Como um dos
meus amigos do peito da juventude, letrado de boa cepa, me falou de um
movimento ou grupo Sanvicentino que quase exige “independência já” para Soncente, ou teria o amigo interpretado
mal os objectivos do movimento ou ouvido algum despistado a falar do que não
conhece, e dado ter dado o meu apoio a um Movimento
de Cidadania Activa que nada tem a ver com tamanha estupidez, trepo para os
lombos pelados do meu burrito predilecto para uma pequena incursão pelo que
entendi e subscrevi relativamente ao Movimento
para a regionalização, descentralização e autonomia de S. Vicente.
Quando, no
Manifesto sobre a criação deste Movimento se fala de autonomia, quer-se dizer,
como defendeu Mário Soares para os Açores, na década de oitenta, altura em que
havia alguns espíritos medrosos e mal informados, defendendo autonomia progressiva até à independência, pelas afinidades
com os EUA e o receio da evolução comunista do Movimento Revolucionário do 25 de Abril, dizia eu, Mário Soares
defendeu outro tipo de autonomia a que chamou de autonomia tranquila – que veio a prevalecer -, sem nunca ter
passado pela cabeça dos proponentes do nosso Movimento pôr em causa,
obviamente, a unidade nacional.
A regionalização do país, a descentralização administrativo-financeira
das regiões e a autonomia tranquila
facilitariam e promoveriam a responsabilização dos quadros dirigentes,
estimulando os cidadãos a assumirem em pleno a cidadania e a participar
activamente na gestão da coisa pública, ganhando consciência e lucidez sobre os
seus desígnios e objectivos.
O movimento é
apolítico, aliás, apartidário, brotado da sociedade civil. Por mais que se
espreite, não se encontrará nenhum fumo partidário, nem rabo-de-gato politiqueiro.
Nele podem participar todas as pessoas de boa vontade, com ideias saudáveis, iniciativas,
corajosas e determinadas, e mesmo políticos, desde que estes deixem a
militância partidária e a má política em casa. Na nossa perspectiva, não é movimento que
possa ser recuperado por políticos para os respectivos partidos.
Herdámos da
administração portuguesa a centralização excessiva, sendo essa mais uma razão
para desenvolvermos municípios mais fortes e instituições regionais
descentralizadas a que o Poder Central deve delegar funções e poderes. O
exercício dos poderes delegados será, como não podia deixar de ser, sob
controlo e fiscalização do Poder Central.
No centralismo democrático do início da
independência, explicável e até justificável no contexto da época, que fez o
seu tempo, embora tenha demorado tempo excessivo, as decisões partiam de cima,
triadas “democraticamente” pelos elementos de cúpula partidários e aceites
disciplinadamente (obedientemente) pelos militantes, e pelo povo (aqui, convenhamos,
abusivamente, por o povo não estar sujeito à disciplina partidária), não
havendo meios oficiais de recurso e os protestos correrem o risco, quase
assegurado, de penalização. Outrossim, tal sistema só poderá funcionar em
sistema de partido único ou ditadura, que já não é o nosso caso desde a
abertura democrática do PAICV, abertura quiçá tardia que perdeu originalidade e
crédito por não ter sido em tempo útil, comprometidamente coincidente com o
colapso do sistema soviético e das chamadas democracias populares, seguida – o
que foi louvável e louvado - de mudança tranquila do regime, através de
eleições livres, para novo regime gerido pelo MpD.
Como nos diz
um sábio africano, temos necessidade de uma disciplina social livremente
aceite a complementar a democracia. Há que interiorizar essa fibra
patriótica que faz optar em prioridade pelo interesse geral, o trabalho aturado
e o respeito escrupuloso do bem público. Os (de)mocratas venais devem ser
rechaçados da barca governamental e dos serviços públicos.
A regionalização
tem demonstrado, nos países onde foi instituída, ser um instrumento poderoso que
favorece a democracia devido à participação activa dos cidadãos. Essencial na
democracia a liberdade e igualdade perante a lei para ser possível a
participação da maioria, isto é, dos menos favorecidos face a minorias natural
ou artificialmente privilegiadas (democracia, como sabemos, vem do grego:
demo=povo, cracia=poder -- poder do povo). Aproxima os serviços públicos das
populações, diminui a burocracia e a corrupção propiciada e a ela adstrita, e
legitima o poder através do voto popular. É facto que as possibilidades de
participação são muito maiores quando existem eleitos por mérito na competência
do que quando se verifica a nomeação por parte do Governo Central
Embora não se
possa garantir a pés firmes que a descentralização e a regionalização sejam
condição necessária e suficiente para o desenvolvimento, parece-nos
inquestionável que a existência de regiões e de um sistema democrático
representativo ao nível regional podem estimular os serviços públicos
contribuindo para a sua sensibilização e desburocratização. O próprio facto de
o poder regional ter que responder pelos seus actos em eleições competitivas
pode promover o investimento público e privado. Além disso, tendo o
desenvolvimento uma dimensão não apenas económica, mas também social, cultural
e ambiental, o poder regional democrático e as suas actividades delegadas pelo
poder central podem ser um factor benéfico e uma contribuição importante para o
assegurar.
O instinto
político de descentralização e autonomia patenteia-se na multiplicidade de
formas, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais contra
a média uniforme, impotente e artificial do centralismo. Nele se manifestam e
afirmam o espírito inventivo, democrático e autonómico das populações. As
liberdades municipais e iniciativas locais dão às populações fisionomia e vida
próprias impossíveis na centralização esterilizadora e monocórdica.
Já dizia, há
cerca de dois séculos, o famoso historiador que conhecemos dos bancos dos
liceus, Alexandre Herculano, que os partidos políticos, sejam quais forem os
seus ideais e interesses, ganham sempre com a centralização. A centralização do
poder é o grande meio de este o conservar e controlar de perto porque
concentrado num ponto ou local na sua omnipotência burocrática. Não tenhamos
dúvidas nem ilusões: esperar a descentralização, a regionalização e a autonomia
por iniciativa e decisão de partidos políticos e governos é quase como garantir
chuva, em Cabo Verde ,
no mês de Outubro. Deverá ser a sociedade civil a lutar por ela com argumentos
válidos até convencer os partidos políticos e governo a adoptá-la.
Não estamos
certos se a nossa Constituição admite que possam ser estabelecidos regimes
diferenciados para as regiões, mas, no caso negativo, ou omisso, competirá ao
Governo propor à Assembleia Nacional legislação permitindo essa possibilidade,
a ser promulgada depois pelo residente da República e aplicada.
Cremos bem que
as regiões com descentralização administrativo-financeira podem ser um
instrumento de unidade e solidariedade nacionais, e não de divisão como alguns temem,
se for correctamente realizada e as populações sentirem que as regiões mais
atrasadas ou negligenciadas passarão a ter autonomia e a dispor de mais
recursos do que até agora; ninguém aceita que Santiago, embora albergue cerca
de metade da população do país, beneficie de dois terços dos investimentos para
o desenvolvimento destinado ao país, mormente por sermos nove ilhas dispersas habitadas.
Essa incongruência talvez fosse aceitável se fossemos continente, sem a
descontinuidade que a condição de ilhas implica, o que permitiria facilmente a
aproximação dos centros de decisão e dos serviços públicos centralizados.
O Movimento fez
uma proposta para a constituição de uma comissão
de estudo, contemplando algumas das questões que ventilo nestas linhas, que
inclua todos os parceiros sociais, económicos e políticos a fim de se chegar a
um consenso que leve à regionalização, descentralização e autonomia tranquila
após o estudo e debate de diferentes experiências de descentralização no mundo
(Marrocos, Áustria, Bélgica, Holanda, Dinamarca, etc.). É bem de ver, pelas
razões alinhadas, que a divisão do país em regiões não deve jamais servir para o
dividir, mas antes para unir os municípios e as populações a partir da base e
das suas escolhas.
Arsénio Fermino de Pina
(Pediatra e sócio honorário da Adeco)
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