Génese e decadência de uma Cidade Nova: a
ilha de S. Vicente
Seja o
epíteto “Cidade Nova” atribuído à cidade-ilha de S. Vicente entendido como
expressão de uma analogia oitocentista com a remota e quinhentista Cidade
Velha, na ilha de Santiago. Ambas são marcos distanciados de duas realidades
históricas, uma corporizando a experiência iniciática do povoamento,
exaurindo-se no tempo, e outra
a projecção
da colónia, quiçá o seu relançamento definitivo, na era da Revolução
Industrial.
Mas a realidade apresenta-se hoje com uma
crueza indisfarçável. S. Vicente atravessa, sobretudo desde há algumas
décadas, um período difícil da sua história. Tendo em conta o seu grande
potencial de desenvolvimento, a ilha teria, com a independência
nacional alcançada em 1975, todos os trunfos
para ser uma das praças-fortes de Cabo Verde, um pólo político, económico e
intelectual, por excelência, do novo país. A
aplicação de más políticas e a cegueira ideológica, de permeio com a má vontade
dos homens e uma acanhada visão de futuro, levaram a ilha a conhecer situações
de crescente estagnação socioeconómica, passando de locomotiva do
desenvolvimento de Cabo Verde para o estatuto de um mero burgo, uma ilha
manifestamente apagada, e que, por analogia histórica, passou à condição de uma
“Cidade Velha” dos tempos modernos.
Após décadas de verdadeiro apogeu no século
XIX, é já no seu dobrar que conhece a primeira grave crise, coincidente com um
dos períodos mais sombrios da história portuguesa. A glória de S. Vicente, que
decorre da ocupação pelos ingleses do Porto Grande, foi portanto de pouca dura,
passageira. A ilha, que se transformou no centro da colónia, ressentiu-se dos
sobressaltos e das profundas crises económicas e politicas que assolavam a
sociedade portuguesa da Metrópole dos finais do século XIX e princípios do
século XX, que resultaram da acumulação de séculos de políticas económicas
desastrosas. Antero de Quental apresentou as principais razões do atraso dos
povos peninsulares na sua famosa As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares,
segundo ele iniciada a partir do século XVII: A Contra-Reforma dirigida pelos
Jesuítas, a Centralização Política realizada pela Monarquia Absoluta e um
Sistema Económico herdado da era dos Descobrimentos, pouco sustentável.
Quanto às crises de Cabo Verde no século XX, as hesitações do governo do Estado Novo sobre o
rumo a dar à colónia foram as principais responsáveis pelo início da queda de
S. Vicente, não obstante o relevante empenho e
as soluções apresentadas por Adriano Duarte Silva (que viu em 2009 a sua casa,
um ex-líbris mindelense, demolida, encerrando-se assim com um acto bárbaro o
ultimo capítulo de uma estúpida vingança politica), no sentido da definição de
um estatuto mais digno para a colónia, a adjacência. Com a queda do Império
Britânico e com o regime do Estado Novo incapaz
de encontrar alternativas para uma ilha que fora um autêntico entreposto inglês
na África Ocidental, o seu destino ficou selado,
assistindo-se à marcha inexorável de um lamentável declínio. A perda, em
Dezembro de 1961, da chamada Índia Portuguesa e o eclodir das guerras coloniais
nas antigas possessões portuguesas de África, contribuíram para aprofundar a
crise na ilha, que se alastrou para todo o arquipélago, já por si minado por
séculos de miséria extrema, sendo que a emigração foi a única solução, tardia,
encontrada pelas autoridades portuguesas para resolver os problemas socioeconómicos
do território. As indecisões e os temores de Lisboa terão assim aberto a via
para que Amílcar Cabral propusesse uma mudança audaciosa e radical do destino
do arquipélago, uma independência improvável, mas viável, através da união
orgânica com o futuro estado da Guiné-Bissau, acompanhada de uma
re-africanização dos espíritos e da utopia da construção de um homem novo em
ambos os países.
Com a abertura política em Portugal
proporcionada pelo 25 de Abril, abriu-se uma
possibilidade para o fim da estagnação socioeconómica de S. Vicente,
mercê dos auspícios de uma democracia pluripartidária no país, que,
à partida, teria maior e mais imediata
possibilidade de êxito em S. Vicente, por ser a única ilha completamente
urbanizada. Não obstante a situação desfavorável, foi possível o aparecimento
de várias tendências políticas, ao mesmo tempo que balbuciaram algumas actividades
partidárias. No caldo de entusiasmo que entretanto entrou em ebulição, tanto
eclodiram entusiásticas manifestações de estudantes liceais em apoio a tudo o
que significava ruptura com a situação anterior, como houve lugar a posições
mais esclarecidas, comedidas e ponderadas na linha ideológica do Movimento
Claridoso, de que foi paradigmático o discurso do Dr. Baltasar Lopes da Silva
nos Paços da Câmara Municipal de S. Vicente no dia 1 de Maio de 1974.
Foi um período rico de exaltações cívicas,
com saraus culturais organizados em geral nas instalações do então Liceu Gil
Eanes, comícios políticos, festas populares, enfim, instalou-se o ambiente de
uma revolução popular festiva. Este movimento espontâneo e simpático, ‘bon enfant’ e quase apolítico,
politizou-se, no entanto, e num ápice, com o que viria a ser uma identificação
maioritária com as ideias do PAIGC. Mas cedo a situação saiu fora do controlo e
descambou infelizmente para situações de intolerância política, muitas vezes à
revelia de muitos dos próprios dirigentes daquele partido, aquilo que o General
de Gaule caracterizou de “la chienlie”
(a canalhice) durante a situação revolucionária de Maio 68 em Paris. A tomada
da rádio Barlavento, orquestrada por simpatizantes do PAIGC, com o apoio do
MFA, foi a cartada final para captar a adesão popular ao ideário da
independência, cuja consequência lógica e imediata foi a suspensão da
recém-nascida experiência pluripartidária. Com efeito, tendo em conta as forças
no terreno e a realidade geopolítica de então, o futuro político do arquipélago
estava já sendo decidido nos bastidores, independentemente da vontade dos actores
políticos no terreno. Assim, o próprio contexto político da época não permitiu
criar os consensos necessários para o advento de uma democracia cabo-verdiana,
a partir dos valores intelectuais em presença e das forças políticas no
terreno. A via para a implantação do modelo do estado africano autoritário estava
assim traçada.
Quando se olha para o chamado processo de
descolonização, o que na realidade se vê em Cabo Verde é mais uma fuga de
cérebros e de quadros cabo-verdianos (indesejáveis, por serem conotados como
agentes do colonialismo) do que um regresso de colonos ao país de origem. As
pessoas que deixaram o país eram na maioria cidadãos nascidos no território e
cabo-verdianos de várias gerações. Assim, é paradoxal aplicar o chavão “processo
de descolonização” a um território que era administrado maioritariamente por
cabo-verdianos, onde era praticamente inexistente a presença de colonos no
sentido virtual da palavra, onde todos os escalões da administração local eram
preenchidos por cabo-verdianos, e onde o grosso da actividade económica era
nacional. Esta era uma característica ‘sui
generis’ da colónia Cabo Verde. Portanto, a fuga-descolonização em Cabo
Verde resulta mais do temor da então elite cabo-verdiana face à perspectiva de
uma revolução descontrolada e da instalação de um regime autoritário de obediência marxista, do que o receio de uma descolonização clássica, propriamente
dita.
Por
conseguinte, os acontecimentos ocorridos durante o período que antecede a independência carecem de uma re-interpretação
histórica. O que aconteceu quadra-se mais precisamente ao figurino de uma
revolução clássica, no sentido da Revolução Francesa ou Russa, onde ocorre o
derrube de uma classe, os possuídos, e se dá a sua substituição por uma nova
classe emergente, antes despossuída, associada ao movimento revolucionário que
conquistou o poder.
Mas, como em todas as revoluções, há o lado
positivo e negativo. O lado positivo corresponde ao significativo crescimento
da economia associado à melhoria do nível de vida das populações, embora o
verdadeiro desenvolvimento almejado continue a ser um ideal por atingir. O lado
negativo prende-se com a circunstância de todas as revoluções engendrarem gaps (buracos) geracionais, mais ou
menos passíveis de serem preenchidos com o tempo. No caso da ilha de S.
Vicente, este gap ainda está por
preencher, situação que hoje se reflecte numa certa frivolidade, imaturidade e
falta de confiança da sociedade mindelense: ela não conseguiu reencontrar-se,
nem encontrou ainda o seu normal ponto de funcionamento.
A divisões, os ódios e as desconfianças
políticas actuais da sociedade mindelense e cabo-verdiana têm a sua raiz no
processo revolucionário e são o seu reflexo. Mesmo assim, seria injusto e
desonesto atirar todas as culpas da situação que se vive em S. Vicente ao período
revolucionário. O drama da ilha é que o modelo de desenvolvimento implementado
pela 1ª República não era o mais correcto. Acresce o facto de que em 1975 os
regimes políticos de inspiração marxista já estavam em contra-ciclo com a
marcha do tempo. Já se sabia que os modelos centralizados tinham os dias
contados, tarde ou cedo entrariam em falência, mas o partido que conquistou o
poder em 1975, o PAIGC, não estava atento aos sinais do tempo.
Enquanto muitos opositores ao regime (a
UCID, oposição interna, Terra Nova, os denominados trotskistas, etc.) apontavam
os dedos a esse partido pela sua paixão ao Bloco de Leste, os amigos de
esquerda enviavam sinais insistentes para que não se seguisse a via monolítica,
mas que se abrisse o país para um regime de multipartidarismo de matriz de
esquerda e se implementasse um modelo de desenvolvimento diferente dos modelos
neo-coloniais inviáveis aplicados nos estados recém-independentes em África,
propostas obviamente desvalorizadas até à queda do comunismo. Para S. Vicente,
as condições estavam assim criadas para o fim do sonho representado pela
abertura política no 25 de Abril e pela grande expectativa que correspondeu à
Independência nacional.
A abertura política, em 1991, veio renovar
as expectativas, surgindo uma nova oportunidade para a realização do sonho
mindelense, uma era promissora de mais liberdade económica e política. As
promessas de uma Câmara Municipal animada pelo lema Vamos Levantar S. Vicente e as possibilidades reais de transformar
a ilha num segundo pólo de desenvolvimento de Cabo Verde, da melhoria
substancial do panorama sócio-económico e da sua inserção nos roteiros
internacionais, acalentaram os sonhos de uma maior prosperidade e da resolução
dos problemas básicos e estruturais crónicos da ilha e do país. A abertura
correspondeu todavia a mais uma expectativa gorada, o fim definitivo do sonho
mindelense.
O ponto luminoso no Atlântico iria começar
a piscar e a perder o seu brilho. E assim a Cidade Nova dá sinais de uma
visível decrepitude, não tardando a ser mais uma cidade museu, uma outra Cidade
Velha.
José Fortes
Lopes
PS1: Os meus agradecimentos ao companheiro
Adriano Miranda Lima pela revisão do
texto e pelas inúmeras sugestões e contribuições que permitiram melhorar a sua
qualidade final.
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