segunda-feira, 4 de março de 2013

  Do diálogo e da ética



Vou aproveitar aspectos, que me interessam agora, desse diá­logo entre Umberto Eco e Carlo Martini para algumas reflexões extensíveis às pretensões e sen­timentos dos que se enfileiraram na marcha do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde, isto é, tentarei puxar a brasa para a nossa sardinha coleciva.
Afirma ainda o cardeal Marti­ni sobre o dever de proximidade e de solidariedade, sem recorrer a um Deus Pai e criador de todas as coisas, que o outro está em nós, de resto, dentro de uma máxima também cristã de fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem a nós, ou a mesma frase na negativa.
O conceito do outro em nós é considerado como o fundamento essencial de toda a ideia de soli­dariedade.
Como sabemos, é o outro, é o seu olhar que nos define e nos molda. Nós próprios não somos capazes de compreender quem somos sem o olhar e o respeito do outro, isto na opinião de Umberto Eco. Esta, uma das razões por que ficamos irritados quando falamos ou nos dirigimos a alguém e não obtemos resposta, isto é, quando, como costumo dizer, ês ca ta cdi, não acusam a recepção da nossa pergunta, proposta, mensagem ou crítica (ês referindo-se, claro, aos do poder).
Assim sendo, porque há, ou houve culturas que aprovam ou aprovaram massacres, genocí­dios, canibalismo e a humilhação de outros?
Era aí que queria chegar na abordagem do diálogo, da tolerân­cia, das propensões alternativas e da ética destas duas personalida­des ímpares da nossa época.
A razão do não respeito dos outros, da falta de solidariedade e de tolerância é consequência de o outro se limitar a respeitar unicamente a comunidade tribal, étnica ou religiosa, considerando os restantes, “bárbaros”, seres não humanos, à semelhança dos romanos da Antiguidade e os Cruzados na Idade Média, que não consideravam quem não fos­se romano, humano, nem quem não era cristão. Os bárbaros eram escravizados, e os infiéis – crian­ças, mulheres, velhos e adultos - chacinados pelos cruzados sem dó nem piedade, sem nem terem em conta que o Deus dos cristãos e muçulmanos é o mesmo. Até os gregos da Antiguidade, tão sensíveis, racionais e inventores da democracia, escravizavam, sem estados de alma, os outros povos não gregos.
Embora haja noções comuns a todas as culturas - como a do alto e do baixo, de uma esquerda e de uma direita, de um seco e um molhado, do perceber, recordar, gozar, sofrer, etc. -, que são a base para uma ética, segundo Eco, e que levam a que se respeitem os direitos de moralidade dos outros, outras noções são con­jecturas, comportamentos huma­nos, um tanto problemáticas que variam segundo as épocas.
Não me vou meter na questão da fé e da transcendência discu­tida por esses dois bodonas da intelligenzia mundial na expli­
cação de alguns factos porque, nos nossos dias, as pessoas estão mais empenhadas nos problemas da convivência (quando não de fofoquices) do que nos da trans­cendência, além de poderem le­var-nos para discussões que não nos interessam neste momento.
Quando observamos o que se passa na maioria dos países africanos – limito-me a estes por aí ter trabalhado largos anos e observado de perto o fenómeno – damo-nos conta de que os gover­nantes - presidentes da república, primeiros-ministros e ministros - escolhem os seus colaboradores entre gente da sua família, tribo e etnia, numa manifestação clara de tribalização da política. Os outros que não pertencem a esse extracto familiar e populacional são praticamente considerados “bárbaros”, o que tem impedi­do a criação do sentimento de pertença a uma nação nesses países, por falta de cimento de solidariedade, de proximidade e de identificação do outro como igual permitindo-lhes falar no plural, em nós, incluindo o outro. O poder central, nessa circuns­tância, prioriza o centralismo à volta da tribo e da etnia.
Com os islamitas radicais acontece o mesmo relativamente aos povos não muçulmanos: para ganharem as delícias do Paraíso pensam de modo idêntico aos cristãos do tempo das Cruzadas – liquidar os infiéis, mesmo vi­vendo em liberdade, respeitados e com muito melhor qualidade de vida no país dos outros do que nos seus próprios países de origem. Para os radicais islâmicos não há lugar à liberdade como entendida no Ocidente, nem de tolerância como princípio da possibilidade de convivência com aquilo que não se partilha, e muito menos de amor ao próximo, se esse não for muçulmano, considerado infiel e inimigo a abater.

Temos aí exemplos de funda­mentalismos religiosos e políti­cos, exemplos do que é, inegavel­mente, sumamente perverso.
Entre nós, nos últimos anos, vem-se manifestando uma mo­dalidade sui generis de funda­mentalismo político-cultural que só aceita ser genuinamente cabo-verdiano os hábitos, cos­tumes e manifestações culturais dos habitantes de Santiago, considerando todas as realidades e manifestações das restantes ilhas não autenticamente cabo-verdianas, contaminadas por influências espúrias bem longe das de matriz africana, tomada como referência, desde a música, a língua, passando por certos hábitos e costumes, como se nós-outros pertencessemos a etnias e tribos diferentes, quan­do, em verdade, a nossa maior e melhor particularidade, riqueza e vantagem é sermos produto de grande miscigenação que se caldeou com uma maioria de elementos africanos com uma minoria de europeus, criando uma cultura híbrida e simbiótica de predominância europeia por condicionalismos coloniais; tal facto fez esquecer e desaparecer o tribalismo, fundindo as popu­lações num único molde, numa nação que veio a preceder e fa­cilitar a constituição do Estado na pós-independência
Repito: todo o fundamen­talismo que leve à tribalização política é mau, porque fruto da ignorância e do obscurantismo prevalecentes em épocas re­motas da Humanidade, ou da inadaptação religiosa à evolução natural das sociedades e do pro­gresso, o que não deixa de ser paradoxal e de difícil explicação em Cabo Verde por alguns cori­feus do nosso fundamentalismo serem laicos e cultos, cultura bebida no Ocidente. Bem sei que os dirigentes Khmers Vermelhos,
esses facínoras inqualificáveis, frequentaram, na juventude, universidades francesas, o que não impediu que tivessem come­tido genocídios do seu povo, que ainda ninguém conseguiu expli­car cabalmente, mas paradoxos desses são, como presumo, irre­petíveis nos tempos que correm, embora algo semelhante tenha ocorrido, não há muito tempo, na ex-Jugoslávia.
Quando destruímos a soli­dariedade entre os cidadãos de uma nação, quando deixamos de ter objectivos comuns, deixamos igualmente de ter uma comuni­dade no verdadeiro sentido do termo. Essa nossa cepa intelec­tual e política com laivos funda­mentalistas precisa é de ter juízo e de reconhecer que se extraviou perigosamente do caminho da quase totalidade da nação. Ao ofício de pensar – para a minoria que se dá ao trabalho de pensar - não cabe o acto de construir a verdade, mas sim o de criar um espírito de verdade. Será com esse espírito de verdade, de solidariedade, de diálogo e das propensões alternativas com profundas convicções éticas, que poderemos discutir, debater os problemas do país visando a sua solução, sem rejeitar o contribu­to do outro e sem que ninguém tente erguer-se acima dos outros. É deste modo que gostaríamos de debater a regionalização do país e outros assuntos pertinentes de interesse geral que criam bolor em gavetas ministeriais.
Termino, ad cautelum, for­mulando uma pergunta: haverá lugar para a ética na política, como queria Hegel, ou simples­mente astúcia, como ensinava Maquiavel? Cabe aos políticos responder, não com palavras, de que já estamos saturados, pela sua vacuidade, mas com decisões que permitam alternativas e con­jugação de esforços.
                                         Arsenio de pina

1 comentário:

  1. É dos livros que os politicos falam como Hegel mas agem como Maquiavel...Gostei de reler Arsenio pois admiro o seu espírito lúcido...Continuo a pensar que metade do povo crioulo está sendo vítima da colonização politico-cultural mais vil porque antropófaga!

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