quinta-feira, 18 de maio de 2017

POR UMA REFORMA DO ORDENAMENTO AUTÁRQUICO EM CABO VERDE: O CASO PARTICULAR E SINGULAR DA ILHA DE S. VICENTE
                                  Um texto  Grupo de Reflexão da Diáspora:

          A criação de um município justifica-se, acima de tudo, por razões de ordem económica e de eficiência administrativa, antes da interferência de factores menores e de outro jaez que grosso modo possam emergir no campo das motivações políticas; por exemplo: emulação entre comunidades locais, cada uma a querer igualar-se à vizinha ou mesmo superá-la nas suas prerrogativas e ânsia de progresso; estratégias eleitorais para conquistar a adesão política de comunidades locais em vésperas de eleições.
          É um facto que a seguir à independência houve municípios cuja criação não obedeceu a critérios de racionalidade administrativa, mas a compromissos político-partidários para fixar clientelas eleitorais. Alguns desses municípios não passam de ficções autárquicas, destituídos de fundamento económico, sociológico e administrativo, sem uma clara relação com um projecto de ordenação territorial. Simples freguesias rurais promovidas, não possuem tecido social que justifique a sua existência como município. É impossível não reconhecer a influência do centralismo político na urdidura de uma proliferação de municípios na ilha de Santiago, à revelia de uma reforma da quadrícula autárquica que teria de basear-se em parâmetros de objectividade, exequibilidade e utilidade pública.
          Na verdade, a ilha de Santiago, que até à data da independência dispunha de três municípios, acrescentou à sua quadrícula autárquica mais seis unidades a partir de 1996, com possível fundamento no crescimento populacional e no respaldo do progresso económico e social. De facto, a população da ilha cresceu de 182.782 almas em 1970 para 303.499 em 2015, mercê da absorção de população de outras ilhas, mas alguns dos novos municípios são questionáveis do ponto de vista da racionalidade administrativa. Quanto à ilha de S. Vicente, a sua população passou de 31.578 almas em 1970 para 81.014 em 2015. O crescimento demográfico percentual foi, assim, similar nas duas ilhas mais populosas, Santiago e São Vicente, embora a taxa de crescimento da primeira superasse de longe a da segunda pelos efeitos induzidos pelo centralismo político. No entanto, contrariando a lógica observada em outras ilhas, até nas de menor dimensão social e económica, o território da ilha de S. Vicente continua a ser administrado por um único município.
          Pelas suas características de ilha-cidade, assiste-se a um crescimento desordenado da cidade do Mindelo e a uma urbanização que se alastra descontroladamente, desafiando a capacidade de resposta da edilidade. Acresce que a ilha é vítima de uma intensa pressão demográfica das ilhas vizinhas, que se despovoam da sua população rural, devido à ineficácia e mesmo falhanço das políticas de ordenamento territorial e económico do arquipélago-nação. O resultado é a periferia da cidade do Mindelo estar de novo a braços com um fenómeno que tinha sido travado ou debelado anteriormente: o ressurgimento de favelas feitas de casas de lata e contraplacado. E aqui registe-se uma ironia de duas faces, a saber. O governo não apoia a ilha com políticas sociais para fazer face aos problemas de desemprego e subemprego, em parte devidos à migração de populações das ilhas vizinhas. Por outro lado, e aqui a ironia é perversa, a câmara municipal de S. Vicente, a única na ilha, é que tem de arrostar com problemas escoados de ilhas com um maior número de municípios.
          Poderia considerar-se irrelevante o facto de S. Vicente ter passado à margem da onda multiplicadora de municípios, não fora, entre outros razões, o peso do número de municípios na ponderação das fatias orçamentais a atribuir a cada ilha. Esta condição só seria despicienda se cada ilha fosse olhada em função da uma realidade global em que pontificam valores como o peso demográfico e social, o contributo para o PIB e potencialidades económicas exploráveis em benefício do conjunto nacional.
          Com efeito, quando, no Orçamento do corrente ano, a ilha de S. Vicente é relegada para o quinto lugar na distribuição dos recursos para o investimento público, ficando aquém do município de Santa Catarina e ilhas como o Sal e Santo Antão, ressalta à evidência que a segunda ilha do país, por ser uni-municipal, arrisca-se a enfileirar, perante o critério de avaliação orçamental, em pé de igualdade com municípios de ilhas que no seu todo lhe estão muito aquém em encargos e responsabilidades. Conclui-se assim que o número de municípios, mesmo que pouco relevantes do ponto de vista social e económico, é um factor de majoração no critério de distribuição do Orçamento Geral do Estado, pelo que, nesta conformidade, S. Vicente está a ser indiscutivelmente prejudicada por só possuir um município. E no entanto é a segunda ilha do país em todos os parâmetros de avaliação, designadamente: demográfico; peso económico; e importância social e cultural.
       Mas outra questão com igual pertinência se coloca. Numa altura em que se prevê um projecto de regionalização para o país, o número de municípios em cada ilha não é irrelevante na configuração da estrutura do poder regional. Como o modelo que se tenciona implementar é o de região-ilha, com cada uma a constituir uma unidade regional, com excepção para Santiago, que terá duas, S. Vicente volta de novo a confrontar-se com o constrangimento da sua condição de ilha uni-municipal, ao lado do Sal, Boavista, Maio e Brava. O poder regional é, por definição, supramunicipal, o que pressupõe a existência de mais de um município sob a sua acção jurisdicional. Se há um único município no espaço regional, suscita-se desde logo um conflito de competências ou então a necessidade do seu reajustamento entre os dois poderes, implicando possivelmente uma redefinição e redução das atribuições da câmara municipal, que poderá limitar-se a áreas específicas da gestão urbana. Caso contrário, gera-se no interior da unidade regional situações de embaraço e quebra de eficiência administrativa, passíveis de frustrar os objectivos superiores da governação regional. Mas esta situação poderá não significar nas restantes ilhas uni-municipais o mesmo inconveniente que reveste para a segunda ilha do país, a qual aspira, com o poder regional, transformar a vida das suas populações.        
          A Igreja Católica costuma lavrar o terreno da vida comunitária na sua ânsia de lavrar os espíritos. Perscruta a lógica e o sentido da evolução das comunidades humanas, e ajusta a sua acção pastoral em proporção com o crescimento das populações e o grau do seu desenvolvimento social. Foi assim que a Igreja percebeu que tinha de aumentar o número de paróquias na ilha de S. Vicente e criar a Diocese do Mindelo, demonstrando assim que era imperioso estar à altura do redimensionamento da ilha e do aumento da complexidade dos seus problemas sociais e espirituais. Deste modo, na sua percepção da realidade, está a transmitir ao poder civil, de modo discreto e sem alarde, sinais claros de que a organização político-administrativa da ilha carece de se adaptar aos tempos actuais, de acordo com os pergaminhos a que a comunidade mindelense fez jus ao longo da sua história.
          Está nesta altura em preparação um projecto de lei para a regionalização do país, a submeter à Assembleia Nacional. Desconhecemos a amplitude e os contornos daquilo que, a nosso ver, deveria ser precedido de uma reforma do Estado tão profunda e alargada que obrigasse a rever e ajustar os alicerces e as estruturas do poder, tanto a nível central como local, em conformidade com os objectivos do novo nível de poder local. Não empreender uma reforma generalizada do Estado para acolher a regionalização, é recusar que esta terá fortes implicações de ordem estrutural, genética e operacional. Não ter esta percepção é pressupor irrelevante a nova estirpe de poder local, é pensar que ele não passará de uma excrescência no organismo do país.
          Mas não, a regionalização deveria implicar o redimensionamento do Estado central, adequando-o à nova realidade político-organizativa do país, para libertar recursos para a governação regional. Um outro objecto da reforma, e não menos importante, deverá visar a quadrícula municipal, conformando-a com a nova concepção do poder local e articulando-a de acordo com as exigências e contingências do novo paradigma. Haverá certamente municípios a extinguir, já que a existência de muitos não resistirá a um exigente critério de avaliação, se se colocar na balança os custos do seu funcionamento e a sua importância no ordenamento e gestão do território. Logo, importará questionar a viabilidade e a necessidade de municípios rurais que foram criados apenas para satisfazer clientelas políticas, ao mesmo tempo que será curial encarar a criação de municípios onde se justificam. É sem dúvida o caso de S. Vicente, onde se impõe estudar e perspectivar a criação de dois municípios nas regiões de Salamansa, Baía das Gatas e S. Pedro, com ou sem contiguidade com a área urbana ou periférica da cidade do Mindelo. E será provavelmente o caso de Santa Maria na ilha do Sal.
         Porém, por todas as razões aduzidas, o caso de S. Vicente é de manifesta singularidade e suscita premência na sua resolução, porque é a ilha na sua globalidade que se vê constrangida, limitada e prejudicada, exactamente por uma condição – uni-municipalidade − capaz de a diferenciar negativamente no plano nacional, contrariando flagrantemente o estatuto que é inerente às suas prerrogativas de facto e de direito. Não faz qualquer sentido que uma configuração autárquica desajustada possa representar um handicap para S. Vicente quando for arquitectada a estrutura de poder regional, tanto mais que se trata da segunda ilha do país.
          Assim, impõe-se repensar o Estado, em toda a sua dimensão, desde o centro à periferia, e introduzir no país lógicas de correcção e solidariedade territorial em que se cure dos valores materiais mas também dos elementos anímicos que inaugurem um novo imaginário político, relançando o progresso geral.


Abril de 2017

Pelo Grupo de Reflexão da Diáspora, e por ordem alfabética:
Adriano Miranda Lima
Arsénio Fermino de Pina
Carlos Adriano Soulé
José Fortes Lopes
Luiz Andrade Silva
Valdemar Pereira

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