Importante contributo para a reflexão sobre a substância e as inclinações, naturais ou impostas, da nossa jovem democracia, os textos de Onésimo Silveira merecem ser comentados com seriedade intelectual e sentido de responsabilidade cívica. São preciosos demais para não se curar de uma atitude elevada na abordagem crítica que se nos impõe como cidadãos empenhados em querer dialogar sobre o melhor para a nossa terra. Não vale estar a enfocar sistematicamente o percurso político pessoal do autor para, à partida e arbitrariamente, pretender, com isso, duvidar dos seus intentos ou menosprezar o valor e o impacte do seu discurso. Nenhum político de carreira está isento de erros de cálculo ou oscilações de critério na congeminação da sua trajectória pessoal ou de grupo. A História é que o diz.
O Onésimo Silveira afirma, e bem, que "a força da democracia cabo-verdiana é tributária mais da sua ancestralidade do que da sua modernidade. Aquela lhe confere uma praxis cultural, enquanto esta lhe dá uma ossatura constitucional e institucional."
Verdade pura e indesmentível. E esta verdade vejo-a plasmada em dois exemplos que a seguir menciono e em que se há algo que os diferencia é a dimensão material e social da sua implicação, não a natureza da sua "ancestralidade", ou seja, a ética e a essência da sua humanidade.
No mês passado, ao transitar pela antiga Rua do Telégrafo, presenciei uma cena digna de recorte. Uma pessoa de aparência muito, mas muito, modesta meteu a mão ao bolso e deu uma esmola a uma velhinha pedinte, sentada no passeio. Pareceu-me que muito pouco separaria as duas criaturas em matéria de recursos. Essa pessoa deu certamente o que lhe fazia falta.
Outro exemplo: Nos princípios do século passado, o Senador Vera Cruz abdicou do conforto da sua residência (antigo Grémio) para nela se instalar provisoriamente o antigo liceu de S. Vicente, na altura ameaçado de extinção pelo governo de Lisboa. Foi morar para uma residência bem mais modesta, com todo o transtorno que isso acarretaria para a sua família.
Ora, os exemplos mencionados extremam-se na amplificação social da sua importância mas não no seu simbolismo. São um espelho dessa nossa "ancestralidade" a que se refere o Silveira, e exemplos não faltariam para a ilustrar no seu "estado de natureza", usando a expressão epistemológica de John Locke. Essa "ancestralidade" é anterior a qualquer moldura institucional que se possa dar à nossa democracia, por mais que a burilemos em termos jurídico-formais sob os auspícios da "modernidade". Por certo que essa "ancestralidade" sobreviverá a todo o figurino constitucional que a nossa democracia possa vir a revestir nos tempos mais próximos ou no futuro mais distante.
Silveira diz, e com razão, como corolário do seu discurso: "O medo está de volta em São Vicente: medo como antigamente, medo de perder o emprego, medo de não conseguir um emprego, medo do Estado todo poderoso. Medo que conduz ao silêncio..."
Mas não quero crer que esse medo seja culpa a imputar exclusivamente à actual força política em exercício de poder. É provável que outro fosse o partido do governo, o inventário de sintomas e queixas em tudo se equipararia, talvez diferenciando-se apenas na localização geográfica ou sociológica dos seus emissários. Sim, porque o problema é mais de regime, tem a ver com a concepção que foi dada ao Estado. O regime concentrou todo o Estado, mas todo o Estado cabo-verdiano, numa única ilha e nela foi, ao longo dos anos, entretecendo a malha dos vícios e disfunções orgânicas e psicológicas que hoje denunciamos e acreditamos só serem passíveis de correcção mediante uma judiciosa reforma político-administrativa, a qual passa necessariamente pela regionalização do país.
Um dos aspectos cruciais daquelas disfunções é a tendência fundamentalista que Silveira vem denunciando e que impertinentemente parece querer interferir com a essência da nossa cultura como povo, precisamente onde radica o somatório complexo dos seus traços identitários, fonte da única legitimidade natural que podemos imprimir à nossa democracia e aos nossos sentimentos e sonhos colectivos. A extensão geográfica e o circunstancialismo demográfico local não podem, por si só, determinar o sentido unívoco de uma política cultural, esquecendo ela toda uma fragmentação arquipelágica que consagra singularidades próprias, algumas delas até contendo as formas de expressividade mais maioritariamente cultivadas e divulgadas (a crioulidade). E mais ainda não se pode esquecer que a crioulidade lançou âncoras pelo mundo fora, mantendo as suas raízes mas enriquecendo-se, sem se desvirtuar, no convívio com outros valores e outras culturas. Isto é prova de que a crioulidade não pode ser ponto de chegada com refúgio definitivo num círculo fechado e concebido à estreita medida do pensamento desta ou daquela figura que temporariamente exerce o poder tutelar na área da cultura. Pelo contrário, a crioulidade é, pela sua mais profunda natureza criativa, ponto de partida e braço aberto para metamorfoses e aglutinações que é arriscado calcular onde e como acabam. É a dinâmica imparável das miscigenações culturais, processo em que o nosso povo tem cartas a dar e demonstra uma invejável vitalidade. Por conseguinte, conceber a cultura cabo-verdiana cristalizada densamente na ancestralidade africana é um erro crasso em que só pode incorrer uma visão esquizofrénica da realidade ou o compromisso espúrio com a intromissão do Estado em áreas onde só podem medrar as tendências e os impulsos naturais das sociedades. O Estado não pode moldar comportamentos culturais ou desviar artificialmente (ou artificiosamente) o seu curso natural. O Estado deve, isso sim, atribuir os meios possíveis, criar incentivos e estimular a criatividade natural dos povos, velando pela salvaguarda de todos os patrimónios que consubstanciam a memória, a identidade e a cultura, em vez de tomar partido de forma mais ou menos coerciva ou encapotada.
É por isso que Silveira afirma, e de novo com acerto: "Na sua globalidade, a intervenção pública, desde a independência à actualidade, nunca se mostrou capaz de encontrar uma solução para a situação de desenvolvimento da nossa cultura. Muito pelo contrário, tem tido frequentemente um papel fulcral e funcional para a manutenção do seu status quo. Tudo indica, pois, que o Estado é incapaz de funcionar para inverter a lógica do subdesenvolvimento cultural. As casas de cultura e um ministro fundamentalista com a viola às costas é folclore, que nada tem a ver com o desenvolvimento cultural, que não se compagina com a mediocridade e a falta de visão."
De facto, ou o Estado quer mexer no ADN da cultura ou o ministro da tutela se movimenta como elefante em loja de porcelana.
Tomar, 7 de Agosto de 2012
Adriano Miranda Lima
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