clima festivo de total liberdade de expressão
e pensamento e de extravasamento efusivo de tudo o que era recalcado, aparece
associado à visão de um Crioulo como instrumento de libertação.
Todavia, é com o advento da democracia que o debate sobre a língua toma
um cariz mais técnico, com o pressuposto da necessidade de compreender e
estudar a sua génese, desde logo associando-a àquilo que os sucessivos regimes
consideram essência da nação cabo-verdiana. E é então que se prevêem
dispositivos institucionais para a sua protecção, dentro de um sistema
bilingue, onde o Português ficou, no entanto, definido como a língua de
comunicação oficial, possivelmente até ulteriores etapas
para a consagração plena da chamada “língua materna”, numa situação de
bilinguismo assumido, onde o papel da língua portuguesa, por questões práticas,
não poderia nem deveria ser posto em causa. Porém, nos últimos 10 anos, sob a
batuta do PAICV, ressurge o debate sobre o Crioulo numa perspectiva
marcadamente ideológica, desta vez sob uma bandeira identitária santiaguense, com
o Crioulo a ser apresentado como um instrumento de libertação de um “povo dominado
linguisticamente”. Tese surrealista muito cara ao que resta de uma certa elite
maniqueísta cabo-verdiana saída do esquerdismo do 25 de Abril, bem como a certos
sectores ligados ao actual poder e ainda muito presos a algum radicalismo
mental, para quem uma ruptura total com a considerada “língua de domínio
colonial” seria uma maneira de enterrar traumas ainda não resolvidos, ainda que
usando um discurso ambivalente ou ambíguo para ocultar o seu verdadeiro íntimo.
Se a instauração de um processo de estudo dos Crioulos de Cabo Vede
parece louvável, já a oficialização prematura e apressada do Crioulo aparece,
todavia, mais como um “coup de force”desses grupos Fundamentalistas, como
Onésimo Silveira os caracteriza, apoiados e financiados pelo Governo, apanhando
de surpresa muitos cabo-verdianos que andavam mergulhados no sono da sua apatia
e demissão cívica. Talvez porque ninguém imaginasse semelhante ousadia, súbito
despontou nos espíritos uma apreensão generalizada sobre as consequências de
uma aventura que pode ser desastrosa por significar o fecho umbilical
linguístico de Cabo Verde, medida por certo encarada como essencial para um utópico
e irrealista retorno às “origens”, isto na perspectiva dos Fundamentalistas, o
que só pode acarretar um retrocesso do país face aos padrões culturais a que se
moldara. O regime, para satisfazer a sua base de sustentação sociológica ou
mesmo étnica, e em coerência com uma matriz ideológica que remonta aos tempos
da luta de libertação, onde o sonho e a utopia não tinham limites, lançaria
assim o país numa perigosa aventura, mediante uma precipitada adopção do uso do
Crioulo como futura ferramenta de trabalho, ao mesmo tempo que desincentivando
o uso corrente do Português, relegando-o para o plano de uma mera língua
estrangeira, numa altura em que não existem condições para que tal ocorra.
Aquilo que devia representar um lento e gradual processo de maturação e
experimentação, ao longo de décadas, lustres ou mesmo séculos, envolvendo
investigação e estudo académicos sérios, com investigadores experimentados e a
elaboração de estudos e análise de cenários prováveis, que poderiam apontar
inclusivamente para a sua ineficácia, aparece apressadamente como um processo
acabado, um prato pronto a ser servido friamente a Cabo Verde e aos
cabo-verdianos. Nunca se vira tanta ligeireza em Cabo-Verde, quando, numa
questão de semelhante delicadeza, seria de esperar muita cautela e bom senso, a
“sagesse” e, necessariamente, o diálogo. E isto quando Cabo Verde continua bastante
vulnerável e confrontado com questões inerentes à sua viabilidade: o país não
tem recursos, está ainda totalmente dependente da ajuda externa financeira da
comunidade internacional para a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento,
incluindo a garantia dos instrumentos básicos para a afirmação da sua
soberania. Sendo inquestionável a intenção que subjaz à defesa e dignificação do
Crioulo, o processo da sua oficialização poderá obviamente ser aprovado em sede
democrática, mercê de uma maioria unicamente de base numérica, mas nunca o será
com a legitimidade que só pode ser conferida por um escrutínio alargado,
qualificado e diversificado, como impõe uma questão de tamanha delicadeza e
importância para o futuro do país. Mas claro que não foi assim nem parece haver
preocupação de agir de outra maneira. Primeiro, tentou-se iludir os cabo-verdianos
com o anúncio de que oficialização da versão, dita, badia do Crioulo, estava
apenas circunscrita à chamada “República de Santiago”, como símbolo de uma assumida
identificação sociológica e cultural com o que se considera a “origem”. Tal
atitude confunde abusivamente as pessoas, que “naivement” tenderiam a
convencer-se de que se está oficializando os “Crioulos”, como denuncia com toda
a razão Onésimo Silveira nos seus recentes artigos. Mas como pedir bom senso
num país em que a corrida desenfreada ao “progresso e desenvolvimento” induzido
de fora e assente na assistência internacional, não dá tempo para pensar em
todas ou diferentes opções sobre importantes matérias de interesse nacional?
Com efeito, esta marcha forçada e apressada é intencional para que as pessoas
não reflictam nas suas sérias implicações, pois o que se pretende é recriar o
paradigma do Estado-Nação, Unitário e Homogéneo, típico do século XX, mediante
a fusão genética num único povo, o cabo-verdiano idealizado, injectando-lhe a
fusão linguística dos Crioulos numa Língua Unitária, a língua cabo-verdiana
idealizada e utópica, e com uma Administração Política e Económica Unitária e
Centralizada na Praia (configurando assim assim o ideal do Estado, napoleónico,
jacobino, centralista e burocrático). Compreende-se esta atitude como sendo a
tendência normal dos Estados em processo iniciático de consolidação, mas, como
diz o ditado, não se podem fazer omeletes sem se quebrarem ovos. Porém, o
busílis da questão reside na circunstância concreta de nem todos os ovos serem
propriedade do cozinheiro-mor, pois não é possível iludir o carácter
arquipelágico e regionalista de Cabo Verde, sendo de todo impossível fazer
desaparecer os Crioulos e a ‘biodiversidade’, no sentido lato, do país. Relativamente
a este aspecto, Onésimo vem lembrar ‘Aqui D’el Rei’ que no Arquipélago de Cabo
Verde existem formalmente Crioulos e não um Crioulo como pretendem. Nenhum
teórico, por mais brilhante que seja, pode convencer alguém do contrário. Nesta
situação, é legítimo que se re-instaure um debate sobre os Crioulos de Cabo
Verde. E não adianta lançar acusações de anti-patriotismo e de inimigo do Crioulo
aos que propugnam pela racionalidade da solução do problema. Um confronto
levado a este extremo fica completamente poluído por emoções nocivas. E aí
reside precisamente o grande pomo de discórdia que tem assombrado uma discussão
que só pode pautar-se por clarividência e serenidade. E o governo em vez de
serenar os ânimos, suspendendo o processo, acrescenta ainda mais confusão com
os diversos anúncios que vem lançando em matéria de Oficialização do Crioulo.
No seu último artigo, Onésimo Silveira refere-se ao debate sobre os Crioulos:
“Para eles, não há ilhas, mas sim uma ilha-continente; não há sociedades
cabo-verdianas, mas sim a sociedade da sua ilha; não há Crioulos, mas sim um Crioulo,
o seu, que a “língua materna” tem de impor às ilhas periféricas.” O mesmo autor
adverte os chamados Fundamentalistas para o erro de olhar para a democracia
como exclusivamente legitimada pela aritmética eleitoral, esquecendo que ela
pode vir a ganhar os mesmos germes de permissividade e violência psicológica de
um regime de ditadura. Mas neste preciso domínio nos encontramos felizmente
resguardados pelo constitucionalismo democrático que garante um sistema eficaz
de freios à acção do governo. Infelizmente, Cabo Verde continua a ser um campo
de experimentação de uma certa esquerda sonhadora, nomeadamente no campo da
cultura, que se converteu na chamada “gauche caviar”, que, no entanto, quando
lida com o poder e o dinheiro se revela de um pragmatismo a raiar a hipocrisia
e a negação dos valores e princípios por que devia propugnar. É esse mesmo
sector da nossa sociedade que, mandando às urtigas os seus engulhos e complexos
mal resolvidos, não abdica de cultivar o Português erudito e de tentar obter nacionalidade
portuguesa. Onde está a coerência? A advertência de Onésimo vem mesmo a propósito,
colocando os pontos nos ‘is’: Em cada ilha deste arquipélago existe uma
realidade concreta e objectiva: pessoas de carne e osso, não meros eleitores, falando
quotidianamente os seus Crioulos, não havendo lugar para um Crioulo Oficial, Imaginário
e Utópico. Nenhuma medida política ou administrativa pode redesenhar esta
realidade.
Mas num país onde o amadorismo floresce e ganha terreno cada dia (ver o
debate que tem ocorrido na sociedade civil sobre proliferação de universidades
e escolas sem conteúdo, projectos insustentáveis), é fácil revender banha da
cobra e requentar várias vezes pratos pré-cozinhados. Acostumados a comer gato
por lebre, ou a pôr óculos verdes às cabras para poderem comer pedra, muitos
cabo-verdianos rejubilam-se na unanimidade do discurso politicamente correcto
sobre o Crioulo libertador, sem se perspectivar os problemas decorrentes de uma
oficialização precipitada do Crioulo e da eliminação do Português do quotidiano
cabo-verdiano e a enorme ratoeira em que o resto de Cabo Verde se mete. Nunca
se debateu nem se apresentou os prós e os contras, os riscos desta opção, numa
sociedade onde o debate de ideias e discussões públicas sobre o futuro de Cabo
Verde são incipientes ou inexistentes. O Governo ainda não explicou como vai
resolver a problemática dos Crioulos, deixando tudo para improvisação e a batata
quente para outros, pois alguém terá de, consciente e responsavelmente, escolher
uma das três soluções. Ou se tende para Crioulo-Esperanto, fusão artificial e
utópica de todos os Crioulos, fazendo desaparecer as outras versões do Crioulo;
ou se oficializa todos os Crioulos de uma vez e em todas as ilhas, o que
corresponde a uma situação insustentável, típica de Torre de Babel; ou se
oficializa simplesmente o badio, como via experimental para o Crioulo padrão a
oficializar (é sabido de antemão que oficiosamente o governo vem experimentando
a implementação do badio como Crioulo oficial, apesar de pretenderem o
contrário. Os sinais exteriores denunciam essa atitude dúbia). As três soluções
sobre a mesa são, portanto, e a priori, inviáveis ou inaceitáveis. (A
problemática da língua portuguesa, outro assunto bicudo, será discutida na 2ª
Parte deste artigo).
O primeiro risco da oficialização do Crioulo-badio
tem a ver com o reforço do efeito centrípeto desta medida, com incidências inevitáveis
no centralismo, desta feita em termos linguísticos. Mas pergunta-se se o
mindelense ou o santantonense abandonarão os seus Crioulos para abraçarem o
badio ou o Crioulo-Esperanto? É bom que os governos, e quaisquer que eles sejam,
tenham em atenção a gravidade que reveste a deliberada e programada extinção do
património linguístico e cultural das ilhas do arquipélago, com a imposição de
um Crioulo eleito como padrão e a tentativa de extinção, não natural, das
outras versões. Para além de ilegítima, seria um atentado à diversidade
cultural cabo-verdiana. É bom que saibam que podem ter de responder tanto
perante os cabo-verdianos como perante a comunidade internacional. (Continua: A
Situação e o Estatuto da Língua Portuguesa em Cabo Verde: A REGIONALIZAÇÃO E O
DEBATE SOBRE O CRIOULO)
José
Fortes Lopes
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