sábado, 8 de abril de 2017



    O PECADO ORIGINAL E O PEDREGOSO CAMINHO DA REMISSÃO


      Luiz Silva, num seu artigo publicado há tempos no jornal “Notícias do Norte”, com o título “Autonomia e Regionalização”, afirmou: “Parece mesmo que se pretende a autonomia de Santiago, antes de todas as ilhas, com a concentração de todos os investimentos em Santiago em detrimento das outras ilhas, como o investimento no porto da Praia, a construção de estaleiros navais na Praia, universidades, centros culturais, etc., quando em São Vicente pouco ou nada se faz.”
     Estas palavras só poderão ter surpreendido quem abdicou das suas faculdades cognitivas ou vive completamente alienado, não se esforçando por deitar um olhar crítico ao que se passa à sua volta. E os que vivem onde os benefícios das opções políticas se concentraram, certamente que só terão motivo para abjurar as palavras daquele autor, não porque não lhes reconheçam justeza, mas porque a isenção é um predicado pouco conveniente quando se é parte interessada no diferendo.
     Este fenómeno que o Luiz Silva e os “regionalistas” vêm denunciando, teve a sua génese em 1975, a partir do momento em que o regime de partido único não só concentrou a totalidade do Estado num único lugar do país, como promoveu que isso viesse a tornar-se, em termos práticos, num objectivo primário e num propósito que o Estado perseguiu com aparente escrúpulo, com isso subvertendo a expectativa de igualdade generalizada que o ideário da independência criara em 1974 nos espíritos dos cabo-verdianos. Mesmo que alguma preocupação atinente a um justo equilíbrio no país estivesse ressalvado no coração do poder instituído, e não haverá razão para presumir o contrário, estava criado o paradigma que haveria de condicionar o modelo de desenvolvimento integral do país independente. O que o coração do poder político não pôde evitar, conseguiu-o a inadvertência de quem ainda não possuía estaleca de verdadeiro estadista ou não tinha a visão aguçada para a previsão e o acautelamento do futuro. Construíram os alicerces e, tijolo a tijolo, foi ganhando forma e consistência a arquitectura da “República de Santiago”, como lhe chamou, com propriedade, há anos, Onésimo Silveira.
     Fiquemo-nos por estas suposições, porque se entrarmos nos domínios da psicanálise política lembrar-nos-emos de que um responsável político afirmou alto e bom som, em 1975, que S. Vicente tinha de se preparar para sofrer sacrifícios depois de privilegiada, durante décadas, pelo colonialismo. Inacreditável! Mas outro factor adjuvante poderá ter pesado também na decisão tomada pelo poder político no acto da construção do novo Estado. Hoje, é mais uma vez a ilha de S. Vicente que está no centro da efervescência cívica a chamar a atenção do poder para a necessidade de uma mudança de paradigma, tal como agira em 1975 quando se movimentou para franquear a entrada do PAIGC no território. Por estranho que pareça, terá sido a identidade cultural bem vincada e demarcada da ilha de S. Vicente, que poderia ter sido fonte de inspiração e catalisadora de energia, a causa determinante da sua alienação a seguir à independência. Pois, como já aflorámos em outras intervenções, S. Vicente foi vítima de uma identidade própria, não ostensivamente exibida mas naturalmente assumida, por ela ser tendencialmente destoante do modelo de cultura social preferido pela política do nóvel Estado independente.
    Com feito, o facto de ser ilha de uma população com laivos próprios na sua idiossincrasia, terá constituído a razão por que não foi tida como credora da maior confiança do regime político que assumiu a condução dos destinos do país. Sim, sabia-se que o histórico movimento de consciencialização nacional cabo-verdiano nascido em S. Vicente – Movimento Claridoso − era prova bastante de que a história contemporânea do país teria naquela ilha a sua fonte natural de reconstituição anímica e ideológica, mas porventura com uma postura nunca acomodada. Provavelmente, os detentores da rédea política de então intuíram que uma sociedade vocacionada para a efervescência intelectual seria menos recomendável para o suporte dos alicerces do novo Estado do que uma população mais homogénea no seu perfil psicológico e porventura mais cordata com os desígnios do poder, principalmente se este a privilegia com o imediatismo da sua presença tutelar.
     É a esta última conclusão que temos forçosamente de chegar quando vemos que a estratégia política interna determinou a instalação e o entrincheiramento de todo o Estado num único lugar do território. Poderemos admitir que razões de ordem económica de algum modo tenham também intervindo na decisão, mas é sempre possível imaginar que pesou sobremaneira a necessidade de salvaguardar o reduto do poder político de eventuais ameaças ou perturbações sociais internas. Prosseguindo o raciocínio, dir-se-á que houve preocupação de preservar o poder dos inconvenientes da exposição mais promíscua a que ele ficaria sujeito com uma dispersão dos órgãos de soberania e das superestruturas de administração pública. Tudo concentrado e densificado transmite uma sensação de segurança que advém da homogeneidade, da simplificação modelada numa única linguagem política, da aparente solidariedade assente num monolitismo ideológico. No fundo, é a revelação da síndrome de intranquilidade de consciência que é comum aos regimes de feição autoritária ou que aí buscam a linha matricial da sua política. Mesmo que mitigado nos processos, como foi seguramente o nosso caso.
    Desta maneira, temos de convir que a concepção do Estado em Cabo Verde criou o ónus de um pungente Pecado Original, de tal forma ele tende a ser de difícil remissão, de tal modo tende a condicionar o futuro colectivo, anquilosando-o num único ponto de florescência, em lugar de lhe permitir nódulos de germinação natural e espontânea, com a fertilização bem-vinda do húmus da democracia. Esse pecado, por analogia bíblica, produz um efeito hereditário, ou atavismo, e faz com que a Ilha capital continue a ser alvo privilegiado dos maiores investimentos, em larga e manifesta desproporção com o resto do país. O grande problema que hoje se nos apresenta é saber como confessar esse pecado à puridade para assim se livrar dos seus efeitos maléficos, susceptíveis de perpetuarem de geração em geração. A desconcentração dos órgãos de soberania e de outras instituições superiores do Estado poderia ser o primeiro passo para a remissão desse pecado. Infelizmente, os sinais que fomos colhendo sempre apontaram para o sentido contrário, e, reconhecidamente, o pecado deixou de ser culpa exclusiva do partido fundador da independência, já que o que se lhe seguiu na cadeira do poder não deu mostras de querer professar um credo diferente. A ideologia e a justiça deixaram de ser os referenciais básicos da orientação política, porque passou a pesar inapelavelmente a carga do compromisso com a clientela que se instalou e cresceu desmesuradamente na Praia à custa dos erros e vícios em que a política incorreu. Seja a clientela pública ou privada.
    Demonstrado que a política agiu ao arbítrio da História e das aspirações naturais das diversas populações das ilhas, é por esta óptica irrecusável que temos de olhar para o abandono acentuado sofrido pela ilha de S. Vicente e outras, mas sobretudo, e ostensivamente, a ilha do Porto Grande, já que ela tinha e tem potencialidades exploráveis que recomendavam lhe fosse dispensado um tratamento mais consentâneo com o seu passado e a sua importância na economia e na cultura do arquipélago. A pobre desta ilha, nas mãos do poder político, foi como um balão picado com um subtil alfinete para que se fosse esvaziando lenta e silenciosamente, com o cuidado apenas de lhe disfarçar o estertor final com alguns paliativos, para que quem assistisse não se espantasse com o estrondo do rebentamento.
     Infelizmente, nem mesmo a partir de 1991, com a abertura democrática, e contrariamente ao que seria de esperar, houve coragem, arte ou bom senso políticos para alterar o paradigma e evitar, talvez ainda a tempo, que a capital evoluísse continuamente para uma realidade hiperbólica e que Santiago continuasse a deter com chocante desmesura os privilégios dos investimentos, a ponto de o concelho de Santa Catarina, o segundo dessa ilha, se superiorizar à ilha de S. Vicente, a segunda ilha do arquipélago, e antigamente a primeira, na fruição do bolo orçamental, como ainda neste ano se verificou. 
     Na verdade, é irrefutável o erro clamoroso de conceber o figurino político-administrativo do Estado mercê de uma visão tão radicalmente concentracionária, tão exclusivista e castradora das mais legítimas aspirações de um povo que se define precisamente pela diversidade da sua natureza intrínseca. Diversidade que é fatalmente geográfica, mas fundamentalmente sociológica, psicológica e cultural.
     E o resultado era inevitável. Como é dos livros, depois de um Estado assentar todo o seu arraial numa só cidade/ilha, tudo o que sobrevém passa a ser causa e consequência do próprio Estado aglutinado e absorvente, que, com a sua inércia, vai estimulando indirectamente a atracção da periferia, que aos poucos se vai esboroando e desertificando para se acolitar à sombra proteccional do conglomerado de recursos possíveis. Por esta dinâmica é que se criaram assimetrias no território e, reflexivamente, na mente das populações, assimetrias indesejáveis que um Estado atento e curial tinha o dever de prevenir e eliminar, em vez de continuar a criar condições propiciadoras da sua perpetuação, como foi acontecendo, e não obstante repetidos alertas emitidos pela sociedade civil, nomeadamente na ilha de S. Vicente.
     Não fora essa visão arbitrária do conjunto nacional, não haveria hoje lugar aos sinais de descontentamento que foram surgindo nas ilhas marginalizadas, com cidadãos de S. Vicente, residentes e em comunidades exteriores, a liderar um movimento cívico em ordem à mudança do actual modelo de Estado e à adopção de um projecto de descentralização e regionalização.
     Nesta altura, a nossa expectativa vira-se para a promessa do actual governo do MpD no sentido de conceber, propor e submeter ao Parlamento um projecto de descentralização da administração pública e criação de regiões administrativas no país, ao encontro das reivindicações promovidas pelos defensores do processo.
     Por enquanto, não haveria razão para supor que as nossas expectativas estão a ser frustradas, porque nada de concreto veio ainda a lume. Contudo, os sinais que vêm sendo emitidos pelo Governo parecem em contraciclo com os propósitos anunciados sobre o reequilíbrio político-administrativo do território nacional. Na abertura do Parlamento, para apresentação do programa do actual governo, a primeira medida foi a aprovação do Estatuto Especial para a cidade da Praia, como se tal matéria significasse o cume das prioridades nacionais, como se tal medida não pudesse ser enquadrada racionalmente na reforma do Estado prometida na campanha eleitoral e com a qual o MpD capitalizou o voto maioritário do povo da ilha de S. Vicente. Mas outros mais sinais vêm desmentindo a intenção propalada pelo governo do MpD, parecendo mesmo afrontar a intencionalidade do que fora prometido. Um sinal absolutamente incompreensível, e intolerável, foi ter colocado a ilha de S. Vicente em quinto lugar na ordem da distribuição do bolo orçamental para este ano, ficando muito abaixo do concelho de Santa Catarina da ilha de Santiago. Além disso, tem havido sucessivas notícias sobre avultados investimentos estrangeiros direccionados sempre para o mesmo destinatário – a ilha de Santiago − dando a ideia de que existe uma mancomunação na estratégia negocial com o estrangeiro a vincular prioritariamente a ilha capital, como se Cabo Verde não fosse uma realidade nacional de nove ilhas habitadas.
     Este surto de sinais negativos, contrariando flagrantemente o prometido pelo actual governo às ilhas marginalizadas pela política centralista e pela estratégia concentracionária promovidas ao longo de décadas, não pode deixar de inquietar os mindelenses. Porque não é possível descortinar uma conexão lógica entre a intenção anunciada e alguma factualidade recente, a menos que o surrealismo tenha passado a ser a marca de água do comportamento político em Cabo Verde.    
     Como disse José Fortes Lopes num seu artigo − “As Novas Encruzilhadas de Cabo Verde”−, não podemos permanecer emudecidos, impávidos ou indiferentes, à espera que seja só poder político a alinhavar o nosso destino. De facto, a democracia só vale a pena e só realiza os seus desígnios se houver uma permanente interacção entre a sociedade, os governos e as forças políticas.
     Por isso, é imperioso que o tema da regionalização seja “socializado” em todos os fóruns de discussão possíveis, oficiais ou privados. O projecto de lei que, como se espera, a seu tempo será divulgado, não pode deixar nenhum cidadão indiferente, sobretudo nas ilhas da periferia do poder. Cada um de nós tem de tomar posição porque é o futuro que está em causa. O Pecado Original cometido há mais de quarenta anos tem de ser remido por todos, ainda que se preveja pedregoso e semeado de escolhos o caminho da remissão.


Tomar, Março de 2017

Adriano Miranda Lima

  

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