quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O debate em torno da Regionalização


Cabo Verde, sempre foi formado por duas regiões, Barlavento e Sotavento. Por isso é falso quando alguns “cépticos” argumentam que os “regionalistas” (que defendem os interesses de uma região), querem dividir o povo cabo-verdiano. A Regionalização já não é tabu, tornou-se, nos últimos tempos, um assunto que se vem discutindo calorosamente todos os dias. Com efeito e depois de solenemente ser lançado o debate a nível nacional o tema já é conversa obrigatória do dia-a-dia mas também é motivo de polémica. O que é e porquê a regionalização? Regionalização, é um sistema administrativo tendente a assegurar a autonomia às regiões dentro de um Estado unitário transferindo para as regiões algumas competências que pertencem ao poder central
Enquanto fenómeno, a Regionalização como é óbvio, suscita propostas variadas. Os cabo-verdianos já estão a compreender perfeitamente quais são os benefícios da regionalização. Tal não é surpreendente. Os parcos recursos financeiros do país estão concentrados em Santiago, ao passo que as outras Ilhas sofrem de problemas generalizada, sobretudo do desemprego, comércio e indústria inexistentes.
O país há muito (São Vicente em particular), sofre uma crise económica e administrativa sem precedência. São Vicente com uma taxa de desemprego elevada vive de restrições económicas e socais. Jovens recém- formados com objectivos bem definidos não conseguem arranjar o seu primeiro emprego. As fábricas que se instalaram na zona de Lazareto após o 13 de Janeiro fecharam as portas. As casas comercias “centenárias” foram todas à falência.
A Regionalização que se impõe consiste em substituir de vez o actual sistema de governo por um novo modelo totalmente descentralizado, que dê autonomia às populações de cada região em domínios que vão da saúde à educação ou da segurança social à agricultura e às pescas. É claro que este modelo implicaria desmantelar a Administração Pública já caduca que subsiste na Praia e assim, o Primeiro-ministro cumpria a sua promessa de “Reforma do Estado”, que vem prometendo ao país desde 2001, aquando da sua eleição.
A regionalização surgiria assim como um óptimo pretexto para a redução drástica da despesa pública. Poderia extinguir-se mais de metade dos ministérios tais como; Cultura, Comunidades, Ordenamento do Território, Saúde, Ambiente, Agricultura e Pescas, Turismo e todas as Secretarias de Estado entre outras. E o mesmo se passaria com todas as outras repartições da Administração Central. Neste novo paradigma, o governo central manteria a soberania do Estado; negócios estrangeiros, defesa, finanças, administração interna ou justiça. Todas as restantes políticas poderiam ser decididas regionalmente e a sua coordenação a nível nacional poderia ser feita ao nível do gabinete do primeiro-ministro.
Enquanto processo irreversível já aceite pelos líderes dos principais partidos políticos, a Regionalização está a desenrolar-se de uma forma assimétrica e é sentido de forma diferente por alguns “cépticos” nomeadamente aqui em São Vicente, que põe os interesses pessoais e partidários acima dos interesses da Ilha onde vivem e que alguns foram acolhidos pela morabeza, característica desta Ilha.
Uma sociedade verdadeiramente próspera e democrática, só é estável quando os seus cidadãos sentem e sabem que o que conta são os seus direitos e os interesses de todos e não apenas os dos indivíduos que gozam e defendem o status quo insustentável.
BITU MELO

terça-feira, 29 de janeiro de 2013


ADECHE! FALOU EM DESCONCENTRAÇÃO?

           

Não deve ter-me entendido, caro amigo. Falava de descentralização, a pensar na regionalização, dado que a desconcentração de departamentos e serviços públicos, existente entre nós, é uma modalidade travestida de descentralização, engendrada pelo centralismo, para ludibriar o pagode, dado esses serviços não conterem gente eleita pela população, mas nomeada pelo poder central. Refiro-me em artigos, bastas vezes, em primeiro lugar, à descentralização por a regionalização ser uma consequência dela. Nunca é demasiado falar numa, como noutra, por nos parecer ser uma boa estratégia para o país poder sair do marasmo em que se encontra. O Movimento para a Regionalização, Descentralização e Autonomia de Cabo Verde, com o apoio do grupo dinamizador de S. Vicente, de individualidades de outras ilhas e da diáspora, além do aval do Presidente da República e, tardio, do Primeiro-Ministro, quanto ao estudo da regionalização, não irá calar-se, nem desanimar com o silêncio do Governo que tarda em constituir, ou criar as condições para a formação de uma comissão pluridisciplinar e multissectorial para o estudo da regionalização. Só depois do seu estudo aprofundado e minucioso, que poderá, inclusive, contar com o apoio financeiro e técnico de alguns países amigos com experiência na matéria, é que se poderá concluir se convém, ou não ao país; convindo - como estamos convencidos -, proceder-se-ia à sua apresentação à Assembleia Nacional para discussão, adaptação da nossa constituição, criando-se legislação pertinente para a sua execução; muito provavelmente será ensaiada numa, ou duas ilhas, antes de alargada a todo o país. Obviamente que o seu estudo não demorará dias ou poucas semanas, razão por que todo o tempo perdido com a hesitação (tactica?) do Governo é prejudicial.

 A nossa constituição não é avessa à descentralização, nem mesmo, por este motivo, à regionalização. Só há que adaptá-la (revê-la) a essa melhoria. Talleyrand, esse monstro da política e jurista, que conseguiu passar incólume da Monarquia Absoluta à Revolução Francesa e República, ensinou, friamente, que não é de legalidade que se trata em situações desse tipo, até porque os preceitos constitucionais costumam ter a elasticidade suficiente para consagrarem o que a necessidade exige (o sublinhado é meu). Também Stuart Mill escreveu, há cerca de um século, que “a constituição não existe para benefício dos partidos nem dos governos, mas dos cidadãos” (sublinhado meu). Esperamos que as liberdades e benefícios que a constituição consigna não venham a ser minimizados ou destruídos, como muitas vezes acontece, pela sua própria regulamentação. Assistir-nos-ia, nessa eventualidade, como cidadãos de pleno direito, o direito a convocar a indignação contra a “apagada e vil tristeza” que se atravessou entre algumas ilhas e o futuro da nossa terra e a morosidade de medidas pertinentes visando a sua resolução.

A descentralização e a regionalização de poderes delegados pelo poder central seriam muito favoráveis ao país por permitir simplificar a administração do Estado, eliminar a burocracia e revitalizar o poder local; a sociedade civil e a opinião pública estariam também em condições de criar órgãos próprios e independentes do poder governamental, mas benéficos a este. Ajudaria, igualmente, pela valorização da experiência, honestidade e competência, nos concursos e eleições para certos cargos, a libertar de cargos públicos as clientelas partidárias e políticas incompetentes, parasitárias, oportunistas ou desonestas.

Não há dúvida de que somente na ousadia e na inovação, nas mudanças e reformas é que encontramos a verdadeira segurança e progresso.

O Movimento aceita todas as pessoas, independentemente das suas filiações partidárias, mas como cidadãos e não como militantes activos de partidos e suas quintas colunas, cidadãos amantes da sua terra e que a querem ver progredir ainda mais, poupando-a à acção nefasta de alguns que instalaram na nossa sociedade um estranho clima de impunidade que leva os detentores de cargos públicos a passarem por cidadãos acima de qualquer suspeita, indiferentes à crítica e como donos da verdade. Inclui-se e conta-se no Movimento com gente que partilha a aventura criadora, gente que não esquece as raízes – aí está o grosso da nossa diáspora -, gente de exigência ética e moral, gente solidária, gente que faz dos seus dias um alfabeto de esperança. Cremos e queremos ver beneficiar do direito inalienável de todos os cidadãos deverem usufruir de esclarecimentos, objectivamente, sobre os actos do Estado e de mais autoridades públicas, cabendo aos funcionários públicos e outros detentores do poder satisfazer esse direito dos cidadãos, como obrigação a cumprir com orgulho e satisfação.

Com essas convicções e boa-fé, esperamos que o Governo acene favoravelmente ao Movimento com a constituição da comissão de estudo proposta que propusemos, há cerca de um ano, e não nos venha com evasivas ou alternativas pouco curiais, como, por exemplo, a noticiada pelo jornal nacional A Nação de “o PAICV, enquanto Partido do Governo, admite recorrer a um referendo nacional sobre a regionalização”. […] “O assunto encontra-se sobre a mesa há vários anos, sendo inúmeras as pressões para a sua adopção no país”. A nós parece-nos uma má via, e um meio enviesado, por os referendos se destinarem a matérias altamente controversas, intensamente discutidas e esclarecidas após mobilização, de forma séria, da sociedade em torno do debate – o que não é o que se passa entre nós relativamente à regionalização – funcionando como arma de último recurso, uma autêntica bomba atómica atirada, no nosso caso, sobre inocentes, isto é, sobre cidadãos ainda muito mal informados e esclarecidos.

 

Parede, Janeiro de 2013                                                     Arsénio Fermino de Pina

                                                                          (Pediatra e sócio honorário da Adeco)

3ª Parte: Por uma Regionalização e Reformas com Acordos e um Pacto de Regime
(3ª Parte Referendo Não! Não nesta condições e conjuntura)

 

Como era talvez de esperar, noticia-se que Carlos Veiga e José Maria Neves estão em convergência no sentido de haver em Cabo Verde uma “regionalização administrativa”. “Na prática, falta um ou outro aspecto, o que torna a regionalização possível”, foi o que veio a lume com esta desarmante vacuidade. Pronto, já decidiram e tudo no segredo dos deuses! Ainda por cima, haverá referendo e governadores! Exit debates e estudos! Para quê tanta excitação?!

A ser verdade esta informação, ela confirma o facto de o MPD e o PAICV obedecerem invariavelmente à sua base maioritária, radicada em Santiago/Praia, sem terem em conta a realidade regional de Cabo Verde. Estão de acordo sobre os princípios, discordando só da forma. Assim se percebe o silêncio/blackout até hoje mantido pelos partidos do arco do poder, sobre a matéria. Constitui-se assim a Santa Aliança para a defesa do centralismo e evita-se o debate profundo sobre uma reforma da máquina do Estado que interfira com o centralismo, este autêntico abcesso que mina e entrava o país.

Um eventual acordo estratégico entre o MPD e o PAICV sobre o princípio de uma regionalização administrativa do país faz adensar as dúvidas relativas a uma identidade doutrinária centralista entre dois partidos. “Querem regionalização? Então tomem lá um Governador e um Referendo.” “Agora, por favor, não queremos ouvir falar da reforma do Estado centralista: descentralização, desconcentração, desburocratização do poder central, Não. Isto não, não tocamos nos privilégios e prerrogativas. O país está bem e recomenda-se, muito bem mesmo, não precisa de reformas!”

Este hipotético acordo esconde, portanto, uma aversão às reformas e à modernização do país. Desengane-se quem ainda tinha dúvidas.

Com uma regionalização puramente administrativa, os partidos do poder parecem em sintonia com a ideia de criar “cadeiras” para nelas colocarem uma espécie de fantoches sem poderes concretos, facilmente manipuláveis, à semelhança do que foi feito nos anos 90, o que contribuiria logo à partida para o descrédito de um cargo que se revestirá da maior importância no poder local das futuras regiões. A este propósito,  deve-se lembrar que foi o governo presidido por Carlos Veiga quem criou nos anos 90 o cargo de governador e foi o governo de José Maria Neves que o extinguiu, após a sua eleição. Assim, uma regionalização efectuada da maneira como pretendem alguns políticos e algumas elites só poderá saldar-se num rotundo falhanço, esvaziando-se de importância e frustrando as expectativas das populações.

Nenhum adepto da regionalização deve convencer-se de que o processo é automático, que basta um acordo de partidos, a nomeação de pessoas e um decreto. Seria enganar os cidadãos pretender isso. Não pode haver regionalização sem um debate profundo no país para um acordo sério e verdadeiro sobre as reformas a empreender. O princípio da regionalização política, contrariamente à administrativa, diz-nos que a fonte do poder das regiões emana da vontade popular, das populações locais, e não das escolhas do poder central ou das elites dominantes.

Terá, pois, de haver transferência de competências e de soberania do Estado central para as regiões criadas. Como o Estado não pode mais crescer, sobretudo em tempos de racionalização e austeridade, a regionalização deverá ter custo aproximadamente zero, pelo que só pode ser feita com base num reequacionamento e numa reorganização do Estado central, tendente à sua redução. Neste figurino, o Estado ficaria com os instrumentos essenciais de soberania, tais como a Defesa e Segurança, as Finanças e as Relações Exteriores, ao passo que outras competências, se não a maioria, seriam transferidas para as regiões, tal como acontece nas grandes nações regionalizadas. Estaremos neste figurino a falar de um modelo parecido com os modelos federais alemão ou americano.

Porque, a ir avante o referendo, acredita-se que a regionalização seria, logo no primeiro round, derrotada na secretaria dos partidos e do Estado, com toda a máquina propagandística, servida por uma comunicação domesticada e por dinheiros de fácil angariação, a funcionar em surdina mas em pleno regime dos seus pistons para desacreditar os méritos de  uma regionalização plena, virtuosa e esperançosa. Na realidade, o que o sistema não quer é debater a premência de uma real reforma do Estado que ponha em causa o conforto das elites centralizadoras. Sem esta reforma efectiva (1-Descentralização; 2- Desburocratização; 3-Regionalização), a regionalização, a ser meramente administrativa, será uma miragem do que poderia ser. Pois de nada serve a regionalização se aquilo que está na raiz dos problemas e da situação do país e de S. Vicente se mantiver intacto. É sobre esta evidência que aparentemente se calam os partidos, num mutismo que se torna ruidoso demais para não ser ouvido.

De resto, um rápido olhar analítico leva-nos a aduzir que o quadro decorrente da situação social e política em Cabo Verde é em tudo similar à dos países do ex-bloco soviético onde emergiram democracias formais despóticas, situação que gerou oligarquias parasitárias de tipo mafioso, e que gravitam em torno das economias nacionais, sendo o exemplo mais flagrante o caciquismo russo que emergiu da ruína política do fim do sistema soviético. Extremamente vulneráveis politicamente, esses países têm em comum a tremenda herança de terem vivido debaixo de ditaduras de partido único e de terem efectuado transições atabalhoadas para a democracia, e de possuírem classes médias e opinião pública pouco desenvolvidas. A democratização nesses países está confiscada pelas novas elites dominantes, oligarquias de novos-ricos, jogos de poder e interesses diversos, que digladiam pela conquista dos poderes, e são extremamente reaccionárias à qualquer reforma dos sistemas. Todos geraram sistemas centralizados decalcados do sistema soviético, a que estamparam uma fachada democrática, paradoxalmente sob os auspícios de políticas ultraneoliberais. Que não se retire daqui qualquer extrapolação senão pela similitude de algumas evidências.

Pelo que precede, concluo, assim, que envolver o povo num barulho referendário sem ter feito o trabalho de casa é tentar matar a ideia da regionalização. Não existem condições materiais e políticas para a realização de referendos em Cabo Verde. A regionalização e a reforma do Estado não podem nestas condições ser referendadas. A argumentação de Onésimo Silveira não podia ser mais justa ao condenar a ideia do referendo: “está implícita a falta de confiança por parte dos promotores do referendo; no fundo, querem transferir para o povo essa responsabilidade, quando os próprios políticos, com base num diálogo sereno e maduro, podem, perfeitamente, decidir qual a melhor regionalização que convém ao País”. As reformas terão que ser assumidas por toda a nação, incluindo a classe política e a sociedade civil, e corresponder a um compromisso para com Cabo Verde: elas só serão viáveis através de acordos e de um pacto de regime. Daí que o papel do Presidente da República na dinamização e supervisão deste processo seja crucial.

 Só após a regionalização e as reformas do Estado, que traduzirão a maior democratização alguma vez operada no país, é que se poderão criar condições para a organização de futuros referendos sobre qualquer matéria. Como disse aos nossos bravos do Mindelo, mantenham-se firmes, unidos e prontos para a refrega cívica, em prol da regionalização de Cabo Verde, pois muita água vai correr debaixo da ponte. Não se rendam nem se deixem convencer por manhas ou artimanhas. Aguardem serenamente a resposta do governo e dos partidos. Que saiam das vossas  trincheiras. Todas as cartas estão na mesa. (FIM)

 

José Fortes Lopes
2ª Parte: 2013, quando o PAICV anuncia Referendo e respondemos Referendo Não!
(2ª parteReferendo Não! Não nesta condições e conjuntura)

 

 

 

É sabido que o referendo em democracia pode, em certas situações, funcionar como um instrumento de real utilidade para a expressão da soberania popular. A Suíça é um exemplo acabado do uso e abuso do referendo. Qualquer problema é resolvido, a bem ou mal, através deste mecanismo. E repare-se que a Suíça é um dos países mais avançados do mundo, ocupando lugar cimeiro na lista dos mais destacados em termos de desenvolvimento humano. Portanto, não é por acaso que é aqui citado.

Alguns comentadores perguntam: Por que raio esta gente é contra o referendo sobre a regionalização e respondem “Não, não nestas condições e conjuntura”? É o que proponho explicar nesta segunda parte do artigo que versa o tema do referendo.

Perante o que parece ser um esboço de intenção que peca pelo “timing” e pelo oportunismo, nós que defendemos uma regionalização séria, estudada, criteriosa, na verdade só podemos responder Referendo Não. Os mesmos argumentos invocados em 1974 são válidos hoje, com ainda mais força e veemência. A pergunta que desde logo se impõe é como referendar um assunto ainda não devidamente debatido entre as forças políticas e no seio da sociedade civil, e, portanto, sem uma proposta que se apresente minimamente consensual e esclarecida na sua substância e nos seus envolvimentos? De facto, como perguntar às populações se aceitam ou não aquilo que só vagamente conhecem? Por outro lado, um escrutínio democrático sobre regionalização conduzido num Estado que está centralizado na ilha mais populosa pode produzir o efeito de uma autêntica batota, se a propaganda adversa perverter a lisura do processo de esclarecimento cívico. Fácil é, pois, admitir que a opção da população da ilha capital, a mais populosa, pode ser condicionada pela própria ilusão de privilégio adveniente da sua condição de acolhedora do Estado centralizado. Mais ainda se os anti-regionalistas tudo fizerem para explorar esse sentimento, condicionando a livre expressão das populações e amedrontando-as com perigos e riscos imaginários. Se alguém discorda desta probabilidade está a esquecer-se de que o inconveniente do sistema centralizado, a que nos opomos, é a instalação progressiva de vícios, artimanhas e comprometimentos de todo contrários às regras do jogo democrático. Não temos memória curta, sabemos como, em escrutínios eleitorais anteriores, foram comprados votos e manipuladas consciências, num atropelo inaceitável às mais elementares regras da democracia. 

Assim, a mesma lógica que presidiu à decisão do PAIGC de 1974 tem de voltar a impor-se com igual pertinência ao PAICV de 2013: não se pode referendar uma situação de centralismo opressor; não se pode questionar pessoas inconscientemente cativas da centralização, porventura confusas sobre os seus direitos, se querem viver debaixo de mais ou menos centralização. A maioria das pessoas não está esclarecida sobre o conceito de regionalização e sobre o fenómeno do centralismo e dos seus efeitos nocivos sobre as suas vidas e o país. Um referendo sobre a regionalização, realizado numa conjuntura induzida pelo Estado centralizado, moldada às suas próprias conveniências, seria um plebiscito favorável aos centralistas da Praia e de Cabo Verde. Não somos “naives” ou ingénuos para aceitar esta proposta indecente. Como poderiam os cidadãos pronunciar-se sobre regionalização através de uma simples cruzinha no Sim ou Não, quando o famoso livro branco prometido pelo Primeiro-Ministro para nele se inscrever um conjunto de ideias sobre o processo de reforma do país ainda está fechado e nem sequer se vislumbra um debate sobre a matéria, apenas insinuando-se promessas de debates vadios por parte líderes que nunca se pronunciaram seriamente sobre a matéria? Acresce a isto o facto de as pessoas ainda nem sequer saberem o que é a regionalização, muitos desconhecendo os seus direitos fundamentais como cidadãos. Como é que pessoas sem informação sobre a matéria ou totalmente desinformadas poderão votar? Como é que se organiza o escrutínio sem prévias condições objectivas asseguradas à linearidade do seu processo? Várias outras questões podem ser colocadas. Fazer um referendo num vazio de garantias democráticas denuncia a intenção de não querer mudar coisa alguma, de manter inércias negativas que não se coadunam com os desafios do presente e muito menos do futuro. Caminhar com os sapatos cambados de marchas defeituosas é ver o passo tolhido no próximo atalho.

Portanto, não compraremos gato por lebre. A proposta de referendo nestas condições e conjuntura só pode merecer um rotundo Não, pois já conhecemos o jogo que se pratica em Cabo Verde. Quem tenha dúvidas pergunte ao PAIGC/CV por que não aceitou o referendo em 1974 ou outros em anos subsequentes. Existem provas mais do que suficientes de que em Cabo Verde não existem ainda condições democráticas e de liberdade suficientes para a realização de um escrutínio tão importante como sensível. (Continua na 3ª Parte: Por uma Regionalização e Reformas com Acordos e um Pacto de Regime )

terça-feira, 22 de janeiro de 2013


Referendo Não! Não nestas condições e conjuntura

 

1ª Parte: 1974 Quando o PAIGC dizia Referendo Não

Foi recentemente noticiado que o PAICV, enquanto partido no Governo, admite recorrer a um referendo nacional sobre a regionalização. A ideia, segundo este partido, consiste em definir qual o tipo de regionalização a implementar em Cabo Verde após ter declarado há meses que defendia uma regionalização administrativa do país e não política. Onésimo Silveira, em declarações recentes, posiciona-se claramente contra qualquer referendo e a vinda de peritos internacionais para explicarem aos cabo-verdianos o que é a regionalização e depois indicarem-lhes qual a melhor regionalização para Cabo Verde. A esse propósito, afirmou Onésimo: “Esse referendo seria passar um certificado de menoridade à classe política cabo-verdiana.  Nisso está implícita a falta de confiança por parte dos promotores do referendo; no fundo, querem transferir para o povo essa responsabilidade, quando os próprios políticos, com base num diálogo sereno e maduro, podem, perfeitamente, decidir qual a melhor regionalização que convém ao País. Andamos eternamente de mãos estendidas aos estrangeiros e voltamos a estendê-las mesmo naquilo que a nós diz respeito. Nenhum especialista, venha ele de onde vier, tem mais capacidade e discernimento para discutir qual a melhor regionalização que nos convém. Temos gente abalizada e podemos, a qualquer hora, em paz e tranquilidade, discutir este assunto”. Não podemos estar mais de acordo com Onésimo Silveira. Por que carga de água é que os estrangeiros têm que emitir opinião numa matéria que não lhes diz respeito? Ou será que o PAICV, um partido que se tem como nacionalista, pretende propor métodos que a sua prática histórica sempre desaprovou? Países estrangeiros, tais como, por exemplo, Alemanha, França, Suécia, EUA, Espanha e mesmo Portugal, serão bem-vindos no apoio à implementação da regionalização mas não na sua discussão. É preciso lembrar que as grandes democracias ocidentais, França, Alemanha, Suiça, Espanha etc, não fizeram referendo para introduzir reformas políticas nos seus países, tudo foi feito com pactos de regime envolvendo partidos e sociedade civil. No caso particular de Portugal, o referendo foi mais determinado pela tendência regionalizante na Europa comunitária (A Europa das Regiões), e pela repartição de fundos comunitários regionais. Portugal, embora tenha uma certa delimitação regional, não tem necessidade premente de uma regionalização generalizada, pelo que pode viver sem ter que regionalizar, dada a sua homogeneidade territorial e cultural na parte continental. Mesmo assim, crescem pressões fortes no país, nomeadamente no Norte, no sentido da regionalização. O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa é um dos grandes defensores desta reforma em Portugal. No entanto, mesmo que a regionalização não venha a contemplar o território continental português, ela não deixou de aplicar-se às suas ilhas adjacentes, donde se poderá dizer que à escala global do seu território Portugal é um país regionalizado. E se essas ilhas o foram, sobretudo, pelo imperativo da descontinuidade territorial, pergunta-se se a mesma condição não é de igual modo determinante para o caso cabo-verdiano.

O curioso é que a questão do referendo vem mesmo a preceito para relembrarmos factos que se prendem com a tomada do poder e a fundação do Estado de Cabo Verde em 1975. O actual líder do PAICV talvez não se recorde porque não pertencia ainda ao partido, pelo que é conveniente refrescar a memória nacional para vermos como a incoerência pode matar a melhor das intenções. Vejamos então.

 

Referendo Não foi a palavra que gritámos vezes sem conta, nós os estudantes do Liceu Gil Eanes*, cerca de um ou dois meses após o 25 de Abril de 1974, esse evento que desencadeou a maior onda de liberdade de expressão e de pensamento alguma vez ocorrida em Cabo Verde. Foi também uma altura em que o tema da independência e suas envolvências geravam discussões acaloradas quase sempre  confinadas a grupos de iniciados, intelectuais, alunos do Liceu Gil Eanes, estudantes universitários de Lisboa recém-chegados a Mindelo, e os poucos membros locais do PAIGC na ilha. Referendo Não, ‘nem pintod um pared’, tornou-se um potente slogan das grandes manifestações de rua que ocorreram no Mindelo durante o Verão Quente de 1974 e que se prolongaram até ao reconhecimento de Portugal do direito dos cabo-verdianos à auto-determinação e eventualmente à Independência, e que foram decisivas para que se criassem as condições para a abertura das negociações para a independência de Cabo Verde. Referendo Não tornou-se assim um dos muitos slogans do PAIGC, partido progenitor do PAICV, após a criação das condições para sua implantação em S. Vicente e posteriormente em todo o Cabo Verde. De qualquer maneira, sabemos hoje que essa palavra de ordem não partiu de um acto espontâneo popular, foi, sim, emanada e instruída de Lisboa e de Conacry, uma vez que no território cabo-verdiano nunca houvera um debate sobre questões políticas, na medida em que debaixo do poder ditatorial só havia uma única verdade e um único discurso: Portugal do Minho a Timor. Com efeito, para as autoridades portuguesas o facto de a população urbana de Cabo Verde, de S. Vicente e em menor parte da Praia, ter aderido em massa ao PAIGC, manifestando-se nas ruas com tanta intensidade, emotividade e convicção, durante tempo prolongado, conferia legitimidade a esse partido para se considerar o único representante do povo cabo-verdiano, e, por conseguinte, detentor da procuração para encetar uma discussão com as mesmas autoridades sobre a autodeterminação e eventualmente a independência de Cabo Verde. Todavia, segundo O PAIGC, não haveria condições para organizar um escrutínio sobre a autodeterminação de Cabo Verde, na medida em que a população estaria condicionada pelo sistema colonial, pelos opositores ao PAIGC /defensores de uma ligação à Portugal, a que pertenciam a extinta UDC e UPICV. Para compor o ramalhete das suas conveniências, diziam (Para além disso, afirmava-se) que não se pode perguntar a um escravo se quer ser livre, e com isso arrumavam o assunto sem mais delongas. Hoje, a maioria dos jovens desconhece este facto, que nem os partidos do poder nem a sociedade civil prezam em recordar.

 

A ser verdadeira a notícia vinda a lume sobre o referendo, estará o partido do poder a incorrer numa incoerência que mina o pouco de seriedade política e de credibilidade que lhe resta para levar a bom termo o processo da regionalização. Note-se que é o mesmo partido que nem sequer foi capaz de organizar um escrutínio, em 1974, que lhe conferiria toda a legitimidade para governar, é o mesmo que continua a tapar com o silêncio os atropelos cometidos no seu processo de ascensão ao poder e as violações dos acordos então estabelecidos com o governo português

O mesmo partido que nunca quis escrutinar matérias fracturantes, como o aborto, a abertura política e outras, lembrou-se agora de que a regionalização, ela sim, tem de ser referendada. Não lhe importa, ao longo do seu passado de poder único, ter mandado às malvas a auscultação popular sobre questões críticas da vida nacional, mas agora, os sucessores do partido único, os actuais protagonistas do poder, não vêem outra saída para o seu bloqueamento interno senão referendar um conjunto de reformas que não podem deixar de reflectir aspirações da comunidade nacional tão velhas como legítimas. E assim, em súbita tirada de prestidigitador, pretende-se tirar um coelho da cartola, et voilá: − Referendo Sim! Convém lembrar que, a concretizar-se, tal intenção surgirá no seguimento de declarações de quem prometeu há relativamente pouco tempo a abertura de um Livro Branco e o Debate alargado sobre a regionalização. Afinal, as promessas já estão esquecidas. Isto afigura-se mais uma cartada psicológica para criar diversão sobre um tema que merecia mais sinceridade e abertura por parte do poder, e mesmo da oposição. É que, enquanto isso, o partido maioritário da oposição mantém-se num mutismo total, embora o seu líder se tenha declarado favorável à regionalização, o que tem dado azo a divagações, deambulações e tergiversações incompreensíveis e inaceitáveis quando é visível que a cidadania espera de todos os actores políticos uma resposta clara sobre o que está em causa.

 

(Continua: 2ª Parte: 2013 Quando o PAICV anuncia Referendo e respondemos Referendo Não).

                           

* Nunca é demais recordar o papel desta instituição na formação de uma geração de quadros para Cabo Verde e o Mundo, além da grande contribuição que deu à luta pela independência de Cabo Verde, facto que hoje é muito pouco recordado, se é que não foi apagado da história contada da luta pela independência.

 

                            José Fortes Lopes

3ª Parte- Regionalização: Que implicações para Cabo Verde?

 

Esta terceira parte (e fim) incidirá sobre as implicações da Regionalização em Cabo Verde e em S. Vicente

 

P-O Estatuto de S. Vicente, o problema da Ilha Região versus Região Norte, modelos de Regionalização? 

 

R-Penso que estaremos a falar de ilha região, e S. Vicente será uma região. Este parece o modelo eleito ou pelo menos o mais consensual. Quanto à Região Norte, penso que há um certo medo, fundado ou infundado, da parte de alguma elite das outras ilhas da Região Norte, que S. Vicente se substitua à Praia, como um novo centro, canibalizando as energias de Sº Antão, por exemplo. Não acredito que seja essa a vocação ou o desígnio de S. Vicente, a história de complementaridade entre ela e as diferentes ilhas que formam este arquipélago desmente este facto. Há, todavia, neste momento um certo irrealismo da parte de uma certa elite das ilhas congéneres em pretender descolar-se de S. Vicente. Quase todos os problemas que afectam, por exemplo, S. Antão repercutem-se na outra, e vice-versa. Todavia, acredito que chegará a altura certa para discutir uma integração regional futura do conjunto S. Antão, S. Vicente e S. Nicolau. Penso que na área do desenvolvimento portuário, aeroportuário, pesca, turismo, etc, estas ilhas não podem estar cada uma por si, são complementares. Por exemplo, é impossível falar dos portos ou aeroportos nestas ilhas sem falar do papel do Porto Grande ou do aeroporto de S. Pedro no conjunto, pelo que sou favorável ao incentivo de políticas integradas e sinergéticas. Daí que defendo ser necessário encontrar parcerias muito fortes e projectos de valor acrescentado que possam integrar as economias das regiões do Norte de Cabo Verde, reequacionadas, obviamente, no todo que é Cabo-Verde.

 

P-Como é que antevê Cabo Verde num pós Regionalização?

 

Bom, é claro que um dos principais objectivos do nosso movimento é a regionalização, processo a que associamos uma necessária reforma do Estado. Preocupa-nos muito S. Vicente actualmente, mas sobremaneira Cabo Verde, pelo que a nossa ideia é que este movimento de cidadania promova uma reflexão profunda sobre o país, o seu desenvolvimento, o seu futuro, transformando assim num movimento em prol de uma ampla reforma política, económica e cultural do país. Como sabemos todos, o ciclo das ajudas ao desenvolvimento acabou ou tem os dias contados, que não se pode mais apostar na ajuda externa e em donativos, visto que o país já é considerado pelo FMI e por outras instâncias internacionais como de desenvolvimento médio. Estamos, portanto, numa encruzilhada em Cabo Verde. Não obstante este indicador favorável, temos de reconhecer a existência de muitos indicadores objectivos e subjectivos que nos preocupam sobremaneira, que indiciam o fim de um ciclo (que se iniciou nos anos 90) marcando uma certa estagnação do país, com problemas sem fim à vista: crescimento da insegurança, urbanismo caótico e desordenado, problemas básicos de infra-estrutura, carências crónicas de energia e água, custos galopantes dos bens e serviços, desestruturação do modo de vida tradicional do interior das ilhas, fuga do campo para a cidade, migração económica das outras ilhas para a capital, situação de desemprego, etc. Estes sinais emitidos pelos citados indicadores devem ser tomados em consideração e com muita seriedade, pois pode colocar-se em causa a própria essência de Cabo Verde como país viável e autónomo. Não basta pois ter um Cabo Verde internacionalmente útil, que esteja presente nos diversos fóruns internacionais, que tenha diplomatas por todos os cantos do mundo, ou que inclusivamente seja um gendarme moral em África. De que serve um país viável nos fóruns internacionalmente se internamente não se consegue resolver os seus problemas básicos e dar esperança às populações? É extremamente importante que essa utilidade se reverta para o bem-estar das suas populações, incluindo as elites. Esta deve ser a máxima do país. Tem de se encontrar novas vias de desenvolvimento, novas formas de financiar o desenvolvimento de Cabo Verde, e sobretudo inserir o país na cena económica internacional, no mercado global. O Mundo em que estamos a entrar é muito diferente do de há 10 anos, caracterizado pelo acesso ilimitado ao capital e investimentos, os critérios de sustentabilidade económica vão ser determinantes para o acesso aos famosos mercados (que já determinam “a chuva e o bom tempo” nos países) e as economias vão ser avaliadas pela sua capacidade de exportar produtos com alto valor acrescentado. Nós não estamos aqui a propor nenhuma solução milagrosa na área económica, para resolver os problemas de Cabo Verde, mas, a constatar uma realidade, a realçar factos e a suscitar uma reflexão sobre a problemática do desenvolvimento do país. Penso que para além da reflexão sobre a regionalização e a reforma do Estado, é preciso um novo projecto para o desenvolvimento de Cabo Verde, que contempla todos os aspectos, sociais, económicos e políticos, mas para isso todas as forças vivas do país e a sociedade civil e política têm de contribuir num ambiente de diálogo. Este é um grande desafio para Cabo Verde.

 

P- Que papel jogará S. Vicente neste novo Cabo Verde? Haverá algum projecto para S. Vicente?

 

Essencial. Terá de voltar a ser um pólo importante de desenvolvimento do país, ser um dos motores económicos de Cabo Verde. A paralisia da ilha é prejudicial ao país. Não se pode cortar mais as pernas a S. Vicente. Queremos um S. Vicente forte e pujante. Queremos também que Mindelo seja verdadeiramente a capital cultural e intelectual do país. A afirmação actual de ela ser a capital cultural de Cabo Verde é pura propaganda ou demagogia, pois S. Vicente já não é capital de coisa nenhuma. É pura ilusão que vendem aos mindelenses, hoje resignados com a sua condição. Como pode uma ilha depauperada de recursos humanos e financeiros, sem poder de compra e de decisão, completamente dependente dos ventos e humores da Praia, ser capital de qualquer coisa? É ridículo. Para além disso, para ser capital da cultura teria de ter poder de decisão sobre esta matéria, o que num país centralizado, como é Cabo-Verde, é impossível. É questão para perguntar onde estão sediados o Ministério, as Secretarias de Estado e os diferentes serviços com poder de decisão e execução na área da cultura. Para que isso acontecesse, seria necessário disponibilizar meios humanos, materiais e financeiros e dotar a cidade de uma autonomia alargada em matéria de cultura, e ter pessoas competentes a coordenar tudo, não bastam boas intenções. Mas, atenção, não é que defenda que é da burocracia ou de uma concentração do respectivo aparelho de Estado em S. Vicente que a ilha retomará o seu protagonismo na área da cultura. Embora a ambição de capital da cultura para S. Vicente seja justa e louvável, acho que o que estamos a ambicionar e tentar debater é algo mais abrangente, trata-se de um vasto projecto de viabilização política e económica da ilha. Para isso, precisa-se encontrar uma nova vocação para S. Vicente, um novo quadro político, socioeconómico e cultural e um novo projecto. Pelo que no âmbito da reforma que propomos, defende-se que a ilha seja gerida por um governo com poderes e responsabilidades, para que possa minimamente programar e dinamizar o seu desenvolvimento, que possa ir buscar investimentos, criar parcerias internacionais. É nesta perspectiva que defendo a implementação imediata de um plano de emergência para a ilha, incluindo um forte investimento financeiro (um plano financeiro de investimento plurianual ou um contrato-programa especial) e humano (a ilha tem de readquirir parte da elite social emigrada para a Praia e outros destinos e promover a emergência de novas elites entre as gerações mais novas), para além de beneficiar da re-localização da sede de algumas empresas do Estado e estrangeiras. Sem actividade do Estado e de empresas, de modo a fazer circular pessoas e dinheiro, não haverá recuperação socioeconómica possível. O Presidente da República, que já se manifestou favorável à descentralização do país, deveria residir algum tempo em S. Vicente (e também noutras ilhas), conviver com as pessoas e com os problemas das ilhas. Esta atitude vinda de cima criaria uma dinâmica psicológica favorável à descentralização, e se trouxesse consigo alguns serviços do Estado, tenho a certeza de que estes passariam a ser vistos com outros olhos.

 Face às estratégias de silêncio adoptadas pelos partidos e pelo governo, é previsível que a implementação da regionalização do país venha a demorar mais tempo do que o desejável ou que seja protelado pelas forças políticas. Face à necessidade urgente de iniciar o trabalho de recuperação económica, cultural e política de S. Vicente, julgo que as principais forças políticas e da sociedade civil poderiam acordar a instalação em S. Vicente de um governo regional experimental e provisório, com poderes alargados. Esta iniciativa poderia inclusivamente coincidir com uma experiência piloto de regionalização em S. Vicente, como, segundo presumo, defende o Grupo de Reflexão no Mindelo. Volto a lembrar que esta medida só podia ser provisória, pois considero que a regionalização terá de funcionar em regime de democracia, ou seja, com órgãos regionais democraticamente eleitos pelas populações. Tentar nomear, à presa e à revelia dos cidadãos, um Governador para S. Vicente, a acreditar nos rumores que circulam, é um autêntico desprezo à ilha e aos valores de democracia em vigor em Cabo Verde, só podendo ser interpretado como um expediente para matar qualquer veleidade de um debate sobre as reformas que propomos. Nenhum mindelense (ou não) que se preze devia aceitar esta proposta, que neste presente contexto e nestas condições, é indecente.

Voltando ao aspecto da Cultura em S. Vicente, acho que ela não se pode resumir ao Festival da Baía das Gatas nem a festas ou bailes populares. A ilha deve tornar-se palco de eventos culturais de âmbito ou repercussão internacional, assim se criem as devidas condições. É preciso que a ilha S. Vicente encontre uma vocação internacional, seja uma referência no Atlântico: Inseri-la nas grandes correntes internacionais, da música, das artes, espectáculos, realização de congressos, etc, enfim, tudo o que move o mundo hoje deve ser uma preocupação. Uma ilha cosmopolita, aberta ao mundo e que contribua para a cultura e a civilização universais, num mundo que é hoje global e em constante mutação. Acho, pois, essencial dinamizar a vida cultural nocturna de S. Vicente, uma vez que detém um grande potencial económico e cultural. Há toda uma economia a gerar nesta área. Os casos de Barcelona e de outras cidades do Sul da Espanha e da Itália e da França são paradigmáticos de como as cidades conseguem conciliar segurança nocturna e animação cultural nocturna diversificada. Por outro lado, considero essencial investir no património existente e na requalificação urbana da baixa do Mindelo (Centro Histórico, a Praia de Bote, até a Praça Estrela, Avenida Marginal) com um projecto de dimensão internacional. Tem de se apostar mais na formação técnica e científica dos jovens, incentivando a implementação de escolas técnicas e de ofícios do artesanato local, etc. Desenvolver um turismo de alta gama, sempre integrado no plano de recuperação da Ilha. Investir, por exemplo, no mercado de Turismo da 3ª Idade envolvendo a Diáspora, com casas para emigrantes e outras oportunidades de desenvolvimento. Enfim há um conjunto de ideias que se podem explorar para a recuperação da ilha

Estamos a falar de programas integrados envolvendo um verdadeiro investimento na ilha, não de tostões mas de várias dezenas de milhões de euros ou dólares, pois hoje em dia sem dinheiro, não obstante haver boa vontade, não se pode fazer nada.

 

P- Como vê os problemas de segurança no quadro desta visão inovadora para a Ilha?

 

R- A segurança em S. Vicente e em todo o Cabo Verde deve ser uma prioridade. Imagina, já ninguém se aventura a sair de casa a pé, à noitinha, para dar um passeio pela cidade, para o tradicional convívio nocturno que era característico da ilha, pois os riscos são enormes, mesmo no centro da cidade. Se existe uma presença policial ela é invisível, é pelo menos a percepção que se tem (nesta área a percepção é importante). Também temos de lembrar que a televisão contribuiu para matar a vida nocturna, sobretudo quando não há outro estímulo lá fora. Uma ilha como S. Vicente, que vive da cultura urbana e amanhã do turismo nacional (diáspora, reformados) ou internacional, a não garantia da segurança corresponderá à “morte do artista”. Com a miséria endémica (provocada pela situação desemprego ou subemprego generalizado que caracteriza a ilha), que se entranhou no miolo da cidade/ilha, uma indústria turística não devidamente pensada e enquadrada poderá agravar a situação social, e portanto a segurança, e ter efeitos devastadores na mesma. Pois, os pobres descerão à cidade à procura de algo para sobreviver, e o turista simbolizando os ricos, a fonte de dinheiros, poderá ser presa fácil. Portanto, trata-se de um problema complexo que deve ser adequadamente equacionado: turismo e desenvolvimento. Porque, de facto, o turismo, ao alavancar um certo desenvolvimento, poderá, paradoxalmente, gerar “feed backs” negativos, sob a forma de miséria e insegurança. Esta equação pode ser perigosa se não se houver políticas integradas para a ilha, atentas à situação social.

 

Resumindo, quais são os pontos que o vosso movimento e os grupos de dinamização pretendem focar ou discutir com o governo?

 

Julgo que estamos em condições criar uma frente alargada, capaz de negociar com o governo, caso esteja disposto a tal, não somente a regionalização mas também um vasto conjunto de reformas do Estado que irão no sentido da descentralização e democratização do país. Associar a regionalização de Cabo Verde à reforma do Estado é crucial para o êxito daquela. A reforma do Estado deve ser uma ideia estruturante para o sucesso da regionalização. Pois de nada serve a regionalização se aquilo que está na raiz dos problemas e da situação do país e de S. Vicente se mantiver intacto. Assim, para além da discussão propriamente sobre o modelo de regionalização e o seu calendário de implementação, deve-se elencar um pacote de reformas para o país. Temos um conjunto de ideias fortes sobre esta reforma que incluem a desconcentração e a desburocratização da máquina do Estado, a distribuição dos órgãos de soberania pelo arquipélago, nomeadamente a realocação noutras partes do arquipélago de ministérios, serviços e empresas. Tudo a saldar-se na criação de oportunidades e incentivos nas outras ilhas periféricas, para fixação das populações e dos recursos humanos necessários ao desenvolvimento integral e diversificado do país.

Porque o nosso objectivo não é resolver exclusivamente os problemas de S. Vicente e fechar a ilha numa concha, mas o de rasgar uma visão aberta, consubstanciada numa perspectiva mais alargada e de longo prazo, antevendo o conjunto de reformas que deverão permitir um maior progresso de Cabo Verde. No final, pretende-se o reforço da democracia e da co-participação dos cidadãos em tudo o que se relacione com a vida pública.

 

 

P- Que mensagem gostaria de enviar aos partidos e às elites?

 

R- A mensagem que gostaria de enviar aos partidos é que facilitem a abertura ao diálogo em vista à regionalização. Têm de aproveitar a oportunidade e a mão estendida por nós. Aproveitem também para reformar ou reformatar os vossos partidos, pois a regionalização poderá ter consequências na recomposição política do país. Aos nossos bravos em S. Vicente envio-lhes uma mensagem de encorajamento, que se mantenham firmes e corajosos nesta luta em prol da regionalização de Cabo Verde. Lembrem-se sempre do famoso discurso de coragem de Winston Churchill (“We shall defend our island (…); we shall never surrender and even if, which I do not for a moment believe, this Island or a large part of it were subjugated and starving, (….), would carry on the struggle, until, in God’s good time, the New World, with all its power and might, steps forth to the rescue and the liberation of the old.”( Winston Churchill, discurso de Junho 4, 1940))(FIM).

 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013


             Breves reflexões sobre as Perguntas e Respostas de José Fortes Lopes

 

Dá gosto ler prosa tão escorreita e com suculento conteúdo escrita por alguém que ama a sua terra e nada tem a ganhar para si próprio, pelo contrário, tem tudo a perder de eventuais favores e benesses do poder, os quais rejeita em defesa da justiça e melhor organização política, social e administrativa do seu país. O patrício José Fortes da Silva, docente universitário, demonstra ter uma ética republicana cuja matriz cívica e cultural consubstancia a ideia de servir os outros sem egoísmos.

Ideias claras e corajosas a que não estamos habituados a escutar, nem a ler, porque tanto os do governo como dos partidos políticos e seus ideólogos se especializaram no malabarismo da confusão de ideias e habilidade de confundir conceitos em benefício próprio, ou dos partidos. Uma das facetas mais negativas da política, e que tem motivado o seu descrédito, é a partidocracia, por ter permitido trepar, na sua escala de valores, a mediocridade. Ele detecta na nossa jovem democracia sinais precoces de anquilose, e eu preferiria antes dizer, que temos uma construção aligeirada de democracia, com triunfo do caciquismo, caucionamento da esperteza chico-espertismo, pântano ético em exposição permanente, um claro indício de que algo vai mal nas nossas berças crioulas. A adjectivação, ´burocrático´, feita pelo articulista do centralismo, é bem aplicada porque a burocracia, pelos papéis infindáveis e carimbos, sustenta poderes mais imaginários do que reais, embora um burocrata seja sempre um ditador potencial, e a burocracia também sempre da área do irracionalismo.

Bem sei que o medo entranhado na alma, como percevejo em prega de colchão, dos largos anos do fascismo e do partido e pensamento únicos, tolhe a voz do cidadão. Mas já é tempo de nos libertarmos dele e da canga de arbitrariedades que têm esvaziado o país de homens verdadeiramente livres, porque sem eles, não há futuro digno. Existe, realmente, como vimos constatando, o perigo de uma crise da democracia provocada pela indiferença colectiva e pela debilidade de participação cívica, a qual só pode ser estimulada com o surgimento de movimentos cívicos e sociais activos como o nosso Movimento para a Regionalização e Descentralização de Cabo Verde e outros afins da sociedade civil, que, no plano local e regional, se propõem debater o presente e o futuro do país numa postura interpelante com os poderes. Felizmente, um pouco por todo o lado, estão a surgir grupos de cidadãos para uma acção civilista e política que não só é vital para a própria democracia, como necessária para a afirmação de uma nova pedagogia sobre a cidadania. Essa vitalidade antes desprezada, essa ousadia de pensar em voz alta, essa forma de ser e de estar, é reconhecida hoje como imprescindível ao respirar das comunidades das localidades e regiões.

Não há dúvida de que temos gente capaz, honesta, incorruptível, decidida a se sacrificar – porque já os houve activos, sem, no entanto, terem aquecido muito os lugares, por serem incómodos ao poder – em benefício do país e para dar o seu contributo ao aperfeiçoamento da nossa democracia. Pena é que, alguns se retraiam, sempre na espectativa (mas de quê, se já lá vão quase 40 anos de independência?) de um rebate de consciência dos no poder, outros por não serem ouvidos, ou por terem sido postos de lado; deveriam avançar com as suas propostas de apoio, sem mais esperar. Creio que somente a pressão da sociedade civil e das suas organizações poderá levar o Governo e os Partidos a quebrar o silêncio para discutir aberta e francamente a estratégia da descentralização/regionalização, pondo de lado truques, como o da desconcentração administrativa, ou de governadores civis nomeados, cujos prazos de validade terminaram diazá na mund.

Bem sei que os poderes convivem mal com a crítica. Os governantes acham que o dever de responder aos cidadãos é uma maçada e que a democracia, na sua verdadeira vertente participativa, é uma grande chatice, como escalpelizei no livro Ês Ca Ta Cdi! Cabo Verde não é somente Praia e Santa Catarina; há outras cidades e vilas para além das de Santiago com direito à mesma paternidade. Eu, que já não sou criança, bate-me forte o coração e avanço para a luta cívica quando oiço falar na regionalização e descentralização. Há palavras que nos beijam como se tivessem bocas…

Não me agrada vir a ser recordado, ou que se venha a reconhecer que tinha razão, depois de morrer, por isso ser certo, visto deixar obras e exemplos. Gostaria que me combatessem, ripostassem, ou levassem a sério as minhas críticas e propostas em vida.

 

Parede, Janeiro de 2013                                 Arsénio Fermino de Pina

                                                      (Pediatra e sócio honorário da Adeco)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

PONDO ALGUNS PONTOS NOS ii


                                                                                            

                                   PONDO ALGUNS PONTOS NOS ii

            O “laissez faire, laissez passer” de Adam Smith, que originou o liberalismo económico e a economia de mercado, teve grande sucesso enquanto houve o respeito de alguma ética que impunha entraves à realização de operações especulativas. J. J. Rousseau, reticente quanto à sua vertente social que permitia aprofundar as diferenças entre os indivíduos, não o aprovava, mas Voltaire, valorizando a sua eficácia na criação de bens a distribuir, dava-lhe o seu apoio.

            O capitalismo disso fortalecido teve uma fase mais ou menos humana, não pela sua índole intrínseca, mas por medo do comunismo imperante na União Soviética e países satélites que defendia equidade na distribuição da riqueza e benefícios sociais a todos, particularmente aos fautores dessa riqueza, os trabalhadores. Para que houvesse essa justiça social, as grandes empresas estratégicas dos países deviam pertencer aos Estados e não ao privado, para que o princípio marxista da justa distribuição fosse aplicado.

            Nos países capitalistas, as organizações sindicais e profissionais tinham bastante poder e influência e conseguiam impor-se, utilizando a greve como uma arma de último recurso para fazer valer os direitos adquiridos, após duras batalhas, e as reivindicações dos trabalhadores relativas a salários de acordo com o rendimento do seu labor e enriquecimento das empresas onde trabalham.

            Com a implosão da União Soviética, o consequente descrédito do comunismo e o abastardamento do socialismo noutros países, o capitalismo considerou-se vencedor, deixou de temer o gongon comunista e socialista e perdeu toda a vergonha e o verniz que encobria a sua faceta maligna, exploradora, egoísta e depredadora. Nessa sabura capitalista, todos os dias temos de suportar sábios nas televisões e nos jornais rebolando-se na lama do discurso neoliberal.

            A doutrina do choque da Escola de Chicago de Friedman, isto é, da chamada destruição construtiva, avalizada pelo teórico-mor do neoliberalismo, F. Hayek, Prémio Nobel de Economia e apologista da economia de mercado com Estado mínimo em economia, isto é, com a mínima intervenção do Estado, por haver, como dizia, uma regulação automática do mercado pela livre concorrência, como que uma mão invisível reguladora, competindo tão-somente ao Estado fazer funcionar a concorrência quando, por qualquer motivo anómalo, ela não estivesse a funcionar adequadamente.

            Com a destruição construtiva, ou teoria do choque, as empresas de pequenas dimensões ou pouco eficientes (a maior parte, pequenas e médias empresas) desapareceriam devido à concorrência das maiores, o que era previsível e mesmo salutar para os consumidores porque vingariam as melhores e mais eficientes capazes de produzir em grande quantidade e a baixo preço. Pouco importava para os defensores dessa doutrina o desemprego criado, por permitir abundância de mão-de-obra, sempre disponível, que se sujeitaria a salários mais baixos dada a perda de força dos sindicatos e a diminuição de greves.

Obviamente que, posta em prática essa estratégia, os preços excessivamente baixos liquidaram as empresas concorrentes de menores dimensões e poder económico, subiram as mais poderosas, desaparecendo os concorrentes (fenómeno chamado dumping, devido ao caracter fraudulento da baixa de preços); os direitos dos trabalhadores foram desaparecendo por os sindicatos terem perdido força e influência em situações de desemprego e excesso de mão-de-obra, sendo mais fácil, nestas condições, encontrar fura-greves desesperados que aceitam qualquer vil salário. Os valores morais em crise, só os “parvos” (leia-se, honestos) é que não aproveitam as oportunidades criadas pelo neoliberalismo selvagem que a passividade estatal tem propiciado e tolerado. Houve, sem dúvida, uma subversão da divisão dos poderes, tal como a democracia os tinha consagrado. Montesquieu contorce-se no seu túmulo.

Disso resultou a crise em que vivemos e a necessidade que os Estados tiveram de intervir com injecção massiva de milhões e milhões de dólares, ou euros, para evitar a catástrofe. Mesmo assim, milhões de europeus e americanos perderam os seus empregos, as suas casas, as suas vidas, as suas empresas para que os governos esquecessem a economia e tratassem de ir em socorro dos bancos. Torna-se evidente que as facilidades, a desregulação da economia e as liberdades concedidas à economia e finanças levaram a que bancos e outras instâncias financeiras entrassem na especulação financeira, sempre no fito de obter mais e mais lucros com fundos existentes e inexistentes, virtuais, fictícios (economia de casino). Como declarou Lula da Silva numa entrevista recente publicada no Diário de Notícias, “o que faliu foi a economia fictícia, fraudulenta dos especuladores e não a economia produtiva, real, dos países e dos povos”, porque os países onde não houve especulação financeira não estão em crise. Essa foi a ocasião soberana desperdiçada para meter nos eixos o sistema financeiro mundial, penalizando fortemente os especuladores e metendo na cadeia os mais venais.

Será que condeno o liberalismo civilizado, onde existe individualismo igualitário, justiça relativa, em que as diferenças e desigualdades só são aceitáveis se permitirem elevação individual do nível de vida dos desfavorecidos? Claro que não, porque nesse liberalismo o Estado não abdica da sua função de controlo da economia e finanças, da moderação de apetites de gulosos e glutões e salvaguarda a existência digna que mereça ser vivida dos desfavorecidos curando da vertente social. Já advertia Adam Simth, nos seus famosos livros A Riqueza das Nações e A Teoria dos Sentimentos Morais, que “no espírito comercial, mercantilista, as inteligências murcham, a elevação do espírito torna-se impossível, a instrução é dispensada”, o que vem acontecendo em muitos países onde o mercantilismo se apoderou da informação, da educação, da saúde, justiça, ciência, arte e até de religiões, mormente de seitas religiosas que encontraram o seu fundo de negócio na exploração da credulidade humana e do medo às penas eternas no Inferno e temporárias no Purgatório.

Foi recentemente revelado, depois de expirar o prazo do secretismo oficial, que Margaret Tatcher quis pôr fim ao Serviço Nacional de Saúde Inglês, o primeiro sistema social de saúde que serviu de modelo, com sucesso, a alguns países da Europa e algures. De resto, não precisamos de ir muito longe; em Portugal, nos nossos dias, não fora a rejeição total do povo e de todas as forças vivas do país, da política do governo de liquidar o Serviço Nacional de Saúde, já se teria consumado essa tragédia. As políticas sociais beneficiando a Educação, Saúde e Segurança Social estão sofrendo duros golpes, atestando à evidência as intenções do Governo. Até o Norte de Portugal, grande vítima da crise, protestando contra o centralismo burocrático do poder lisboeta, reclama a legitimação democrática dos órgãos dirigentes da Área Metropolitana do Porto com eleições directas como forma de criar uma voz com autoridade para falar em nome da região. Vejam lá se nós também não temos razão em reclamar a regionalização face ao centralismo da Praia!... A situação de S. Vicente (e de outras ilhas) é pior do que a de Porto, por ser mais antiga. Já custa suportar a falta de solidariedade nacional; as outras ilhas não podem ser apenas motivo de folclore político. Só a esperança em dias melhores pode justificar os sacrifícios que vimos sofrendo, e a regionalização possui o germe dessa esperança.

É portanto necessário voltar a uma política de valores, em que as pessoas estejam no centro das preocupações e não o lucro a qualquer preço, o qual nos trouxe o mercantilismo do neoliberalismo e a globalização. Há urgência na substituição do tráfico de influências pelo princípio marxista de a cada um segundo as suas necessidades, o seu mérito e competência.

A globalização agravou mais a situação por se prestar a fraudes. Ela só funciona, de vento-em-popa, para os ricos, para os países industrializados que têm muito para exportar e recebem, como vimos, os lucros, sem entraves, dos países para onde exportam, exigindo destes condições para exportar que eles não respeitaram no passado e alguns continuam a não respeitar.

Todavia, o feitiço está a virar-se contra o feiticeiro, dado que, pelas regras da globalização e da OMC, os países ricos do Norte não podem opor-se às importações vindas dos países chamados emergentes – aqueles que através de políticas sensatas e honestas se libertaram dos condicionalismos impostos pelos países industrializados e entraram na via do desenvolvimento endógeno, como a China, India, Brasil, etc., – que têm apresentado produtos a preços imbatíveis na concorrência, levando mesmo à falência de algumas indústrias e empresas do Norte. Outrossim, a China, por exemplo, aceitou instalar indústrias de multinacionais estrangeiras no seu território, que utilizam mão-de-obra muito mais barata e praticamente sem direitos laborais, com lucros fabulosos para essas empresas, mas causando desemprego nos seus países de origem (Europa e EUA), já que o capitalismo não tem pátria, aliás, a sua pátria é o local onde obtém mais lucro. Só que a China e a India já dominam a alta tecnologia do Norte e poderão, de um momento para outro, nacionalizar essas empresas passando a produzir, elas próprias, esses produtos ou similares. A China está aprendendo com a Europa a construção do Estado social e já se nota melhoria nítida relativa a salários, previdência social e assistência médica que não existiam, tornando assim menos atractivas às empresas capitalistas a transferência das fábricas para a China, continuando, no entanto, a crescer a sua economia, ao contrário da dos países do Norte que estão em recessão.

Um último ponto nos ii: os paraísos fiscais ou offshores.

Paraísos fiscais são bancos com características especiais, isentos de toda a regulação e fiscalização, onde se pode depositar dinheiro sem identificação do seu proprietário, com lucros mais elevados do que nos bancos comerciais, pouca despesa, para fugir ao pagamento de impostos no país de origem e branqueamento de dinheiro sujo. Estima-se haver nas offshores entre 13 a 19 milhões de milhões de dólares dedicados inteiramente a actividades especulativas! Localizam-se junto dos grandes centros financeiros e foram criados por europeus: na Suiça e Luxemburgo, para servir a Europa; nas Antilhas, para servir os EUA; em Barhein, para o Norte de África e países do Gofo Pérsico; em pequenas ilhas do Pacífico, para a Ásia. Nestes paraísos fiscais entra toda a casta de dinheiro, geralmente, ou em maior quantidade, dinheiro da droga, venda de armas, fundos para o terrorismo, roubos de erários públicos, etc. Com a desregulação das finanças (Consenso de Washington), os especuladores podem tudo fazer, mas quando dão com os burrinhos em água, é o Estado, os cidadãos, a pagar a conta através de aumentos de impostos, como vem acontecendo na Europa e EUA. Em Portugal há o escândalo do BPN – um caso de polícia que foi entregue a tribunais por lidar com criminosos de colarinho branco -, e agora o Governo injectou 1.1000 mil milhões de euros no Banif, ficando seu dono com 99,2% das suas acções, quando, para justificar a privatização da Caixa Geral de Depósitos, considerou o Estado mau gestor. Quem é que entende isso, quando se alega falta de fundos para socorrer empresas produtivas em apuros, se lançaram no desemprego centenas de milhares de funcionários e impostos a torto-e-a-direito?

Na Reunião do G20, aquando da bronca com o L. Brothers, que as famosas agências de notação de risco davam pontuação máxima, houve consenso nas mediadas a serem urgentemente tomadas para evitar a repetição de crise semelhante: nova regulamentação do sistema financeiro internacional, aumento de transparência nos processos financeiros, reforço dos controlos sobre as transações, abolição dos paraísos fiscais, etc., mas até agora, como declarou Lula da Silva na entrevista referida, não se avançou praticamente nada no tocante à necessidade e urgência de reformar as finanças globais.

Se houvesse ética e moralidade no mundo, esses paraísos fiscais deveriam ser proibidos, extintos. Mas nunca se conseguiu verdadeiro consenso para isso, dado haver muito dinheiro sujo para ser branqueado ou escondido de multinacionais, traficantes de drogas e armas e de governantes venais. Se o manancial de dinheiro das offshores voltasse aos bancos comerciais donde partiram, de que são sucursais, desapareceria a crise de um dia para outro, e não haveria necessidade de austeridade à custa dos cidadãos, que não foram responsáveis por ela. Se aos bancos comerciais de alguns países do Norte que foram recapitalizados à custa do erário público, portanto da sociedade, se tivesse exigido que fossem buscar o dinheiro nas suas offshores, em vez de serem os Estados a fazê-lo, seguramente que não teria havido crise. Mas, não, porque já há multinacionais e bancos com muito mais dinheiro e poder do que Estados, e estadistas subalternizados a essas multinacionais e bancos, isto é, ao poder financeiro dominante.

Repito: há que voltar a uma política de valores, princípios e padrões em que as pessoas estejam no centro das preocupações, não o lucro a qualquer preço, com Estados a dominarem a economia e as finanças e não banqueiros especuladores e os ricos, aqueles que criaram a crise e, pasme-se! foram encarregados de a corrigir, o que nos parece ser o mesmo que mandar a raposa guardar o galinheiro. Antes do liberalismo selvagem a economia estava ao serviço das pessoas e da satisfação das necessidades básicas de uma comunidade, pelo que se chamava de economia política, dado que havia um poder político que a controlava e defendia dos instintos predadores dos mais ricos, poderosos e desonestos.

Parede, Janeiro de 2013                                                  Arsénio Fermino de Pina

                                                                       (Pediatra e sócio honorário da Adeco)