domingo, 26 de fevereiro de 2012


S. VICENTE: UM CASE STUDY PARA UM POSSÍVEL MODELO DE REGIONALIZAÇÃO E AUTONOMIA EM CABO VERDE 

2ª Parte



A Regionalização ou um Novo Modelo de Ordenamento do Território Nacional

Secção A



   Esta segunda parte está organizada em três secções denominadas A, B e C que serão publicadas sucessivamente. A secção A, publicada hoje, apresenta a problemática da Regionalização dentro do contexto socio-político de Cabo Verde. A secção B passa em revista os diferentes modelos de Regionalização implementados em vários países. A secção C apresenta a Regionalização como um modelo de ordenamento do território, podendo representar uma nova oportunidade para Cabo Verde num mundo em transformações.

    No artigo intitulado “Jorge Carlos Fonseca - Entre uma mudança na continuidade e uma 3ª via para CV (Parte I, II)” (1, 2), os autores pretenderam demonstrar que Cabo Verde se encontra numa encruzilhada em termos políticos e económicos, confrontado simultaneamente com a necessidade de resolução de dois problemas decisivos: o da sustentabilidade do sistema económico e financeiro e o da sustentabilidade do sistema sócio-político. O actual sistema político carece de reformas de modo a aproximar os políticos dos cidadãos e a ter em conta as realidades regionais e locais. A situação política nacional está dominada por duas forças irredutíveis que baseiam a sua legitimidade no papel messiânico de que se julgam investidas, gerando uma dicotomia irredutível: a herança da luta de libertação nacional, a independência nacional do país, do lado do PAICV; a herança da luta contra o regime de partido único, a instauração da democracia e do estado de direito democrático, do lado do MPD. Esta situação é insustentável, pois cria uma polarização artificial em torno de posições irreconciliáveis, desfoca a atenção aos verdadeiros problemas do país e bloqueia a sua resolução, que exige alargados consensos em matérias críticas atinentes à construção do futuro.

    Um dos problemas mais graves que defronta a sociedade cabo-verdiana é o do centralismo político, tanto mais insuportável por se por se tratar de um país-arquipélago. A ilha de S. Vicente tem sido uma vítima directa das sucessivas políticas de centralização, que vêm sendo discreta e paulatinamente reforçadas nos últimos 10 anos, ao invés de permitirem um olhar reflexivo sobre a realidade objectiva. A sociedade cabo-verdiana está confrontada com os interesses poderosos de lobbies centralizadores, a que incorrectamente se associa a um lobby pró-Santiago. Todavia, não se pode ir por esta deriva primária e simplista na visão da realidade social, pois encontramos adeptos desta filosofia  centralista em muitos mindelenses ou oriundos da região Norte. Paradoxalmente, a ilha de Santiago, melhor dizendo, a capital, é ela própria vítima do centralismo, do gigantismo desmesurado que atingiu, estando afogada num mar de problemas sociais, urbanísticos e ambientais, criados precisamente pela própria política que é nosso propósito denunciar.

    Portanto, enganam-se as pessoas que identificam o problema da Regionalização com um problema de natureza étnico-ilhéu. É, sim, um problema de elites dominantes, que medraram à sombra de uma concepção política baseada no dirigismo rígido e centralizado, em tudo idêntico ao funcionamento de uma colmeia, onde tudo se congrega e se desenvolve como realidade fechada e exclusiva. As elites preservam o seu status-quo alcançado dentro da colmeia e rejeitam soluções que alterem a estabilidade do conforto e das vantagens que advêm da promíscua proximidade de todos os órgãos do poder. Só que isto é uma visão conservadora, para não dizer retrógrada, da organização política do Estado. A História demonstra quão errados são estes modelos e identifica-os com os Estados autoritários ou ditatoriais, que nenhuma felicidade trouxeram às suas populações. Hoje é iniludível que Cabo Verde pode vir a ser um exemplo trágico dessa política, pois a pobreza está à vista e nenhum artifício de estatística pode ocultar o risco de um sério agravamento da situação num futuro mais perto do que podemos imaginar. As assimetrias no país no-lo demonstram com cruel evidência. Numa ilha em que um terço da população está sem emprego, cresce a inquietação entre os sanvicentinos, mas sem que, até ao momento, tenha aparecido um movimento canalizador do descontentamento geral, em prol de uma construtiva postura cidadã, enquanto a maioria dos partidos políticos apita para o lado.

    Por isso é que, não contente com este estado de coisas, um grupo de cidadãos mindelenses anunciou a constituição do “Movimento para a Regionalização de Cabo Verde” e a publicação do ‘Manifesto para a Regionalização de Cabo Verde’ (3). A solução apontada para o problema do centralismo seria a Regionalização e a Descentralização Administrativa e Financeira do país, associadas a uma certa autonomia administrativa e económica para as ilhas do arquipélago. Elejo a ilha de S. Vicente como sendo a ilha modelo para exemplificar aquilo que queremos demonstrar, por ser uma ilha-cidade, que poderia ser a primeira experiência a ser implementada neste novo modelo de ordenamento do país que se propõe.

    Quando os políticos cabo-verdianos falam de regionalização não explicam completamente o conceito. Deve-se distinguir a Regionalização Administrativa da Regionalização-Descentralização, pois pode aqui haver nuances, omissões e equívocos. A Regionalização Administrativa pode ser entendida como uma repartição de um território nacional num conjunto de regiões, cada uma dotada de características afins, geográficas, culturais, etc. Mas a Regionalização Administrativa sem descentralização propriamente dita não resolve os problemas criados pelo centralismo, até porque pode ocorrer um cenário em que se implementa uma regionalização formal mas esvaziada de conteúdo, que é o mesmo que criar um certo número de regiões avulsas no país e em simultâneo manter o centralismo político. Bastava para isso decretar as regiões administrativas e não acompanhar este processo de nenhuma outra reforma, para se aperceber de que o centralismo manter-se-ia intacto.

    Portanto, por si só uma regionalização artificial, puramente administrativa, não resolve os problemas do centralismo em Cabo Verde. O que deve estar no centro do debate político sobre a Regionalização é a questão da Descentralização, que ela sim corresponde a uma maior democratização participativa no país. Ela corresponde à transferência de poderes e competências do Poder Central para as ilhas, através da definição do estatuto de autonomia administrativa e económica. Não significa o enfraquecimento do Poder Central, visto que a maioria das democracias ocidentais avançadas é caracterizada por importantes níveis de descentralização de poderes, ao mesmo tempo que dotada de poderes centrais fortes em áreas críticas da soberania nacional.

    Repudiamos a ideia tão aventureira como utópica de emancipação ou separatismo preconizada para S. Vicente, ou de um projecto escondido de recuperação egoísta de recursos para essa ilha, quando é o próprio país no seu todo que ainda está a tentar afirmar-se como economicamente viável. Infelizmente, existem ainda em Cabo Verde muitas pessoas intolerantes ou amarradas a raciocínios simplistas, que não admitem que os cidadãos pensem pelas suas próprias cabeças. Acham que lhes é restrito o direito a opinar sobre questões da vida nacional, prerrogativa que não admitem ser estendida a outros, sobretudo se residem no estrangeiro. Que outro sintoma poderia haver mais claro da infantilidade da nossa democracia? De facto, denegrir os propósitos do Movimento e colar aos seus membros um conjunto de atributos negativos não é a melhor via para se discutir a Regionalização. No entanto, esta atitude não é de estranhar tendo em conta o clima de radicalismo, intolerância e suspeição quase generalizada que se vive em Cabo Verde.

    O que propomos, portanto, é tão só a democratização do sistema político através da Regionalização, entendida como Descentralização efectiva de poderes e competências, dentro do quadro do Estado cabo-verdiano. Reconhecemos que ao lançar um movimento para a Regionalização apanhámos muita gente de surpresa (o que não agrada às elites omniscientes), e inserimos uma brecha no consenso, ou naquilo que parece um eventual pacto de conveniência sobre o centralismo, tão do agrado dos que se instalaram e cresceram à sombra do Poder.

    Todavia, independentemente daquilo que pensam os políticos, afirmamos claramente e sem rodeios que S. Vicente tem uma estrutura de ilha-cidade urbana que potencia uma solução governativa dentro do respectivo quadro regional que vamos propor, um governo com alargados poderes, para execução de políticas no âmbito territorial, económico e social, ou seja, aquilo que foi definido no Manifesto como autonomia administrativa, económica e financeira. O actual modelo misto em vigor aplicado à ilha, entre o dirigismo estatal e o laissez-faire, acaba por produzir efeitos nefastos, não serve mais, e deixa a ilha à sua sorte, ou melhor, entregue a uma autarquia sem poderes reais, o que alimenta o clima de desresponsabilização e a descredibilização do poder local na ilha. De modo similar, achamos que o modelo de autonomia administrativa que propomos para S. Vicente pode ser implementado em todas as ilhas do arquipélago cabo-verdiano, conforme a articulação regional que viremos a apresentar nas secções seguintes.

                                                                                                                         (continua)  



                                                           José Fortes Lopes





(1)  Jorge Carlos Fonseca, entre uma Mudança na Continuidade e uma 3ª Via para Cabo-Verde. 1-Caracterização de um modelo económico há muito esgotado. José F Lopes & Adriano M Lima, Notícias do Norte, Forcv. Setembro de 2011

http://www.forcv.com/opinions/4162-jorge-carlos-fonseca-entre-uma-mudanca-na-continuidade-e-uma-3o-via-para-cv-parte-i

(2)  (1) Jorge Carlos Fonseca, entre uma Mudança na Continuidade e uma 3ª Via para Cabo-Verde. 1-Pela refundação politica, social e económica: Entre a 2ª e a 3ª via para Cabo Verde. José F Lopes & Adriano M Lima, Notícias do Norte, Forcv. Setembro de 2011.

http://www.forcv.com/opinions/4182-pela-refundacao-politica-social-e-economica-entre-a-2o-e-a-3o-via-para-cabo-verde
http://movimentoparaaregionalizaoeautonomias

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