segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

                   Dois dedos de conversa sobre regionalização e descentralização  


Como um dos meus amigos do peito da juventude, letrado de boa cepa, me falou de um movimento ou grupo Sanvicentino que quase exige “independência já” para Soncente, ou teria o amigo interpretado mal os objectivos do movimento ou ouvido algum despistado a falar do que não conhece, e dado ter dado o meu apoio a um Movimento de Cidadania Activa que nada tem a ver com tamanha estupidez, trepo para os lombos pelados do meu burrito predilecto para uma pequena incursão pelo que entendi e subscrevi relativamente ao Movimento para a regionalização, descentralização e autonomia de S. Vicente.

Quando, no Manifesto sobre a criação deste Movimento se fala de autonomia, quer-se dizer, como defendeu Mário Soares para os Açores, na década de oitenta, altura em que havia alguns espíritos medrosos e mal informados, defendendo autonomia progressiva até à independência, pelas afinidades com os EUA e o receio da evolução comunista do Movimento Revolucionário do 25 de Abril, dizia eu, Mário Soares defendeu outro tipo de autonomia a que chamou de autonomia tranquila – que veio a prevalecer -, sem nunca ter passado pela cabeça dos proponentes do nosso Movimento pôr em causa, obviamente, a unidade nacional.

A regionalização do país, a descentralização administrativo-financeira das regiões e a autonomia tranquila facilitariam e promoveriam a responsabilização dos quadros dirigentes, estimulando os cidadãos a assumirem em pleno a cidadania e a participar activamente na gestão da coisa pública, ganhando consciência e lucidez sobre os seus desígnios e objectivos.

O movimento é apolítico, aliás, apartidário, brotado da sociedade civil. Por mais que se espreite, não se encontrará nenhum fumo partidário, nem rabo-de-gato politiqueiro. Nele podem participar todas as pessoas de boa vontade, com ideias saudáveis, iniciativas, corajosas e determinadas, e mesmo políticos, desde que estes deixem a militância partidária e a má política em casa. Na nossa perspectiva, não é movimento que possa ser recuperado por políticos para os respectivos partidos.

Herdámos da administração portuguesa a centralização excessiva, sendo essa mais uma razão para desenvolvermos municípios mais fortes e instituições regionais descentralizadas a que o Poder Central deve delegar funções e poderes. O exercício dos poderes delegados será, como não podia deixar de ser, sob controlo e fiscalização do Poder Central.

No centralismo democrático do início da independência, explicável e até justificável no contexto da época, que fez o seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de cima, triadas “democraticamente” pelos elementos de cúpula partidários e aceites disciplinadamente (obedientemente) pelos militantes, e pelo povo (aqui, convenhamos, abusivamente, por o povo não estar sujeito à disciplina partidária), não havendo meios oficiais de recurso e os protestos correrem o risco, quase assegurado, de penalização. Outrossim, tal sistema só poderá funcionar em sistema de partido único ou ditadura, que já não é o nosso caso desde a abertura democrática do PAICV, abertura quiçá tardia que perdeu originalidade e crédito por não ter sido em tempo útil, comprometidamente coincidente com o colapso do sistema soviético e das chamadas democracias populares, seguida – o que foi louvável e louvado - de mudança tranquila do regime, através de eleições livres, para novo regime gerido pelo MpD.

Como nos diz um sábio africano, temos necessidade de uma disciplina social livremente aceite a complementar a democracia. Há que interiorizar essa fibra patriótica que faz optar em prioridade pelo interesse geral, o trabalho aturado e o respeito escrupuloso do bem público. Os (de)mocratas venais devem ser rechaçados da barca governamental e dos serviços públicos.

A regionalização tem demonstrado, nos países onde foi instituída, ser um instrumento poderoso que favorece a democracia devido à participação activa dos cidadãos. Essencial na democracia a liberdade e igualdade perante a lei para ser possível a participação da maioria, isto é, dos menos favorecidos face a minorias natural ou artificialmente privilegiadas (democracia, como sabemos, vem do grego: demo=povo, cracia=poder -- poder do povo). Aproxima os serviços públicos das populações, diminui a burocracia e a corrupção propiciada e a ela adstrita, e legitima o poder através do voto popular. É facto que as possibilidades de participação são muito maiores quando existem eleitos por mérito na competência do que quando se verifica a nomeação por parte do Governo Central

Embora não se possa garantir a pés firmes que a descentralização e a regionalização sejam condição necessária e suficiente para o desenvolvimento, parece-nos inquestionável que a existência de regiões e de um sistema democrático representativo ao nível regional podem estimular os serviços públicos contribuindo para a sua sensibilização e desburocratização. O próprio facto de o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições competitivas pode promover o investimento público e privado. Além disso, tendo o desenvolvimento uma dimensão não apenas económica, mas também social, cultural e ambiental, o poder regional democrático e as suas actividades delegadas pelo poder central podem ser um factor benéfico e uma contribuição importante para o assegurar.

O instinto político de descentralização e autonomia patenteia-se na multiplicidade de formas, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais contra a média uniforme, impotente e artificial do centralismo. Nele se manifestam e afirmam o espírito inventivo, democrático e autonómico das populações. As liberdades municipais e iniciativas locais dão às populações fisionomia e vida próprias impossíveis na centralização esterilizadora e monocórdica.

Já dizia, há cerca de dois séculos, o famoso historiador que conhecemos dos bancos dos liceus, Alexandre Herculano, que os partidos políticos, sejam quais forem os seus ideais e interesses, ganham sempre com a centralização. A centralização do poder é o grande meio de este o conservar e controlar de perto porque concentrado num ponto ou local na sua omnipotência burocrática. Não tenhamos dúvidas nem ilusões: esperar a descentralização, a regionalização e a autonomia por iniciativa e decisão de partidos políticos e governos é quase como garantir chuva, em Cabo Verde, no mês de Outubro. Deverá ser a sociedade civil a lutar por ela com argumentos válidos até convencer os partidos políticos e governo a adoptá-la.

Não estamos certos se a nossa Constituição admite que possam ser estabelecidos regimes diferenciados para as regiões, mas, no caso negativo, ou omisso, competirá ao Governo propor à Assembleia Nacional legislação permitindo essa possibilidade, a ser promulgada depois pelo residente da República e aplicada.

Cremos bem que as regiões com descentralização administrativo-financeira podem ser um instrumento de unidade e solidariedade nacionais, e não de divisão como alguns temem, se for correctamente realizada e as populações sentirem que as regiões mais atrasadas ou negligenciadas passarão a ter autonomia e a dispor de mais recursos do que até agora; ninguém aceita que Santiago, embora albergue cerca de metade da população do país, beneficie de dois terços dos investimentos para o desenvolvimento destinado ao país, mormente por sermos nove ilhas dispersas habitadas. Essa incongruência talvez fosse aceitável se fossemos continente, sem a descontinuidade que a condição de ilhas implica, o que permitiria facilmente a aproximação dos centros de decisão e dos serviços públicos centralizados.

O Movimento fez uma proposta para a constituição de uma comissão de estudo, contemplando algumas das questões que ventilo nestas linhas, que inclua todos os parceiros sociais, económicos e políticos a fim de se chegar a um consenso que leve à regionalização, descentralização e autonomia tranquila após o estudo e debate de diferentes experiências de descentralização no mundo (Marrocos, Áustria, Bélgica, Holanda, Dinamarca, etc.). É bem de ver, pelas razões alinhadas, que a divisão do país em regiões não deve jamais servir para o dividir, mas antes para unir os municípios e as populações a partir da base e das suas escolhas.




Parede, Janeiro de 2012                                           


                                   Arsénio Fermino de Pina
                               (Pediatra e sócio honorário da Adeco)

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