terça-feira, 22 de janeiro de 2013


Referendo Não! Não nestas condições e conjuntura

 

1ª Parte: 1974 Quando o PAIGC dizia Referendo Não

Foi recentemente noticiado que o PAICV, enquanto partido no Governo, admite recorrer a um referendo nacional sobre a regionalização. A ideia, segundo este partido, consiste em definir qual o tipo de regionalização a implementar em Cabo Verde após ter declarado há meses que defendia uma regionalização administrativa do país e não política. Onésimo Silveira, em declarações recentes, posiciona-se claramente contra qualquer referendo e a vinda de peritos internacionais para explicarem aos cabo-verdianos o que é a regionalização e depois indicarem-lhes qual a melhor regionalização para Cabo Verde. A esse propósito, afirmou Onésimo: “Esse referendo seria passar um certificado de menoridade à classe política cabo-verdiana.  Nisso está implícita a falta de confiança por parte dos promotores do referendo; no fundo, querem transferir para o povo essa responsabilidade, quando os próprios políticos, com base num diálogo sereno e maduro, podem, perfeitamente, decidir qual a melhor regionalização que convém ao País. Andamos eternamente de mãos estendidas aos estrangeiros e voltamos a estendê-las mesmo naquilo que a nós diz respeito. Nenhum especialista, venha ele de onde vier, tem mais capacidade e discernimento para discutir qual a melhor regionalização que nos convém. Temos gente abalizada e podemos, a qualquer hora, em paz e tranquilidade, discutir este assunto”. Não podemos estar mais de acordo com Onésimo Silveira. Por que carga de água é que os estrangeiros têm que emitir opinião numa matéria que não lhes diz respeito? Ou será que o PAICV, um partido que se tem como nacionalista, pretende propor métodos que a sua prática histórica sempre desaprovou? Países estrangeiros, tais como, por exemplo, Alemanha, França, Suécia, EUA, Espanha e mesmo Portugal, serão bem-vindos no apoio à implementação da regionalização mas não na sua discussão. É preciso lembrar que as grandes democracias ocidentais, França, Alemanha, Suiça, Espanha etc, não fizeram referendo para introduzir reformas políticas nos seus países, tudo foi feito com pactos de regime envolvendo partidos e sociedade civil. No caso particular de Portugal, o referendo foi mais determinado pela tendência regionalizante na Europa comunitária (A Europa das Regiões), e pela repartição de fundos comunitários regionais. Portugal, embora tenha uma certa delimitação regional, não tem necessidade premente de uma regionalização generalizada, pelo que pode viver sem ter que regionalizar, dada a sua homogeneidade territorial e cultural na parte continental. Mesmo assim, crescem pressões fortes no país, nomeadamente no Norte, no sentido da regionalização. O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa é um dos grandes defensores desta reforma em Portugal. No entanto, mesmo que a regionalização não venha a contemplar o território continental português, ela não deixou de aplicar-se às suas ilhas adjacentes, donde se poderá dizer que à escala global do seu território Portugal é um país regionalizado. E se essas ilhas o foram, sobretudo, pelo imperativo da descontinuidade territorial, pergunta-se se a mesma condição não é de igual modo determinante para o caso cabo-verdiano.

O curioso é que a questão do referendo vem mesmo a preceito para relembrarmos factos que se prendem com a tomada do poder e a fundação do Estado de Cabo Verde em 1975. O actual líder do PAICV talvez não se recorde porque não pertencia ainda ao partido, pelo que é conveniente refrescar a memória nacional para vermos como a incoerência pode matar a melhor das intenções. Vejamos então.

 

Referendo Não foi a palavra que gritámos vezes sem conta, nós os estudantes do Liceu Gil Eanes*, cerca de um ou dois meses após o 25 de Abril de 1974, esse evento que desencadeou a maior onda de liberdade de expressão e de pensamento alguma vez ocorrida em Cabo Verde. Foi também uma altura em que o tema da independência e suas envolvências geravam discussões acaloradas quase sempre  confinadas a grupos de iniciados, intelectuais, alunos do Liceu Gil Eanes, estudantes universitários de Lisboa recém-chegados a Mindelo, e os poucos membros locais do PAIGC na ilha. Referendo Não, ‘nem pintod um pared’, tornou-se um potente slogan das grandes manifestações de rua que ocorreram no Mindelo durante o Verão Quente de 1974 e que se prolongaram até ao reconhecimento de Portugal do direito dos cabo-verdianos à auto-determinação e eventualmente à Independência, e que foram decisivas para que se criassem as condições para a abertura das negociações para a independência de Cabo Verde. Referendo Não tornou-se assim um dos muitos slogans do PAIGC, partido progenitor do PAICV, após a criação das condições para sua implantação em S. Vicente e posteriormente em todo o Cabo Verde. De qualquer maneira, sabemos hoje que essa palavra de ordem não partiu de um acto espontâneo popular, foi, sim, emanada e instruída de Lisboa e de Conacry, uma vez que no território cabo-verdiano nunca houvera um debate sobre questões políticas, na medida em que debaixo do poder ditatorial só havia uma única verdade e um único discurso: Portugal do Minho a Timor. Com efeito, para as autoridades portuguesas o facto de a população urbana de Cabo Verde, de S. Vicente e em menor parte da Praia, ter aderido em massa ao PAIGC, manifestando-se nas ruas com tanta intensidade, emotividade e convicção, durante tempo prolongado, conferia legitimidade a esse partido para se considerar o único representante do povo cabo-verdiano, e, por conseguinte, detentor da procuração para encetar uma discussão com as mesmas autoridades sobre a autodeterminação e eventualmente a independência de Cabo Verde. Todavia, segundo O PAIGC, não haveria condições para organizar um escrutínio sobre a autodeterminação de Cabo Verde, na medida em que a população estaria condicionada pelo sistema colonial, pelos opositores ao PAIGC /defensores de uma ligação à Portugal, a que pertenciam a extinta UDC e UPICV. Para compor o ramalhete das suas conveniências, diziam (Para além disso, afirmava-se) que não se pode perguntar a um escravo se quer ser livre, e com isso arrumavam o assunto sem mais delongas. Hoje, a maioria dos jovens desconhece este facto, que nem os partidos do poder nem a sociedade civil prezam em recordar.

 

A ser verdadeira a notícia vinda a lume sobre o referendo, estará o partido do poder a incorrer numa incoerência que mina o pouco de seriedade política e de credibilidade que lhe resta para levar a bom termo o processo da regionalização. Note-se que é o mesmo partido que nem sequer foi capaz de organizar um escrutínio, em 1974, que lhe conferiria toda a legitimidade para governar, é o mesmo que continua a tapar com o silêncio os atropelos cometidos no seu processo de ascensão ao poder e as violações dos acordos então estabelecidos com o governo português

O mesmo partido que nunca quis escrutinar matérias fracturantes, como o aborto, a abertura política e outras, lembrou-se agora de que a regionalização, ela sim, tem de ser referendada. Não lhe importa, ao longo do seu passado de poder único, ter mandado às malvas a auscultação popular sobre questões críticas da vida nacional, mas agora, os sucessores do partido único, os actuais protagonistas do poder, não vêem outra saída para o seu bloqueamento interno senão referendar um conjunto de reformas que não podem deixar de reflectir aspirações da comunidade nacional tão velhas como legítimas. E assim, em súbita tirada de prestidigitador, pretende-se tirar um coelho da cartola, et voilá: − Referendo Sim! Convém lembrar que, a concretizar-se, tal intenção surgirá no seguimento de declarações de quem prometeu há relativamente pouco tempo a abertura de um Livro Branco e o Debate alargado sobre a regionalização. Afinal, as promessas já estão esquecidas. Isto afigura-se mais uma cartada psicológica para criar diversão sobre um tema que merecia mais sinceridade e abertura por parte do poder, e mesmo da oposição. É que, enquanto isso, o partido maioritário da oposição mantém-se num mutismo total, embora o seu líder se tenha declarado favorável à regionalização, o que tem dado azo a divagações, deambulações e tergiversações incompreensíveis e inaceitáveis quando é visível que a cidadania espera de todos os actores políticos uma resposta clara sobre o que está em causa.

 

(Continua: 2ª Parte: 2013 Quando o PAICV anuncia Referendo e respondemos Referendo Não).

                           

* Nunca é demais recordar o papel desta instituição na formação de uma geração de quadros para Cabo Verde e o Mundo, além da grande contribuição que deu à luta pela independência de Cabo Verde, facto que hoje é muito pouco recordado, se é que não foi apagado da história contada da luta pela independência.

 

                            José Fortes Lopes

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