domingo, 26 de fevereiro de 2012


REFORMA DO ESTADO EM CABO VERDE

DESCENTRALIZAÇÃO VERSUS CENTRALIZAÇÃO



    Torna-se cada vez mais evidente que o actual modelo de concentração-centralização do poder em Cabo Verde não favorece o progresso e o aperfeiçoamento da nossa democracia, nem espevita um desenvolvimento económico mais equitativo e mais acelerado no país. Alguns, por erro de auréola ou por razões inconfessáveis em que prepondera o interesse pessoal ou político-partidário, poderão não querer ver o óbvio. O erro de auréola advém em certa medida de alguns indicadores socioeconómicos que distinguem Cabo Verde entre o conjunto dos países em desenvolvimento. É, pois, confortável e animador que três indicadores importantes do IDH – o do rendimento per capita, o da educação e o da saúde – sejam positivos, atestando uma evolução favorável nas últimas 3 décadas. Contudo, como se sabe, o desenvolvimento humano não é aferido apenas por aqueles três indicadores, os quais, se dissociados da realidade global nua e crua, podem induzir a conclusões precipitadas, podendo mesmo estimular um sentimento de auto-satisfação e de acomodação no espírito de quem governa.

   Tudo isto porque, embora seja notório o progresso alcançado desde a independência, persistem carências básicas no seio das populações, mormente nas zonas periféricas intra-ilhas (especial incidência em Santiago) e entre-ilhas/regiões do país. Os problemas ocorrem em áreas, também elas atinentes ao desenvolvimento humano, como a do saneamento básico, a dos serviços de distribuição de água e electricidade, e, principalmente, a do emprego e garantia de subsistência, nestas últimas registando-se níveis baixíssimos em manifesta incongruência com os citados indicadores favoráveis. Sublinhe-se que a disparidade é sensível entre as zonas rurais e os centros urbanos, e entre algumas ilhas e outras, por diferenciados e questionáveis critérios na atribuição de investimentos. Como isto é um dado objectivo e não mera especulação, forçoso é concluir que o processo de desenvolvimento de Cabo Verde não se tem gizado pelos melhores critérios de justiça, equilíbrio e equidade na distribuição dos recursos, como auspiciariam as populações, independentemente da ilha de naturalidade. É precisamente com esta realidade que nos confronta o último relatório dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, datado de 2009, quando assinala que “não obstante os avanços registados a nível nacional, existem ritmos diferenciados e mesmo assimetrias na execução dos objectivos a nível dos municípios”.

    Sendo assim, e quando Cabo Verde atingiu a graduação de País de Desenvolvimento Médio, conforme foi deliberação pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2008, em função dos níveis referenciados por aqueles 3 indicadores do IDN, eis-nos perante uma encruzilhada circunstancial na caminhada para o futuro. Vamos ver porquê. Os progressos até agora alcançados só foram uma realidade mercê da ajuda externa, bilateral e multilateral, que não se afigura sustentável a prazo, ainda mais nos tempos difíceis que vivemos. A generosa ajuda internacional, que não deixa de se pautar por critérios de racionalidade e rigor aritmético na gestão dos recursos que disponibiliza aos povos em desenvolvimento, vai certamente reduzir gradativamente o apoio ao nosso país, no pressuposto de que agora nos compete pescar livremente com a cana e o anzol fornecidos. Aliás, era de esperar que assim fosse, porque um povo independente não pode ad aeternum ficar dependente da boa vontade alheia, por muito que demonstre ter sido um bom aluno no decurso da aprendizagem para a sua emancipação.

    Perante este quadro, e uma vez demonstrado que os 3 indicadores positivos do nosso desenvolvimento só foram possíveis graças a investimento externo, e não mediante uma dinâmica interna de desenvolvimento, é imperioso criar as alternativas necessárias para o nosso auto-financiamento. Elas são de vária índole e em muitos casos susceptíveis de uma relação de reciprocidade ou interdependência. Consiste basicamente em promover uma exploração adequada das potencialidades oferecidas por cada uma das ilhas, empenhando as populações locais em dinâmicas conducentes à produção e criação de emprego, o que pressupõe, simultaneamente, estimular a iniciativa individual e injectar nas pessoas um profícuo espírito de cidadania, fazendo-lhes crer que são peças fundamentais do processo de evolução do país nas esferas política, social e económica.

    Infelizmente, o panorama actual é bem diferente. Não existe uma cultura de cidadania, e a tendência é para um retrocesso sensível na percepção e na assumpção do conjunto de deveres e direitos cívicos que é condição basilar para gerar os impulsos sociais de que o país precisa como de pão para a boca.

    E que razões explicam todo este cenário, que vai desde o desenvolvimento assimétrico à aparente letargia cívica em que mergulharam as populações? A resposta não pode ser simplificada com a menção de uma única causa. Mas como a política é a acção que congrega todas as variáveis que se relacionam com a pólis, difícil é não apontar como a causa principal dos nossos problemas o modelo de organização político-administrativa vigente desde a independência. Decidiu-se desde a primeira hora pela concentração maciça de toda a estrutura do Estado numa só ilha e cidade, e ao mesmo tempo pela centralização do poder político, duas condições gémeas de uma visão contrária à filosofia e aos princípios de organização política dos estados modernos. Para esse efeito, foi mesmo necessário eliminar, ou no mínimo, atenuar, o relativo equilíbrio que havia entre os dois grupos de ilhas, Barlavento e Sotavento, nomeadamente entre S. Vicente e Santiago. Esse equilíbrio baseava-se na existência histórica destes dois pólos estruturantes da actividade económico-social do arquipélago, um em cada grupo de ilhas. A economia do território dependia em larga medida, e desde meados do século XIX, dos rendimentos da produção vocacionalmente agrícola da primeira ilha e da actividade vocacionalmente industrial e comercial da segunda, numa complementaridade nunca questionada ou jamais posta em causa pela administração portuguesa, bem pelo contrário. Crê-se que foram critérios meramente políticos que determinaram a desmagnetização progressiva de um dos pólos, o de S. Vicente, com transferência da sua energia para o outro pólo. Há quem diga que foi retaliação política contra uma ilha não de todo identificada historicamente com a filosofia ideológica do partido da independência. Não sei se foi ou não, mas isso pertence à História e não é agora relevante para o tema que me proponho.

    O certo é que a concentração-centralização teve um significado político indubitável, com consequências que não tardariam a revelar-se danosas para a ilha de S. Vicente, que entrou em franca decadência económica, com reflexos inevitáveis na esfera social, cultural e política. É esta a razão que explica a abulia social daquela que fora no passado a ilha de maior vitalidade anímica no território. E como poderia ser de outra forma se a sua massa crítica emigrou ou se transferiu em grande parte para onde estava concentrado o Estado e fincados os pólos da futura dinâmica de desenvolvimento? Foi uma acção centrípeta exercida pela maior ilha e que haveria de prosseguir, sugando os recursos humanos de grande parte das ilhas. Quando hoje se diz que a ilha de Santiago justifica dois terços do investimento estatal por ter mais de 50% da população do país, esquece-se que o crescimento da sua população acelerou exponencialmente a partir da independência não apenas pelo fenómeno da natalidade mas principalmente pela migração de populações das outras ilhas, à procura de emprego onde ele tinha mais possibilidades de garantia. É claríssima a relação causa efeito. Os dados do último censo registam a seguinte progressão da população da ilha capital: ano de 2000 – 236.627; ano de 2005 – 266.161 habitantes; ano de 2010 – 300. 262 habitantes, sendo que o maior acréscimo populacional ocorreu principalmente na capital e periferia. Não disponho de dados referentes ao ano de 1975, mas é de presumir que a migração tenha sido ainda mais significativa logo a partir desse ano. Por conseguinte, o fenómeno foi criado artificialmente pelo poder político, ao invés de representar uma evolução determinada por impulsos naturais.

    Eis como a concentração da estrutura do Estado conjugada com a centralização do poder dirigente originaram uma perniciosa macrocefalia na ilha capital. Eis, assim, o rosto de um modelo de centralização talvez sem precedentes na história do território. Tem-se apontado o jurista e constitucionalista Wladimir Brito como discordando de um processo de regionalização em Cabo Verde, o que é verdade, e assumida pelo próprio. Mas convém notar que na sua exposição no colóquio realizado na Praia, em 2008, sobre a temática da descentralização – regionalização, o jurista afirmou assim no contexto da sua argumentação: “… diga-se e sublinhe-se, que, historicamente, a complementaridade inter-ilhas assume uma natureza dominantemente económica e realiza-se entre duas grandes regiões geo-histórica, económico-sociologicamente naturais, a de Sotavento e a do Barlavento…”. Portanto, subliminarmente, está aqui a anotação de uma verdade que a História regista mas da qual o poder fez tábua rasa, agindo à revelia dos princípios da ciência política e da administração pública, para não dizer do bom senso político, quando assumiu as rédeas do país.

    Concordo com Arsénio de Pina quando escreve, num dos seus artigos, que “…no centralismo democrático do início da independência, explicável e até justificável no contexto da época, que fez o seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de cima…”. Sim, demorou e eternizou-se, com prejuízo nítido para o país, e mesmo para a capital, que se engasga com o seu próprio excesso. Note-se que o crescimento desmesurado da capital cabo-verdiana tende a prosseguir inexoravelmente o seu curso, em detrimento do resto do país, se nada for feito em contrário, no sentido de uma justa correcção das assimetrias criadas. O que aconteceu e pode continuar a acontecer até é explicável pelos fenómenos físicos. As leis da física demonstram, com efeito, que um corpo em movimento tende a continuar em movimento (Lei da Inércia de Newton) se não houver uma força em contrário; ao mesmo tempo que a sua massa tende a aumentar (Teoria da Relatividade de Einstein). Ora, a motivação dos que escrevem sobre esta temática não é atentar contra o interesse particular da ilha capital ou qualquer outra, é tão-só contribuir com ideias para a reforma administrativa do Estado, por forma a que o país progrida dentro dos carris de justiça e de equidade. Nenhuma ilha pode aspirar a um estatuto de privilégio sobre outras, mas sim a um papel contributivo na dinamização do todo nacional, num quadro de complementaridade e solidariedade entre todas as suas parcelas. 

    É evidente que o processo de reforma é complexo e delicado, obrigando a romper com práticas e rotinas perniciosas incrustadas desde longa data no aparelho do Estado concentracionário. É preciso reflectir, discutir e encontrar as melhores soluções dentro de um espectro de opções para a descentralização político-administrativa, que vai desde o reforço do municipalismo, como alguns preferem, à regionalização administrativa, que outros advogam como única solução viabilizadora da autonomia propiciadora do progresso. Mas é importante que o que se faça não venha a dar razão a Giuseppe Lampedusa quando pronunciou esta célebre frase: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. Mas isto será conversa para uma próxima opinião.



Tomar, 5 de Fevereiro de 2012


 

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