de Adriano Miranda Lima
Pelas razões aduzidas na primeira parte deste artigo, entendo que será um erro inviabilizar, por bairrismo, irrealismo ou auréolas descabidas, a colectividade regional – Região Noroeste (S. Antão, S. Vicente e S. Nicolau) – que mais possibilidades de sucesso oferece no quadro do reordenamento territorial do país. Os que rejeitam encarar essa associação parecem ignorar que o espírito de união, de partilha e de solidariedade nunca foi uma palavra vã nas três ilhas, como a história o comprova à saciedade. Leia-se esta passagem do romance “Hora di Bai”, do escritor Manuel Ferreira, cujo centenário agora se comemora: “Naquele tempo a ilha de S. Vicente era o porto de salvamento. Empurrados do interior os povos vieram arrastando-se para o litoral, até junto do mar, na esperança de uma mandioquinha, na ânsia de um caldinho de peixe…”. O autor refere-se à fome que ceifou milhares de vidas em Cabo Verde no início da década de quarenta do século passado, e ao acolhimento que S. Vicente proporcionou às populações das ilhas vizinhas que a demandavam em busca de uma côdea de pão.
Se a concepção de uma identidade regional assenta em pressupostos de ordem geográfica, demográfica, social e económica, também não é menos relevante a função da cultura e da história como elementos catalisadores da proximidade afectiva e da construção de laços de solidariedade. É natural que o curso do tempo dissolva alguns registos da memória colectiva, mas é tempo de revitalizar e tonificar um sentimento unificador entre as três ilhas em causa, em ordem à construção da única colectividade regional com condições para suscitar inapelavelmente uma efectiva partilha de poder entre o centro e as parcelas mais significativas do território. Tanto mais que esta hipótese de região tem como polo mais importante a segunda ilha e a segunda cidade mais importantes do país. Isto não é de somenos e são os teóricos contemporâneos do fenómeno da regionalização que afirmam a importância fundamental de um centro urbano como núcleo estrutural e irradiador do desenvolvimento regional, graças às infra-estruturas económicas e sociais disponíveis e ao papel de uma sociedade civil capaz de conceber e operacionalizar os planos de desenvolvimento. É perante este requisito que se questiona como poderão as nossas ilhas materializar unidades regionais no seu verdadeiro significado.
Então, se é compreensível que um projecto de regionalização se reja por uma dada realidade concreta e à escala dos valores que integra, também é verdade que existe uma doutrina e um conjunto de princípios dominantes que descartam versões irrisórias de regionalização, sob pena de irrelevância e de distopia funcional. Por exemplo, pergunta-se se existe a mínima possibilidade de ilhas como Maio, Boavista e Brava, para não falar de todas, constituírem por si só unidades regionais. Mais, veja-se que o projecto de lei em ponderação concebe para a ilha de Santiago duas regiões. Compare-se agora a nossa maior ilha com as unidades regionais do “departamento ultramarino francês”, atentando nos respectivos dados sobre superfície e população:
Ilha
Superfície
Habitação
Regiões
Santiago
991 Km2
266.161
2 (em vista)
Guadalupe
1.628 km2
404.000
1
Martinica
1.100 km2
401.000
1
Guiana
83. 485 km2
250.000
1
Reunião
2.519 km2
834.000
1
Atente-se agora no polo mais extremo do contraste: ilha Brava, 67 Km2 e 6.000 habitantes. Que este exemplo caricatural nos abra os olhos para a necessidade de corrigir a perspectiva, se a ideia é construir um projecto de regionalização credível e que seja via para o relançamento económico e social das ilhas e do país.
O que está em causa é a descentralização do poder e a desconcentração do aparelho do estado em função de unidades regionais que o sejam de facto e não entidades minimalistas e, por isso mesmo, exíguas nas suas capacidades endógenas e nas suas possibilidades de sucesso. Mas o que o projecto de lei em estudo preconiza e a sociedade civil parece aceitar como possível, porventura quedando-se na epiderme do problema, não terá grandes possibilidades de sucesso em Cabo Verde. Porque não é crível que Ilhas de escasso território, reduzida população, magros recursos e poucas potencialidades económicas, reúnam condições para o assentamento de alicerces minimamente confiáveis para a construção de um projecto regional. Não é por acaso que Jean Labasse e outros geógrafos conceituados afirmam que a regionalização só atingirá os objectivos por que aspiram as populações se se conjugarem duas condições basilares: adequada descentralização político-administrativa; disponibilidade de recursos financeiros necessários. Mesmo tendo capacidade de decisão e uma estrutura eficaz, a região pouco ou nada realizará se não tiver os instrumentos financeiros necessários.
Mas não se pense que é tarefa fácil reverter o sistema concentracionário e centralizador vigente no país, daí admitir-se que ele usará toda a sorte de artifícios e estratagemas políticos para se manter intocável no essencial das suas prerrogativas, sendo uma regionalização perfeitamente inócua o primeiro garante formal da sua longevidade. O centro político, densamente concentrado, instalou-se ao longo de décadas e solidificou-se de tal modo que é contra-natura esperar que seja ele próprio a reverter o que se consumou em função de: população inflacionada à custa das ilhas da periferia, clientelas políticas e de negócios instaladas, empresas e infra-estruturas criadas numa lógica de centralidade, em suma, uma realidade hiperbólica construída por via política e que hoje é o verdadeiro corpo e organismo de Cabo Verde. Nada disso vai mudar por decisão voluntária dos usufrutuários do centro, a quem pouco importa que a situação contraria flagrantemente a geografia de um país arquipelágico. Nada mudando de verdade, a grande fatia do Orçamento do Estado vai continuar a privilegiar a cidade da Praia e a ilha de Santiago, cuja segunda urbe até já almeja ser a
segunda do país. Ora, mantendo-se os alicerces e as estruturas do centro, com previsão até do seu revigoramento (estatuto especial para a Praia, integração de duas regiões e manutenção de nove municípios), pergunta-se de onde virá o acréscimo de recursos para alocar às regiões e de harmonia com o seu estatuto. Maior pertinência ganha esta interrogação se o dispositivo territorial se fragmentar em ilhas-regiões.
É sob esta óptica que se tem de olhar para o projecto de lei em “socialização”, esperando-se que ele não seja a última palavra na matéria. Que haja uma discussão séria e alargada a todos os fóruns da cidadania. Que se perceba que uma regionalização bem concebida tem de ser precedida de uma reforma profunda em toda a dimensão estrutural do Estado, racionalizando-o e desconcentrando-o, para que as unidades regionais sejam consequência natural de uma mudança bem gizada e não uma excrescência no organismo estatal.
Tomar, Junho de 2017
Adriano Miranda Lima
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