REFORMA
DO ESTADO EM CABO VERDE
DESCENTRALIZAÇÃO
VERSUS CENTRALIZAÇÃO
Torna-se cada vez mais evidente que o
actual modelo de concentração-centralização do poder em Cabo Verde não favorece
o progresso e o aperfeiçoamento da nossa democracia, nem espevita um
desenvolvimento económico mais equitativo e mais acelerado no país. Alguns, por
erro de auréola ou por razões inconfessáveis em que prepondera o interesse
pessoal ou político-partidário, poderão não querer ver o óbvio. O erro de
auréola advém em certa medida de alguns indicadores socioeconómicos que
distinguem Cabo Verde entre o conjunto dos países em desenvolvimento. É, pois,
confortável e animador que três indicadores importantes do IDH – o do
rendimento per capita, o da educação e o da saúde – sejam positivos, atestando
uma evolução favorável nas últimas 3 décadas. Contudo, como se sabe, o
desenvolvimento humano não é aferido apenas por aqueles três indicadores, os
quais, se dissociados da realidade global nua e crua, podem induzir a conclusões
precipitadas, podendo mesmo estimular um sentimento de auto-satisfação e de
acomodação no espírito de quem governa.
Tudo isto porque, embora seja notório o progresso
alcançado desde a independência, persistem carências básicas no seio das
populações, mormente nas zonas periféricas intra-ilhas (especial incidência em
Santiago) e entre-ilhas/regiões do país. Os problemas ocorrem em áreas, também
elas atinentes ao desenvolvimento humano, como a do saneamento básico, a dos
serviços de distribuição de água e electricidade, e, principalmente, a do
emprego e garantia de subsistência, nestas últimas registando-se níveis
baixíssimos em manifesta incongruência com os citados indicadores favoráveis.
Sublinhe-se que a disparidade é sensível entre as zonas rurais e os centros
urbanos, e entre algumas ilhas e outras, por diferenciados e questionáveis
critérios na atribuição de investimentos. Como isto é um dado objectivo e não
mera especulação, forçoso é concluir que o processo de desenvolvimento de Cabo
Verde não se tem gizado pelos melhores critérios de justiça, equilíbrio e
equidade na distribuição dos recursos, como auspiciariam as populações,
independentemente da ilha de naturalidade. É precisamente com esta realidade
que nos confronta o último relatório dos Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio, datado de 2009, quando assinala que “não obstante os avanços
registados a nível nacional, existem ritmos diferenciados e mesmo assimetrias
na execução dos objectivos a nível dos municípios”.
Sendo assim, e quando Cabo Verde atingiu a
graduação de País de Desenvolvimento Médio, conforme foi deliberação pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 2008, em função dos níveis referenciados
por aqueles 3 indicadores do IDN, eis-nos perante uma encruzilhada
circunstancial na caminhada para o futuro. Vamos ver porquê. Os progressos até
agora alcançados só foram uma realidade mercê da ajuda externa, bilateral e
multilateral, que não se afigura sustentável a prazo, ainda mais nos tempos
difíceis que vivemos. A generosa ajuda internacional, que não deixa de se
pautar por critérios de racionalidade e rigor aritmético na gestão dos recursos
que disponibiliza aos povos em desenvolvimento, vai certamente reduzir
gradativamente o apoio ao nosso país, no pressuposto de que agora nos compete
pescar livremente com a cana e o anzol fornecidos. Aliás, era de esperar que
assim fosse, porque um povo independente não pode ad aeternum ficar dependente da boa vontade alheia, por muito que
demonstre ter sido um bom aluno no decurso da aprendizagem para a sua
emancipação.
Perante este quadro, e uma vez demonstrado
que os 3 indicadores positivos do nosso desenvolvimento só foram possíveis
graças a investimento externo, e não mediante uma dinâmica interna de desenvolvimento,
é imperioso criar as alternativas necessárias para o nosso auto-financiamento.
Elas são de vária índole e em muitos casos susceptíveis de uma relação de reciprocidade
ou interdependência. Consiste basicamente em promover uma exploração adequada das
potencialidades oferecidas por cada uma das ilhas, empenhando as populações
locais em dinâmicas conducentes à produção e criação de emprego, o que
pressupõe, simultaneamente, estimular a iniciativa individual e injectar nas
pessoas um profícuo espírito de cidadania, fazendo-lhes crer que são peças
fundamentais do processo de evolução do país nas esferas política, social e
económica.
Infelizmente, o panorama actual é bem
diferente. Não existe uma cultura de cidadania, e a tendência é para um retrocesso
sensível na percepção e na assumpção do conjunto de deveres e direitos cívicos
que é condição basilar para gerar os impulsos sociais de que o país precisa
como de pão para a boca.
E que razões explicam todo este cenário,
que vai desde o desenvolvimento assimétrico à aparente letargia cívica em que
mergulharam as populações? A resposta não pode ser simplificada com a menção de
uma única causa. Mas como a política é a acção que congrega todas as variáveis
que se relacionam com a pólis,
difícil é não apontar como a causa principal dos nossos problemas o modelo de
organização político-administrativa vigente desde a independência. Decidiu-se
desde a primeira hora pela concentração maciça de toda a estrutura do Estado
numa só ilha e cidade, e ao mesmo tempo pela centralização do poder político,
duas condições gémeas de uma visão contrária à filosofia e aos princípios de
organização política dos estados modernos. Para esse efeito, foi mesmo
necessário eliminar, ou no mínimo, atenuar, o relativo equilíbrio que havia
entre os dois grupos de ilhas, Barlavento e Sotavento, nomeadamente entre S.
Vicente e Santiago. Esse equilíbrio baseava-se na existência histórica destes
dois pólos estruturantes da actividade económico-social do arquipélago, um em
cada grupo de ilhas. A economia do território dependia em larga medida, e desde
meados do século XIX, dos rendimentos da produção vocacionalmente agrícola da
primeira ilha e da actividade vocacionalmente industrial e comercial da
segunda, numa complementaridade nunca questionada ou jamais posta em causa pela
administração portuguesa, bem pelo contrário. Crê-se que foram critérios
meramente políticos que determinaram a desmagnetização progressiva de um dos
pólos, o de S. Vicente, com transferência da sua energia para o outro pólo. Há
quem diga que foi retaliação política contra uma ilha não de todo identificada
historicamente com a filosofia ideológica do partido da independência. Não sei se foi ou não,
mas isso pertence à História e não é agora relevante para o tema que me
proponho.
O certo é que a concentração-centralização teve
um significado político indubitável, com consequências que não tardariam a
revelar-se danosas para a ilha de S. Vicente, que entrou em franca decadência
económica, com reflexos inevitáveis na esfera social, cultural e política. É
esta a razão que explica a abulia social daquela que fora no passado a ilha de
maior vitalidade anímica no território. E como poderia ser de outra forma se a sua
massa crítica emigrou ou se transferiu em grande parte para onde estava
concentrado o Estado e fincados os pólos da futura dinâmica de desenvolvimento?
Foi uma acção centrípeta exercida pela maior ilha e que haveria de prosseguir,
sugando os recursos humanos de grande parte das ilhas. Quando hoje se diz que a
ilha de Santiago justifica dois terços do investimento estatal por ter mais de
50% da população do país, esquece-se que o crescimento da sua população
acelerou exponencialmente a partir da independência não apenas pelo fenómeno da
natalidade mas principalmente pela migração de populações das outras ilhas, à
procura de emprego onde ele tinha mais possibilidades de garantia. É claríssima
a relação causa efeito. Os dados do último censo registam a seguinte progressão
da população da ilha capital: ano de 2000 – 236.627; ano de 2005 – 266.161
habitantes; ano de 2010 – 300. 262 habitantes, sendo que o maior acréscimo
populacional ocorreu principalmente na capital e periferia. Não disponho de
dados referentes ao ano de 1975, mas é de presumir que a migração tenha sido
ainda mais significativa logo a partir desse ano. Por conseguinte, o fenómeno
foi criado artificialmente pelo poder político, ao invés de representar uma
evolução determinada por impulsos naturais.
Eis como a concentração da estrutura do
Estado conjugada com a centralização do poder dirigente originaram uma
perniciosa macrocefalia na ilha capital. Eis, assim, o rosto de um modelo de
centralização talvez sem precedentes na história do território. Tem-se apontado
o jurista e constitucionalista Wladimir Brito como discordando de um processo
de regionalização em Cabo Verde, o que é verdade, e assumida pelo próprio. Mas
convém notar que na sua exposição no colóquio realizado na Praia, em 2008,
sobre a temática da descentralização – regionalização, o jurista afirmou assim
no contexto da sua argumentação: “… diga-se e sublinhe-se, que, historicamente,
a complementaridade inter-ilhas assume uma natureza dominantemente económica e
realiza-se entre duas grandes regiões geo-histórica, económico-sociologicamente
naturais, a de Sotavento e a do Barlavento…”. Portanto, subliminarmente, está aqui
a anotação de uma verdade que a História regista mas da qual o poder fez tábua
rasa, agindo à revelia dos princípios da ciência política e da administração
pública, para não dizer do bom senso político, quando assumiu as rédeas do país.
Concordo com Arsénio de Pina quando
escreve, num dos seus artigos, que “…no centralismo democrático do início da
independência, explicável e até justificável no contexto da época, que fez o
seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de cima…”.
Sim, demorou e eternizou-se, com prejuízo nítido para o país, e mesmo para a
capital, que se engasga com o seu próprio excesso. Note-se que o crescimento
desmesurado da capital cabo-verdiana tende a prosseguir inexoravelmente o seu
curso, em detrimento do resto do país, se nada for feito em contrário, no
sentido de uma justa correcção das assimetrias criadas. O que aconteceu e pode
continuar a acontecer até é explicável pelos fenómenos físicos. As leis da
física demonstram, com efeito, que um corpo em movimento tende a continuar em
movimento (Lei da Inércia de Newton) se não houver uma força em contrário; ao
mesmo tempo que a sua massa tende a aumentar (Teoria da Relatividade de
Einstein). Ora, a motivação dos que escrevem sobre esta temática não é atentar
contra o interesse particular da ilha capital ou qualquer outra, é tão-só
contribuir com ideias para a reforma administrativa do Estado, por forma a que
o país progrida dentro dos carris de justiça e de equidade. Nenhuma ilha pode
aspirar a um estatuto de privilégio sobre outras, mas sim a um papel contributivo
na dinamização do todo nacional, num quadro de complementaridade e
solidariedade entre todas as suas parcelas.
É evidente que o processo de reforma é
complexo e delicado, obrigando a romper com práticas e rotinas perniciosas
incrustadas desde longa data no aparelho do Estado concentracionário. É preciso
reflectir, discutir e encontrar as melhores soluções dentro de um espectro de
opções para a descentralização político-administrativa, que vai desde o reforço
do municipalismo, como alguns preferem, à regionalização administrativa, que
outros advogam como única solução viabilizadora da autonomia propiciadora do
progresso. Mas é importante que o que se faça não venha a dar razão a Giuseppe
Lampedusa quando pronunciou esta célebre frase: “Se queremos que tudo continue
como está, é preciso que tudo mude”. Mas isto será conversa para uma próxima
opinião.
Tomar,
5 de Fevereiro de 2012
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