Referendo Não! Não nestas
condições e conjuntura
1ª Parte: 1974 Quando o PAIGC dizia Referendo Não
Foi recentemente noticiado que o PAICV, enquanto partido no Governo,
admite recorrer a um referendo nacional sobre a regionalização. A ideia,
segundo este partido, consiste em definir qual o tipo de regionalização a
implementar em Cabo Verde após ter declarado há meses que defendia uma
regionalização administrativa do país e não política. Onésimo Silveira, em
declarações recentes, posiciona-se claramente contra qualquer referendo e a
vinda de peritos internacionais para explicarem aos cabo-verdianos o que é a
regionalização e depois indicarem-lhes qual a melhor regionalização para Cabo
Verde. A esse propósito, afirmou Onésimo: “Esse referendo seria passar um
certificado de menoridade à classe política cabo-verdiana. Nisso está
implícita a falta de confiança por parte dos promotores do referendo; no fundo,
querem transferir para o povo essa responsabilidade, quando os próprios
políticos, com base num diálogo sereno e maduro, podem, perfeitamente, decidir
qual a melhor regionalização que convém ao País. Andamos eternamente de mãos
estendidas aos estrangeiros e voltamos a estendê-las mesmo naquilo que a nós diz
respeito. Nenhum especialista, venha ele de onde vier, tem mais capacidade e
discernimento para discutir qual a melhor regionalização que nos convém. Temos
gente abalizada e podemos, a qualquer hora, em paz e tranquilidade, discutir
este assunto”. Não podemos estar mais de acordo com Onésimo Silveira. Por que
carga de água é que os estrangeiros têm que emitir opinião numa matéria que não
lhes diz respeito? Ou será que o PAICV, um partido que se tem como
nacionalista, pretende propor métodos que a sua prática histórica sempre
desaprovou? Países estrangeiros, tais como, por exemplo, Alemanha, França,
Suécia, EUA, Espanha e mesmo Portugal, serão bem-vindos no apoio à
implementação da regionalização mas não na sua discussão. É preciso lembrar que
as grandes democracias ocidentais, França, Alemanha, Suiça, Espanha etc, não
fizeram referendo para introduzir reformas políticas nos seus países, tudo foi
feito com pactos de regime envolvendo partidos e sociedade civil. No caso
particular de Portugal, o referendo foi mais determinado pela tendência
regionalizante na Europa comunitária (A Europa das Regiões), e pela repartição
de fundos comunitários regionais. Portugal, embora tenha uma certa delimitação
regional, não tem necessidade premente de uma regionalização generalizada, pelo
que pode viver sem ter que regionalizar, dada a sua homogeneidade territorial e
cultural na parte continental. Mesmo assim, crescem pressões fortes no país,
nomeadamente no Norte, no sentido da regionalização. O Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa é um dos grandes defensores desta reforma em Portugal. No
entanto, mesmo que a regionalização não venha a contemplar o território
continental português, ela não deixou de aplicar-se às suas ilhas adjacentes, donde
se poderá dizer que à escala global do seu território Portugal é um país
regionalizado. E se essas ilhas o foram, sobretudo, pelo imperativo da
descontinuidade territorial, pergunta-se se a mesma condição não é de igual
modo determinante para o caso cabo-verdiano.
O curioso é que a questão do referendo vem mesmo a preceito para
relembrarmos factos que se prendem com a tomada do poder e a fundação do Estado
de Cabo Verde em 1975. O actual líder do PAICV talvez não se recorde porque não
pertencia ainda ao partido, pelo que é conveniente refrescar a memória nacional
para vermos como a incoerência pode matar a melhor das intenções. Vejamos
então.
Referendo Não foi a palavra que gritámos vezes sem conta, nós os estudantes do Liceu
Gil Eanes*, cerca de um ou dois meses após o 25 de Abril de 1974, esse evento
que desencadeou a maior onda de liberdade de expressão e de pensamento alguma
vez ocorrida em Cabo Verde. Foi também uma altura em que o tema da
independência e suas envolvências geravam discussões acaloradas quase sempre confinadas a grupos de iniciados,
intelectuais, alunos do Liceu Gil Eanes, estudantes universitários de Lisboa
recém-chegados a Mindelo, e os poucos membros locais do PAIGC na ilha. Referendo Não, ‘nem pintod um pared’, tornou-se
um potente slogan das grandes manifestações de rua que ocorreram no Mindelo
durante o Verão Quente de 1974 e que se prolongaram até ao reconhecimento de
Portugal do direito dos cabo-verdianos à auto-determinação e eventualmente à
Independência, e que foram decisivas para que se criassem as condições para a
abertura das negociações
para a independência de Cabo Verde. Referendo
Não
tornou-se assim um dos muitos slogans do PAIGC, partido progenitor do PAICV,
após a criação das condições para sua implantação em S. Vicente e
posteriormente em todo o Cabo Verde. De qualquer maneira, sabemos hoje que essa
palavra de ordem não partiu de um acto espontâneo popular, foi, sim, emanada e
instruída de Lisboa e de Conacry, uma vez que no território cabo-verdiano nunca
houvera um debate sobre questões políticas, na medida em que debaixo do poder
ditatorial só havia uma única verdade e um único discurso: Portugal do Minho a
Timor. Com efeito, para as
autoridades portuguesas o facto de a população urbana de Cabo Verde, de S.
Vicente e em menor parte da Praia, ter aderido em massa ao PAIGC, manifestando-se
nas ruas com tanta intensidade, emotividade e convicção, durante tempo
prolongado, conferia legitimidade a esse partido para se considerar o único
representante do povo cabo-verdiano, e, por conseguinte, detentor da procuração
para encetar uma discussão com as mesmas autoridades sobre a autodeterminação e
eventualmente a independência de Cabo Verde. Todavia, segundo O PAIGC, não
haveria condições para organizar um escrutínio sobre a autodeterminação de Cabo
Verde, na medida em que a população estaria condicionada pelo sistema colonial,
pelos opositores ao PAIGC /defensores de uma ligação à Portugal, a que
pertenciam a extinta UDC e UPICV. Para compor o ramalhete das suas
conveniências, diziam (Para além disso, afirmava-se) que não se pode perguntar
a um escravo se quer ser livre, e com isso arrumavam o assunto sem mais delongas.
Hoje, a maioria dos jovens desconhece este facto, que nem os partidos do poder
nem a sociedade civil prezam em recordar.
A ser verdadeira a notícia vinda a lume
sobre o referendo, estará o partido do poder a incorrer numa incoerência que
mina o pouco de seriedade política e de credibilidade que lhe resta para levar
a bom termo o processo da regionalização. Note-se que é o mesmo partido que nem
sequer foi capaz de organizar um escrutínio, em 1974, que lhe conferiria toda a
legitimidade para governar, é o mesmo que continua a tapar com o silêncio os
atropelos cometidos no seu processo de ascensão ao poder e as violações dos
acordos então estabelecidos com o governo português
O mesmo partido que nunca quis escrutinar
matérias fracturantes, como o aborto, a abertura política e outras, lembrou-se
agora de que a regionalização, ela sim, tem de ser referendada. Não lhe importa,
ao longo do seu passado de poder único, ter mandado às malvas a auscultação
popular sobre questões críticas da vida nacional, mas agora, os sucessores do
partido único, os actuais protagonistas do poder, não vêem outra saída para o
seu bloqueamento interno senão referendar um conjunto de reformas que não podem
deixar de reflectir aspirações da comunidade nacional tão velhas como
legítimas. E assim, em súbita tirada de prestidigitador, pretende-se tirar um
coelho da cartola, et voilá: − Referendo
Sim! Convém lembrar que, a concretizar-se, tal intenção surgirá no seguimento
de declarações de quem prometeu há relativamente pouco tempo a abertura de um
Livro Branco e o Debate alargado sobre a regionalização. Afinal, as promessas já
estão esquecidas. Isto afigura-se mais uma cartada psicológica para criar diversão
sobre um tema que merecia mais sinceridade e abertura por parte do poder, e
mesmo da oposição. É que, enquanto isso, o partido maioritário da oposição
mantém-se num mutismo total, embora o seu líder se tenha declarado favorável à
regionalização, o que tem dado azo a divagações, deambulações e tergiversações
incompreensíveis e inaceitáveis quando é visível que a cidadania espera de
todos os actores políticos uma resposta clara sobre o que
está em causa.
(Continua: 2ª Parte: 2013
Quando o PAICV anuncia Referendo e respondemos Referendo Não).
* Nunca é demais recordar o papel desta
instituição na formação de uma geração de quadros para Cabo Verde e o Mundo, além
da grande contribuição que deu à luta pela independência de Cabo Verde, facto
que hoje é muito pouco recordado, se é que não foi apagado da história contada
da luta pela independência.
José Fortes Lopes
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