Da Génese do
Centralismo em Cabo Verde ao Debate da Regionalização
1ª Parte: A
Génese da ideologia do Centralismo - a
Para percebermos como a problemática da Regionalização é antiga e
já olhada com muita acuidade nos finais do século XIX, a leitura dos recentes artigos do Luiz Silva (Cabo Verde: Regionalização e Emigração I,II) publicados no Expresso das
Ilhas dá-no-lo a conhecer e mostra-nos que ela é secular. Além disso, o
extracto de um email recente nos faz recuar 50 anos no tempo para vermos que a
problemática nunca saiu da actualidade. Alguém escreveu e traz informações
desconhecidas para a maioria das pessoas: “Naquele
país, falar de descentralização é quase um crime….. Herdámos uma administração
colonial centralizada que servia muito bem os desígnios dos apoiantes do PAICG,
depois CV, por isso não mexeram nela. Uma curiosidade: Hoje ninguém
recorda-se de que ia acontecer uma "descentralização" no tempo
colonial. Chegou a ser criado o cargo de governador do Barlavento, (que seria
um tal Dr. Graça, salvo erro) e o chefe de gabinete seria o Chico
Dias, mas não chegou a ser ocupado por ter havido o 25 de Abril. Penso que se
tivesse sido efectivada esta "descentralização" colonial, a
herança administrativa seria outra, pois o Barlavento ter-se-ia habituado ao
seu governo local e no Cabo Verde independente teriam de aceitar isso.”
Alguns dirão que são apenas episódios da história colonial, a
meter para debaixo do tapete como lixo de má memória, outros alegarão que os
colonialistas apenas quereriam dividir para reinar, mas a verdade é que os
factos são de real pertinência para uma melhor compreensão da situação do
debate em curso sobre a problemática da Regionalização. Este email caiu assim
muito a propósito no meio do debate, veiculando uma informação que vem
demonstrar que os fundamentos invocados pelos defensores da Regionalização
afinal não são de hoje. Vem lembrar-nos de que estava na agenda da
administração colonial aquilo que alguns verberam com estranha acidez, o que demonstra
que muitas vezes o progressismo nada tem a ver com rótulos ideológicos ou
sistemas de dominação política. Significa que o colonialismo na sua fase final
tentou “dar o corpo de si” reconhecendo o carácter regional de Cabo Verde? Se
foi manobra de última hora ou expediente político puro, não se sabe! Hoje,
olhando para trás no tempo só podemo-nos questionar sobre quantos anos teremos
perdido ou ainda estaremos a perder, fruto da cegueira e da passividade dos
actuais políticos, relativamente a uma reforma que já na época teria sido
crucial e de um grande alcance em todo o arquipélago. Mas uma coisa é certa, as
autoridades portuguesas entregaram sem delongas os cabo-verdianos às novas
autoridades do PAIGC, erigido em partido único, sem se ter acautelado as
condições de uma transição democrática em Cabo Verde e nem os interesses das
suas populações, incluindo os das débeis forças políticas no terreno. Ambos os
actores tinham muita pressa nos seus calendários políticos: as autoridades
portuguesas ao tentar o tudo por tudo para desfazerem-se do seu império, que já
era a fonte de todos os problemas de Portugal e um empecilho à sua plena
reintegração urgente no mundo ocidental, ou melhor na CEE, e os combatentes do
Paigc impacientes para alcançarem o poder e enterrarem o machado da luta
armada. Nestas coisas costuma-se dizer que a pressa é
inimiga da perfeição e amiga do azar. Pois efectivamente, se tivesse havido
tempo ‘de ter sido efectivada a
"descentralização" colonial, a herança administrativa seria outra,
pois o Barlavento ter-se-ia habituado ao seu governo local e no Cabo Verde
independente teriam de aceitar isso.” Mas isto são outras histórias,
que remetemos para os historiadores, que neste momento apenas nos levariam a
especulações e divagações. No entanto, tudo
isto vem lembrar-nos de que a situação perniciosa do centralismo, que
chegou ao paroxismo hoje em plena democracia, é uma herança colonial.
Os governos sucessivos após a independência sofisticaram o
centralismo e, com o advento da democracia dos números, foi consagrado esse
epifenómeno sobre todo o espaço cabo-verdiano, através da legitimação
eleitoral. S. Vicente terá sido vítima da história e do seu próprio sucesso
como foco de contestação do sistema colonial e que em 1974 abraçou quase
unanimemente o PAIGC e a causa da independência. Nunca se fez o balanço da
acção do centralismo em cerca de 40 anos de independência, vitimando de modo
particular S. Vicente, uma ilha onde pairam os efeitos de um autêntico tsunami
político, após o sismo político provocado pela brusco colapso do sistema
colonial português. A sangria nunca parou e nunca mais S. Vicente se levantou.
Vagas incessantes e sucessivas de emigrantes deixaram a ilha depauperada dos
seus recursos humanos, desde os mais jovens aos mais experientes. Uma primeira
vaga de cabo-verdianos terá debandado devido aos rumores de que o PAIGC seria
um partido comunista ou apenas por quererem manter-se português, e incluía
“colonos assimilados”, os ditos “contra-revolucionários” ou “catchor de dôs
pé”, a pequena burguesia local, apelidada de colonial, constituída basicamente
de pequenos funcionários e quadros administrativos. Uma segunda vaga levou
carradas de pessoas pertencentes à elite local amedrontadas com o crescendo de
um processo revolucionário ameaçador das liberdades, seguida da transferência
de funcionários para a ilha-capital para preencher as funções do estado
deixadas vacantes pela fuga da administração colonial, que paradoxalmente era
constituída por quadros cabo-verdianos. A terceira vaga deu o estoiro final,
carregou para a emigração grande parte das forças vivas que restava na ilha,
desde pequenos funcionários, trabalhadores artesãos à procura de melhores dias,
muitos por não acreditarem no novo regime que se declarava revolucionário e
unipartidário. Uma vaga menos importante correspondeu a dos jovens que saíram
para iniciar ou prosseguir os seus estudos universitários, e que nunca mais
regressariam à sua ilha natal, incluiu estudantes ‘forçados’ ou ‘castigados’
pelo poder, muitos deles jovens elementos recém-integrados no PAIGC, mas já
manifestando-se rivais da velha guarda, por isso susceptíveis de constituir
perigo para o grupo de Conacri (ou melhor, os elementos não associados aos
grupos de Lisboa), o que nos anos 80 levaria a uma depuração política no seio
do PAIGC. Com as devidas proporções, poucos locais no mundo terão sofrido tanta
‘sangria’ humana em tão pouco tempo como S. Vicente. Temos assim aqui resumido
a génese da queda de S. Vicente e a emergência de um fenómeno atípico e com
forte carga ideológica, o centralismo.
1ª Parte: A
Génese da ideologia do Centralismo - b
Podemos concluir que o PAIGC adaptou-se
admiravelmente às condições centralistas criadas pela natureza intrínseca do
sistema colonial implantado, aperfeiçoou-o e gerou um novo sistema centralizado
político baseado no controlo político das populações, que mais tarde com o advento
da democracia formal se transformaria em centralização total. Todavia, é
preciso lembrar que embora a capital colonial se situasse na Praia, S. Vicente
tinha a sua vida própria, constituída de alternativas e pulsões criadas pelo
próprio sistema, de modo que Cabo Verde tinha dois polos importantes na
articulação da sua estrutura administrativa. Nada disso foi levado em conta e a transição da ilha de um sistema
colonial para um sistema pós-colonial já estava inoculada com o vírus de doença
maligna. O PAIGC, afirmando que S. Vicente era o rosto da herança colonial,
condenou a ilha a uma penitência de mais de 20 anos, parecendo não desejar
tirar partido das suas potencialidades naturais e das estruturas nela deixadas,
cuspindo assim no prato que o tinha alimentado, com a adesão quase unânime à
causa deste partido em 1974. Ao invés, decidiu fazer tudo de novo, num
propósito assumido de arrancar do zero, certamente para apagar quaisquer
vestígios indesejáveis do passado. E foi assim que se houve investimentos,
alguns até vultuosos, eles revelaram-se improdutivos, quer pelo desaparecimento
da antiga elite social e empresarial, quer por não estarem bem configurados com
a nova realidade social ou por não estarem integrados em sectores com potencial
minimamente assegurado.
Com efeito, contrariamente ao que muitos detractores hoje afirmam, o estado actual
de S. Vicente não se deve à falência dos modelos de desenvolvimento por
incompetência ou inépcia da sociedade local, mas ao facto de a ilha ter perdido
a força anímica que advinha da massa crítica social, que se exilou por causa da
nova conjuntura política. Além disso, a dinâmica política independentista
instaurada no país fez questão de arredar de S. Vicente todo e qualquer
simbolismo representativo que poderia galvanizar a ilha para uma participação
partilhada na discussão do novo rumo nacional. A instalação na ilha de alguns
órgãos ou instituições de soberania teria bastado como sinal de confiança para
que se operasse paulatinamente a renovação natural da massa crítica perdida.
Mas, como nada disso aconteceu, faltando as condições de
fixação para os poucos quadros que ficaram e os que se foram formando, estes, à
falta de outra alternativa, tiveram de rumar à capital, onde se concentrava a
máquina do Estado. Doravante seria um êxodo não justificado por causas
políticas mas por uma simples
questão de sobrevivência.
O evento da democracia e da instauração
do regime pluripartidário resultaram de um novo tsunami político, que constituiu a contestação ao
sistema todo-poderoso de partido único e à hegemonia total do PAICV em Cabo
Verde, após o sismo político provocado pela brusco colapso do sistema comunista
soviético. Aqui também não houve tempo para uma transição democrática que
acautelasse os interesses de uma democratização do sistema cabo-verdiano. É
assim que a oposição exilada no estrangeiro, nomeadamente a UCID e outros
grupos, ficou de fora do processo, quando foram esses os primeiros a lutar pela
instauração da democracia em Cabo Verde. A estrutura do poder permanecia na
mesma elite que fundou o sistema de partido único e hostil a todos intrusos,
nomeadamente estrangeirados, termo xenófobo inventado nos anos 80, carregado de
hostilidade em relação aos emigrantes e à diáspora, vistas como ameaças
potenciais. Onésimo Silveira, um estrangeirado rejeitado pelas elites locais,
apesar de ter conseguido encontrar a sua via, entrou num colete-de-forças que
se fechava em seu torno pelas pressões do PAICV e do MPD, ao mesmo tempo que
viu acossada a sua política autárquica na Câmara de S. Vicente pelas políticas
centralistas, ou asfixiantes, do governo do MPD. Onésimo Silveira terá cometido
inúmeros erros políticos derivados dessa situação política algo esquizofrénica
criada pelo próprio processo de abertura. Com a perda do poder pelo MPD, entrou
em força um governo de tendência fundamentalista com o ADN santacatarinense,
reivindicando um retorno ao irredentismo e ao africanismo, tentando valorizar
em exclusivo tudo o que tem origem na ilha de Santiago, costumes, língua,
folclore, etc. Ingenuamente, o Onésimo Silveira terá servido como embaixador
daquilo que ele hoje paradoxalmente denuncia e condena sem dó nem piedade - as
políticas hegemónicas do regime. Este foi um erro estratégico que ainda paga
caro, e que muitos acreditam ter sido uma armadilha montada para o desacreditar
ou esvaziar o seu capital político. De qualquer maneira, são elementos próximos
do regime que hoje usam este facto como arma de arremesso para atacar
ferozmente a credibilidade de Onésimo, agora que tomou a dianteira do debate e
aparecendo cada vez mais como interlocutor conveniente do regime. Onésimo é sem
dúvida a pessoa que mais tem desmontado as políticas hegemónicas deste governo
no plano cultural e da língua, um regime que introduziu um discurso messiânico,
cantando que ‘Uma vez era Cabo Verde:
Santiago e Cidade Velha’, o que soa mal nos ouvidos de muitos
cabo-verdianos, nomeadamente do Onésimo.
Com efeito, toda a política do país está hoje centrada na
ilha-capital e dirigida para ela, absorvendo os recursos humanos e financeiros
com chocante exclusividade, de modo que tudo o que é de moderno e bom tem ali
lugar privilegiado, com o objectivo único de servir a ilha e o empoderamento
dos seus habitantes e da sua cultura, tida como o centro único e unificado de
Cabo Verde. S. Vicente, o pólo natural da região Norte e sempre rival da
capital, está relegado para segundo plano, votado a uma total irrelevância política,
enquanto os mindelenses emigrados na Praia regem a partitura dos seus
interesses pessoais, adoptando uma postura cada vez mais indigna ou
subserviente, induzindo a abulia cívico-política da população da sua ilha.
Portanto, colaboram com o apagamento do chão onde nasceram quando não
incentivam inconscientemente atitudes contrárias ao seu próprio interesse, na
medida em que muitos deles verberam quem ousa dizer que o rei vai nu, num claro
apoio ao centralismo político e à marginalização da sua ilha. Este é o panorama
actual do confronto entre os novos progressistas (incluindo regionalistas e
reformistas), que reclamam reformas e um novo paradigma para Cabo Verde, e os
‘actuais reaccionários’ às reformas, incluindo centralistas, as elites
fidelizadas que giram em torno dos círculos de poder, todos pactuadas com os
fundamentalistas que detêm o poder actualmente. Os reformistas, ao proporem uma
visão diferente para Cabo Verde, não coincidente com a dos fundamentalistas e
conservadores reaccionários, tornam-se alvos da sua ira, sofrendo
contra-ataques ferozes só porque defensores da ideia da regionalização, e não
poucas vezes com catalinárias furibundas a atingir o carácter das pessoas com a insinuação de que o que pretendem é
dividir Cabo Verde e arranjar trampolim para atingir o poder. Comportam-se como
autênticos fátuas electrónicos, sem outra atitude que não a da intolerância
irracional e demolidora, sem outra mensagem que não a da manutenção de um
status-quo que apenas favorece quem o promoveu e dele tira proveito, lembrando
os velhos tempos do fanatismo ideológico. Estamos pois perante um confronto
ideológico sobre os caminhos futuros a seguir para Cabo Verde, entre o modelo
centralista, dirigista, autoritário, quase pessoalizado, com contornos perigosamente
étnicos, e um modelo regionalista, descentralizado, democrático, aberto e
respeitador dos valores globais e seculares da cabo-verdianidade como uma visão
para o futuro. (Continua: 2ª Parte:
O Debate da Regionalização.)
José F. Lopes
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