terça-feira, 24 de janeiro de 2012

S. VICENTE: UM CASE STUDY PARA UM POSSÍVEL MODELO DE REGIONALIZAÇÃO E AUTONOMIA EM CABO VERDE 

1ª parte


Génese e decadência de uma Cidade Nova: a ilha de S. Vicente


 
   
Seja o epíteto “Cidade Nova” atribuído à cidade-ilha de S. Vicente entendido como expressão de uma analogia oitocentista com a remota e quinhentista Cidade Velha, na ilha de Santiago. Ambas são marcos distanciados de duas realidades históricas, uma corporizando a experiência iniciática do povoamento, exaurindo-se no tempo, e outra

a projecção da colónia, quiçá o seu relançamento definitivo, na era da Revolução Industrial.

    Mas a realidade apresenta-se hoje com uma crueza indisfarçável. S. Vicente atravessa, sobretudo desde há algumas décadas, um período difícil da sua história. Tendo em conta o seu grande potencial de desenvolvimento, a ilha teria, com a independência nacional alcançada em 1975, todos os trunfos para ser uma das praças-fortes de Cabo Verde, um pólo político, económico e intelectual, por excelência, do novo país. A aplicação de más políticas e a cegueira ideológica, de permeio com a má vontade dos homens e uma acanhada visão de futuro, levaram a ilha a conhecer situações de crescente estagnação socioeconómica, passando de locomotiva do desenvolvimento de Cabo Verde para o estatuto de um mero burgo, uma ilha manifestamente apagada, e que, por analogia histórica, passou à condição de uma “Cidade Velha” dos tempos modernos. 

   Após décadas de verdadeiro apogeu no século XIX, é já no seu dobrar que conhece a primeira grave crise, coincidente com um dos períodos mais sombrios da história portuguesa. A glória de S. Vicente, que decorre da ocupação pelos ingleses do Porto Grande, foi portanto de pouca dura, passageira. A ilha, que se transformou no centro da colónia, ressentiu-se dos sobressaltos e das profundas crises económicas e politicas que assolavam a sociedade portuguesa da Metrópole dos finais do século XIX e princípios do século XX, que resultaram da acumulação de séculos de políticas económicas desastrosas. Antero de Quental apresentou as principais razões do atraso dos povos peninsulares na sua famosa As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, segundo ele iniciada a partir do século XVII: A Contra-Reforma dirigida pelos Jesuítas, a Centralização Política realizada pela Monarquia Absoluta e um Sistema Económico herdado da era dos Descobrimentos, pouco sustentável.

    Quanto às crises de Cabo Verde no século XX, as hesitações do governo do Estado Novo sobre o rumo a dar à colónia foram as principais responsáveis pelo início da queda de S. Vicente, não obstante o relevante empenho e as soluções apresentadas por Adriano Duarte Silva (que viu em 2009 a sua casa, um ex-líbris mindelense, demolida, encerrando-se assim com um acto bárbaro o ultimo capítulo de uma estúpida vingança politica), no sentido da definição de um estatuto mais digno para a colónia, a adjacência. Com a queda do Império Britânico e com o regime do Estado Novo incapaz de encontrar alternativas para uma ilha que fora um autêntico entreposto inglês na África Ocidental, o seu destino ficou selado, assistindo-se à marcha inexorável de um lamentável declínio. A perda, em Dezembro de 1961, da chamada Índia Portuguesa e o eclodir das guerras coloniais nas antigas possessões portuguesas de África, contribuíram para aprofundar a crise na ilha, que se alastrou para todo o arquipélago, já por si minado por séculos de miséria extrema, sendo que a emigração foi a única solução, tardia, encontrada pelas autoridades portuguesas para resolver os problemas socioeconómicos do território. As indecisões e os temores de Lisboa terão assim aberto a via para que Amílcar Cabral propusesse uma mudança audaciosa e radical do destino do arquipélago, uma independência improvável, mas viável, através da união orgânica com o futuro estado da Guiné-Bissau, acompanhada de uma re-africanização dos espíritos e da utopia da construção de um homem novo em ambos os países.

    Com a abertura política em Portugal proporcionada pelo 25 de Abril, abriu-se uma  possibilidade para o fim da estagnação socioeconómica de S. Vicente, mercê dos auspícios   de uma democracia pluripartidária no país, que, à partida, teria maior  e mais imediata possibilidade de êxito em S. Vicente, por ser a única ilha completamente urbanizada. Não obstante a situação desfavorável, foi possível o aparecimento de várias tendências políticas, ao mesmo tempo que balbuciaram algumas actividades partidárias. No caldo de entusiasmo que entretanto entrou em ebulição, tanto eclodiram entusiásticas manifestações de estudantes liceais em apoio a tudo o que significava ruptura com a situação anterior, como houve lugar a posições mais esclarecidas, comedidas e ponderadas na linha ideológica do Movimento Claridoso, de que foi paradigmático o discurso do Dr. Baltasar Lopes da Silva nos Paços da Câmara Municipal de S. Vicente no dia 1 de Maio de 1974. 

    Foi um período rico de exaltações cívicas, com saraus culturais organizados em geral nas instalações do então Liceu Gil Eanes, comícios políticos, festas populares, enfim, instalou-se o ambiente de uma revolução popular festiva. Este movimento espontâneo e simpático, ‘bon enfant’ e quase apolítico, politizou-se, no entanto, e num ápice, com o que viria a ser uma identificação maioritária com as ideias do PAIGC. Mas cedo a situação saiu fora do controlo e descambou infelizmente para situações de intolerância política, muitas vezes à revelia de muitos dos próprios dirigentes daquele partido, aquilo que o General de Gaule caracterizou de “la chienlie” (a canalhice) durante a situação revolucionária de Maio 68 em Paris. A tomada da rádio Barlavento, orquestrada por simpatizantes do PAIGC, com o apoio do MFA, foi a cartada final para captar a adesão popular ao ideário da independência, cuja consequência lógica e imediata foi a suspensão da recém-nascida experiência pluripartidária. Com efeito, tendo em conta as forças no terreno e a realidade geopolítica de então, o futuro político do arquipélago estava já sendo decidido nos bastidores, independentemente da vontade dos actores políticos no terreno. Assim, o próprio contexto político da época não permitiu criar os consensos necessários para o advento de uma democracia cabo-verdiana, a partir dos valores intelectuais em presença e das forças políticas no terreno. A via para a implantação do modelo do estado africano autoritário estava assim traçada.

    Quando se olha para o chamado processo de descolonização, o que na realidade se vê em Cabo Verde é mais uma fuga de cérebros e de quadros cabo-verdianos (indesejáveis, por serem conotados como agentes do colonialismo) do que um regresso de colonos ao país de origem. As pessoas que deixaram o país eram na maioria cidadãos nascidos no território e cabo-verdianos de várias gerações. Assim, é paradoxal aplicar o chavão “processo de descolonização” a um território que era administrado maioritariamente por cabo-verdianos, onde era praticamente inexistente a presença de colonos no sentido virtual da palavra, onde todos os escalões da administração local eram preenchidos por cabo-verdianos, e onde o grosso da actividade económica era nacional. Esta era uma característica ‘sui generis’ da colónia Cabo Verde. Portanto, a fuga-descolonização em Cabo Verde resulta mais do temor da então elite cabo-verdiana face à perspectiva de uma revolução descontrolada e da instalação de um regime autoritário de obediência marxista, do que o receio de  uma descolonização clássica, propriamente dita.

    Por conseguinte, os acontecimentos ocorridos durante o período que antecede a  independência carecem de uma re-interpretação histórica. O que aconteceu quadra-se mais precisamente ao figurino de uma revolução clássica, no sentido da Revolução Francesa ou Russa, onde ocorre o derrube de uma classe, os possuídos, e se dá a sua substituição por uma nova classe emergente, antes despossuída, associada ao movimento revolucionário que conquistou o poder.

    Mas, como em todas as revoluções, há o lado positivo e negativo. O lado positivo corresponde ao significativo crescimento da economia associado à melhoria do nível de vida das populações, embora o verdadeiro desenvolvimento almejado continue a ser um ideal por atingir. O lado negativo prende-se com a circunstância de todas as revoluções engendrarem gaps (buracos) geracionais, mais ou menos passíveis de serem preenchidos com o tempo. No caso da ilha de S. Vicente, este gap ainda está por preencher, situação que hoje se reflecte numa certa frivolidade, imaturidade e falta de confiança da sociedade mindelense: ela não conseguiu reencontrar-se, nem encontrou ainda o seu normal ponto de funcionamento.

    A divisões, os ódios e as desconfianças políticas actuais da sociedade mindelense e cabo-verdiana têm a sua raiz no processo revolucionário e são o seu reflexo. Mesmo assim, seria injusto e desonesto atirar todas as culpas da situação que se vive em S. Vicente ao período revolucionário. O drama da ilha é que o modelo de desenvolvimento implementado pela 1ª República não era o mais correcto. Acresce o facto de que em 1975 os regimes políticos de inspiração marxista já estavam em contra-ciclo com a marcha do tempo. Já se sabia que os modelos centralizados tinham os dias contados, tarde ou cedo entrariam em falência, mas o partido que conquistou o poder em 1975, o PAIGC, não estava atento aos sinais do tempo.

    Enquanto muitos opositores ao regime (a UCID, oposição interna, Terra Nova, os denominados trotskistas, etc.) apontavam os dedos a esse partido pela sua paixão ao Bloco de Leste, os amigos de esquerda enviavam sinais insistentes para que não se seguisse a via monolítica, mas que se abrisse o país para um regime de multipartidarismo de matriz de esquerda e se implementasse um modelo de desenvolvimento diferente dos modelos neo-coloniais inviáveis aplicados nos estados recém-independentes em África, propostas obviamente desvalorizadas até à queda do comunismo. Para S. Vicente, as condições estavam assim criadas para o fim do sonho representado pela abertura política no 25 de Abril e pela grande expectativa que correspondeu à Independência nacional.

    A abertura política, em 1991, veio renovar as expectativas, surgindo uma nova oportunidade para a realização do sonho mindelense, uma era promissora de mais liberdade económica e política. As promessas de uma Câmara Municipal animada pelo lema Vamos Levantar S. Vicente e as possibilidades reais de transformar a ilha num segundo pólo de desenvolvimento de Cabo Verde, da melhoria substancial do panorama sócio-económico e da sua inserção nos roteiros internacionais, acalentaram os sonhos de uma maior prosperidade e da resolução dos problemas básicos e estruturais crónicos da ilha e do país. A abertura correspondeu todavia a mais uma expectativa gorada, o fim definitivo do sonho mindelense.

    O ponto luminoso no Atlântico iria começar a piscar e a perder o seu brilho. E assim a Cidade Nova dá sinais de uma visível decrepitude, não tardando a ser mais uma cidade museu, uma outra Cidade Velha.


José Fortes Lopes
 

PS1: Os meus agradecimentos ao companheiro Adriano Miranda Lima        pela revisão do texto e pelas inúmeras sugestões e contribuições que permitiram melhorar a sua qualidade final.

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