O
Debate da Regionalização e a renovação política de Onésimo Silveira
(Da Génese do Centralismo em Cabo Verde ao Debate da
Regionalização: 3ª Parte)
Como vimos precedentemente há uma tentativa
de capturar e desnaturar o debate da regionalização em favor de uma ala
centralista e conservadora, que congrega uma agenda etnocentrista ou fundamentalista
e uma outra de interesses políticos associados às redes de privilégios sociopolíticos
e económicos do país, adversos a qualquer mudança ou reforma.
Amilcar Cabral só poderia estar envergonhado
com os ditos actuais herdeiros e seguidores.
O conceito de “Regionalização Administrativa” seria assim o denominador comum, a ‘reforma’
mínima aceitável aos olhos dos diferentes grupos que controlam o poder
actualmente no país. Esta seria
a ‘reforma na continuidade’ de um sistema
já cansado e que governa o país há décadas, usando substancialmente variantes do
mesmo e esgotado conceito de desenvolvimento, aquilo que é designado hoje eufemisticamente
de Pensamento Único, e que em Cabo Verde toma a forma de um supra-partido único
transversal à toda sociedade.
Pode dizer-se que o Onésimo Silveira é seguramente
um gato político, porquanto já teve várias vidas políticas (costuma-se dizer
que os gatos têm sete vidas). Estaremos perante o seu sétimo combate ou o
último pulo do gato? A regionalização, uma das suas bandeiras, poderá ser uma
excelente oportunidade para o velho nacionalista e político mostrar os seus
dotes de combatente, deixando assim uma herança política, com a sua marca, à
sua ilha natal e ao país. A ver vamos.
Teria sido
interessante a participação conjunta neste debate, de outro velho nacionalista,
Leitão da Graça, líder da extinta UPICV, um natural de Santiago, defensor da
regionalização, e que acabou de declarar na Inforpress “A regionalização é uma coisa boa
e, por isso, sempre fui a favor”, disse, lamentando que até ao momento este
facto não tenha ainda acontecido em Cabo Verde. Na sua opinião, o PAIGC (hoje
PAICV) sempre teve medo da regionalização. Hoje, gaba-se de ter escrito, em
panfletos, apelando à autonomia das ilhas. Para Leitão da Graça, com a
regionalização não significa que a unidade do país possa estar em causa.” (In Inforpress) (6).
Onésimo Silveira aparece, assim, quer queira quer não, como figura
crucial neste debate, um ‘pivot’ fundamental entre as diferentes tendências e
modelos em discussão e o provável interlocutor nas eventuais futuras
negociações.
É assim que o Onésimo
Silveira é apanhado (involuntariamente?) nesta ratoeira conceptual inventada
pelos sectores conservadores do PAICV. Ao fazer questão de vincar, nos últimos
artigos, a defesa de uma “Regionalização Administrativa”, em vez da “Regionalização” “tout court” (4), incorreu involuntariamente ou
desnecessariamente em contradição com as teses que defendeu no colóquio/“atelier” sobre a Regionalização,
de 9 a 11 de Abril de 2007, que serviu para o
enterro do projecto. Este evento, segundo a então Ministra da Presidência do
Concelho de Ministros, Reforma do Estado e Defesa, Cristina Fontes “visava
consensualizar os conceitos em torno da matéria da descentralização,
desconcentração, ou até mesmo regionalização”, que “o Governo tinha a sua
posição, mas que estava aberto para ouvir as outras opiniões existentes; mas
que defendia um “Estado suficiente", não havendo lugar para centralismos
ou posições que ponham em causa o Estado unitário em Cabo Verde” (2). Adriano
Miranda Lima (2) nos
reporta, baseando-se em notícias então publicadas, que Onésimo Silveira ter-se-á mostrado favorável a
uma «Região
Política», indo assim na altura contra algumas correntes redutoras ou
conservadoras do conceito de regionalização. Mais, Silveira, num conceito mais
ambicioso, quiçá de ressonâncias futuristas, defendeu «a existência de regiões fora do território nacional, coincidentes com a
geografia em que estão inseridas as comunidades emigradas», oferecendo
assim um tema de estudo ao companheiro Luiz Silva, sobre o qual se vem
debruçando entusiasticamente. Neste mesmo colóquio, José Maria Neves, como se
estivesse exorcizando o fantasma de qualquer transformação orgânica no país que
atente contra o poder dominante e total concentrado na ilha capital, afirmou
aceitar unicamente o reforço do municipalismo. Apontou um conjunto de
argumentos que, em sua opinião, desaconselhariam a criação de regiões políticas
autónomas, a começar no facto de não haver enquadramento constitucional (2). Imaginem
o nível do argumento! Será que os outros países (Marrocos, por exemplo)
teriam já esse enquadramento quando realizaram tal reforma (5)? A
resposta é obviamente não. Este dilema de causalidade é uma
questão clássica, facilmente ultrapassável se houver vontade e determinação política. Na realidade, reformas desta natureza necessitam grandes homens ou
homens de carácter (George Washington, James Madison, Charles de Gaulle, François Mitterrand, Nelson Mandela, Rei do Marrocos, etc),
um conceito e um projecto novo, como aconteceram nos momentos cruciais e nos
países em que elas foram levadas avante (4,5). Portanto, não brinquemos com conceitos e não tentemos separar
artificialmente a regionalização em duas componentes, a administrativa e a política,
pois estaremos a incorrer em pura manipulação conceptual, com o único intuito
de atrair ‘eleitorado’ e enganar os incautos. Pois se ambos os prós e os contra
da regionalização, que defendem processos conceptualmente diferentes,
‘desatarem’ a chamar a reforma pelo mesmo nome, regionalização administrativa, no fim, o povo, que queremos
esclarecer cabalmente, ficará refém de uma ambiguidade que produzirá um efeito
inverso, e a confusão política nesta matéria será total e instalada para muito
tempo. Por esta e outras razões é que apontei a inoportunidade da realização,
no presente contexto, de um referendo sobre uma matéria tão séria e sensível.
Como os franceses dizem “Il faut appeler
un chat, un chat”, ou seja, falemos de regionalização ‘tout court’ (4, 5). Isto leva-nos a apelar a realização de
estudos consistentes, debates e campanhas diversos para esclarecer as pessoas e
separar as águas. Mas não há meio de o PM declarar oficialmente a abertura dos
trabalhos e do debate, todo convencido de que anda a ganhar tempo para que tudo
acabe em águas de bacalhau. Ou não terá ele coragem nem estofo para liderar
este processo!?
Mas foi todavia na
Workshop sobre Reforma do Estado, Justiça e Segurança realizada no âmbito da
Conferência Nacional do PAICV de 28 a 3 de Setembro 2012, que uma ala do PAICV
iniciou uma ofensiva ideológica contra a regionalização, que culminou no
recente Conselho de Ministros no Mindelo. O PM assinalou como inaceitável
qualquer veleidade política à reforma, apresentando ao país o modelo
pré-cozinhado, chamado de Regionalização
Administrativa, correspondendo, na visão José Maria Neves e dos sectores mais conservadores
do PAICV, simplesmente, ao reforço do municipalismo, ou seja, aquilo que
qualificam de “supra-municipalismo”, terminologia bastante ambígua para este
debate, e que também Onésimo Silveira resolveu, aparentemente, adoptar.
Mesmo assim, a
pobreza do argumentário dos que estão contra a regionalização é aflitiva e
resume-se, quando não se recorre a ataques baixos e de carácter pessoal, a afirmações
e generalidades de La Palisse, do tipo: “A
maioria das pessoas que têm intervindo dizem claramente que a regionalização
política é um disparate em Cabo Verde, por ser um país de apenas cerca de 4.033
quilómetros quadrados e menos de meio milhão de habitantes”. Como refere Adriano Miranda Lima (2), “os responsáveis do
Governo recorrem normalmente a um discurso circular, feito de generalidades e
lugares comuns, sempre que têm de pronunciar-se sobre o assunto, enquanto o
centralismo ostenta uma dureza de pedra e cal, o que demonstra que a política,
não raras vezes, pode ser a mais perfeita arte de dissimulação. Mas como desde
o colóquio realizado na Praia o assunto parece ter arrefecido nos meios
oficiais, ou adiado para as calendas gregas, é caso para imaginar que José
Maria Neves teria aspergido água benta sobre o retábulo do colóquio, para
exorcizar o fantasma de qualquer transformação orgânica no país que atente
contra o poder dominante e total concentrado na ilha capital”. E “A verdade é que não se vê uma firme vontade
política, da parte do poder, de reformar o modelo organizativo do país, quando
as actuais circunstâncias nacionais e internacionais aconselham a repensar o
presente” (3). Na realidade, do que JMN e os sectores
conservadores da sociedade cabo-verdiana não querem ouvir falar é de reformas
do sistema económico e político do país, a que uma verdadeira regionalização
forçosamente obrigará, pois como facilmente se compreenderá, ela vai mexer com
interesses instalados, das elites, dos grupos de pressão, dos agentes políticos
e económicos, todos confortavelmente refastelados na poltrona da centralização. Agarram
ao centralismo como um cão ao seu osso. Portanto para eles nada de
protagonismo para S. Vicente e outras ilhas. Na realidade, muitos outros que
não partilham desta visão centralista estão convencidos que o centralismo é a
fonte actual do poder e a mãe de muitos dos problemas actuais de Cabo Verde.
JMN tem-se,
portanto, desdobrado em esforços para diluir ou esvaziar o conteúdo do debate
sobre a regionalização, após ter prometido a sua realização e a abertura de um
Livro Branco. É por estes sinais inquietantes que o leitor comum pode
confundir-se com essa insuficiente explicitação do pensamento do Onésimo
Silveira, e indo mesmo ao extremo de nelas poder descortinar, quiçá
injustamente, uma tentativa de aproximação conciliatória às dúbias intenções do
governo, o que, a confirmar-se, voltaria a ser altamente comprometedor da
credibilidade daquele político mindelense. Por conseguinte, é de toda a conveniência
que o Onésimo Silveira evite esta similitude expressiva entre ele e o JMN em
matéria de regionalização, ou que afaste as eventuais
suspeitas da existência de uma aliança objectiva ou de um acordo implícito
sobre o modelo de regionalização minimalista ou de compromisso, antes de
qualquer debate, o que a ser verdade frustraria
as pessoas que deram o corpo a este combate de cidadania. Todavia,
desenganem-se os opositores se pensam que exista alguma divergência de fundo
sobre a regionalização entre a maior parte dos regionalistas, incluindo Onésimo
Silveira. Inclusivamente, até se
pode conceber que determinados líderes possam vir a concluir que afinal determinado
modelo que tinham defendido já não será o mais adaptável ao nosso
circunstancialismo, mudando, por isso, de opinião, mas sem abdicar da sua
crença na irreversibilidade da reforma. Não devemos ser dogmáticos nem
sectários, pois costuma-se dizer que só os burros é que não mudam de opinião,
pelo que estaremos abertos ao debate e a eventuais futuros compromissos, desde
que haja honestidade intelectual na posição das pessoas.
Na realidade, defender, a priori, uma regionalização
minimalista limitada a um formato meramente administrativo, que sintetizasse a linha
dos actuais detractores da reforma, tentando assim definir de antemão os
contornos do futuro debate, que deveria ser alargado e participativo, constitui
uma tentativa de condicioná-lo e de antecipar as conclusões do mesmo, muito ao
gosto dos partidos do poder de matriz centralista e autoritária. Esta atitude
não facilitará a criação de uma plataforma de entendimento consensual sobre o
modelo de descentralização e regionalização mais adequado à realidade
cabo-verdiana, para a elaboração de propostas concretas sobre o futuro político,
administrativo e económico de Cabo Verde. Pois, embora o aval de experiências bem-sucedidas
no Mundo, não existe uma doutrina uniforme sobre a descentralização, nem
verdades axiomáticas sobre esta matéria, muito menos teorias dogmáticas, comprovado
está que o estudo e o planeamento de uma descentralização/regionalização
envolvem uma série de variáveis, que são pertença da substância complexa e
multiforme do problema, e que elas são do âmbito político, geográfico,
demográfico, económico e histórico-cultural (3).
Sugiro, assim, ao Onésimo que clarifique
melhor o seu pensamento, porque, como se costuma dizer, à mulher de César não
basta ser séria, tem de parecer ser séria. Isto quer dizer apenas que pode este
político estar a incorrer num risco involuntário e absolutamente desnecessário,
que levará outros a
murmurar: “Naquele país, falar de
regionalização (política e administrativa) é quase um crime de lesa-pátria ou
um acto de desobediência cívica à doutrina centralista do PAICV, partido que
muitas vezes sente-se dono e polícia da consciência do país”.
Em todo o caso,
e dando-lhe o benefício da dúvida, quero crer que, contrariamente ao JNM,
aquilo que Onésimo propugna para Cabo Verde, em geral, e a ilha de S. Vicente,
em particular, é a regionalização no seu significado conceptual mais amplo e
mais completo: eleição de órgãos representativos e governativos próprios e
certo grau de autonomia financeira e de decisão política. De resto, tem sido
por demais evidente em todos os artigos já publicados sobre regionalização
(Arsénio de Pina, Adriano Miranda Lima, António Pascoal Santos, Luiz Silva, da
minha própria pessoa, e vários outros jovens autores como Aldirley Gomes) e da
posição já expressa por vários políticos locais e nacionais, que o conceito
envolve um carácter político e simultaneamente administrativo bem como uma
autonomia que, citando Adriano Miranda Lima (1), “corresponderá à amplitude que for conferida à transferência de
autoridade político-administrativa, que quanto maior é, mais efectiva torna a
autonomia. Uma autonomia configura responsabilidades político-administrativas
próprias no espaço jurisdicional de um poder local e circunscrita a certas
áreas de governação, que excluem normalmente as que têm uma relação directa com
a soberania e são da estrita dependência do governo central.”
Voltando ao
princípio desta narrativa (1ª parte), vimos que a antiga administração
colonial, já na sua fase final, pensou num figurino administrativo diferente
para o arquipélago de Cabo Verde e chegou a indigitar um governador para o
Grupo Barlavento, o que revela já na altura uma correcta percepção das
consequências político-administrativas da descontinuidade territorial da
colónia e da necessidade de uma resposta adequada e mais próxima dos interesses
daquelas ilhas. O companheiro e conterrâneo Adriano Miranda Lima, que foi
vizinho em Tomar do governador então digitado, Dr. Jerónimo Graça (falecido em
2011), confirma que ouviu directamente da sua boca o facto aqui referido.
É verdade que
tal solução não corresponderia propriamente ao que hoje defendemos actualmente para
o país – a regionalização – mas constituía certamente o primeiro lance de um
olhar realista para os problemas do arquipélago. Na realidade, a iniciativa do
governo do MPD nos anos 90 seguiu, em certa medida, a lógica subjacente ao
projecto da administração colonial, e se não fosse abortada por questões de ordem
ideológica, estaríamos hoje a desfrutar em todo o arquipélago do seu impacto
socioeconómico e quiçá político. Todavia, na presente conjuntura, essa
regionalização minimalista já está fora do contexto, ultrapassada no seu
‘timing’, na medida em que como referi precedentemente, a sua concretização
actual só serviria para matar a ideia e o conteúdo da regionalização, servindo
exclusivamente os interesses de uma oligarquia política e económica bem
instalada no conforto do poder, que tudo fará para abafar qualquer ‘radiografia’
do país, debate e tratamento dos problemas candentes da sociedade cabo-verdiana
contemporânea. Ontem como hoje, a solução dos problemas de Cabo Verde requer o
equilíbrio entre o factor geoeconómico e o político “tout court”, o primado da
racionalidade sobre a obtusidade mental. Nenhuma decisão sobre a regionalização
deverá ser tomada sem uma ampla discussão envolvendo os principais actores e a
sociedade civil. Tão pouco será possível introduzir esta reforma e as que vêm
anexadas, sem as preceder de um debate sobre o acervo de
mudanças profundas e necessárias que o país reclama. Pois a regionalização,
mormente a minimalista, sendo parte da solução, não será de certeza a panaceia
para os muitos problemas graves e crónicos que já assolam o país. (FIM)
PS: A experiência de regionalização em curso em Marrocos
(5), da iniciativa e impulsionada pelo próprio rei (que não pode ser acusado de
querer dividir o seu país), e já em fase avançada de implementação, prova ser
uma reforma natural e que merece a nossa atenção, desmonta as inverdades e
fantasmas que, infelizmente, alguns querem construir em torno da problemática. Esta
reforma é já prova de maturidade política de um país como o Marrocos.
(1) LIMA, Adriano, “Descentralização
Político-Administrativa (Entre a teoria e a realidade prática) – 1ª Parte”,
Liberal Online, Fevereiro de 2012
(2) LIMA, Adriano, A Regionalização em
Cabo Verde: Recentrar o tema na agenda Nacional. Liberal Online, Fevereiro de
2012
(3) Fortes Lopes, José, “Reacção do Movimento para a Regionalização de Cabo
Verde aos recentes desenvolvimentos políticos em Cabo Verde”. Notícias do Norte
& Liberal Online, de Outubro de 2012.
(4)
La Régionalisation, une histoire de plus d’un
demi-siècle. Association des Régions de France (A.R.F.) http://www.arf.asso.fr/histoire-du-fait-regional.
(5)
La Commission Consultative de la Régionalisation
(CCR), Maroc:
-http://www.regionalisationavancee.ma/PageFR.aspx?id=5;
-http://www.diplomatie.ma/Regionalisationavancee/tabid/220/language/fr-FR/Default.aspx;
-http://www.libe.ma/La-question-de-la-regionalisation-au-Maroc_a9519.html.
(6)
http://noticias.sapo.cv/vida/noticias/artigo/1307828.html#showcomment
José Fortes Lopes
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