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UMA REFORMA DO ORDENAMENTO AUTÁRQUICO EM CABO VERDE: O CASO
PARTICULAR E SINGULAR DA ILHA DE S. VICENTE
Um texto Grupo de Reflexão da Diáspora:
Um texto Grupo de Reflexão da Diáspora:
A criação de um município
justifica-se, acima de tudo, por razões de ordem económica e de eficiência
administrativa, antes da interferência de factores menores e de outro jaez que
grosso modo possam emergir no campo das motivações políticas; por exemplo:
emulação entre comunidades locais, cada uma a querer igualar-se à vizinha ou
mesmo superá-la nas suas prerrogativas e ânsia de progresso; estratégias eleitorais
para conquistar a adesão política de comunidades locais em vésperas de
eleições.
É um facto que a seguir à independência
houve municípios cuja criação não obedeceu a critérios de racionalidade administrativa,
mas a compromissos político-partidários para fixar clientelas eleitorais.
Alguns desses municípios não passam de ficções autárquicas, destituídos de fundamento
económico, sociológico e administrativo, sem uma clara relação com um projecto
de ordenação territorial. Simples freguesias rurais promovidas, não possuem
tecido social que justifique a sua existência como município. É impossível não
reconhecer a influência do centralismo político na urdidura de uma proliferação
de municípios na ilha de Santiago, à revelia de uma reforma da quadrícula
autárquica que teria de basear-se em parâmetros de objectividade,
exequibilidade e utilidade pública.
Na
verdade, a ilha de Santiago, que até à data da independência dispunha de três
municípios, acrescentou à sua quadrícula autárquica mais seis unidades a partir
de 1996, com possível fundamento no crescimento populacional e no respaldo do
progresso económico e social. De facto, a população da ilha cresceu de 182.782
almas em 1970 para 303.499 em 2015, mercê da absorção de população de outras
ilhas, mas alguns dos novos municípios são questionáveis do ponto de vista da
racionalidade administrativa. Quanto à ilha de S. Vicente, a sua população
passou de 31.578 almas em 1970 para 81.014 em 2015. O crescimento demográfico
percentual foi, assim, similar nas duas ilhas mais populosas, Santiago e São
Vicente, embora a taxa de crescimento da primeira superasse de longe a da
segunda pelos efeitos induzidos pelo centralismo político. No entanto,
contrariando a lógica observada em outras ilhas, até nas de menor dimensão
social e económica, o território da ilha de S. Vicente continua a ser
administrado por um único município.
Pelas suas características de
ilha-cidade, assiste-se a um crescimento desordenado da cidade do Mindelo e a
uma urbanização que se alastra descontroladamente, desafiando a capacidade de
resposta da edilidade. Acresce que a ilha é vítima de uma intensa pressão
demográfica das ilhas vizinhas, que se despovoam da sua população rural, devido
à ineficácia e mesmo falhanço das políticas de ordenamento territorial e económico
do arquipélago-nação. O resultado é a periferia da cidade do Mindelo estar de
novo a braços com um fenómeno que tinha sido travado ou debelado anteriormente:
o ressurgimento de favelas feitas de casas de lata e contraplacado. E aqui
registe-se uma ironia de duas faces, a saber. O governo não apoia a ilha com
políticas sociais para fazer face aos problemas de desemprego e subemprego, em
parte devidos à migração de populações das ilhas vizinhas. Por outro lado, e
aqui a ironia é perversa, a câmara municipal de S. Vicente, a única na ilha, é
que tem de arrostar com problemas escoados de ilhas com um maior número de
municípios.
Poderia considerar-se irrelevante o
facto de S. Vicente ter passado à margem da onda multiplicadora de municípios,
não fora, entre outros razões, o peso do número de municípios na ponderação das
fatias orçamentais a atribuir a cada ilha. Esta condição só seria despicienda
se cada ilha fosse olhada em função da uma realidade global em que pontificam
valores como o peso demográfico e social, o contributo para o PIB e
potencialidades económicas exploráveis em benefício do conjunto nacional.
Com efeito, quando, no Orçamento do
corrente ano, a ilha de S. Vicente é relegada para o quinto lugar na
distribuição dos recursos para o investimento público, ficando aquém do
município de Santa Catarina e ilhas como o Sal e Santo Antão, ressalta à
evidência que a segunda ilha do país, por ser uni-municipal, arrisca-se a
enfileirar, perante o critério de avaliação orçamental, em pé de igualdade com
municípios de ilhas que no seu todo lhe estão muito aquém em encargos e
responsabilidades. Conclui-se assim que o número de municípios, mesmo que pouco
relevantes do ponto de vista social e económico, é um factor de majoração no
critério de distribuição do Orçamento Geral do Estado, pelo que, nesta
conformidade, S. Vicente está a ser indiscutivelmente prejudicada por só
possuir um município. E no entanto é a segunda ilha do país em todos os
parâmetros de avaliação, designadamente: demográfico; peso económico; e
importância social e cultural.
Mas outra questão com igual pertinência
se coloca. Numa altura em que se prevê um projecto de regionalização para o
país, o número de municípios em cada ilha não é irrelevante na configuração da
estrutura do poder regional. Como o modelo que se tenciona implementar é o de
região-ilha, com cada uma a constituir uma unidade regional, com excepção para
Santiago, que terá duas, S. Vicente volta de novo a confrontar-se com o
constrangimento da sua condição de ilha uni-municipal, ao lado do Sal,
Boavista, Maio e Brava. O poder regional é, por definição, supramunicipal, o
que pressupõe a existência de mais de um município sob a sua acção
jurisdicional. Se há um único município no espaço regional, suscita-se desde
logo um conflito de competências ou então a necessidade do seu reajustamento
entre os dois poderes, implicando possivelmente uma redefinição e redução das
atribuições da câmara municipal, que poderá limitar-se a áreas específicas da
gestão urbana. Caso contrário, gera-se no interior da unidade regional
situações de embaraço e quebra de eficiência administrativa, passíveis de
frustrar os objectivos superiores da governação regional. Mas esta situação
poderá não significar nas restantes ilhas uni-municipais o mesmo inconveniente
que reveste para a segunda ilha do país, a qual aspira, com o poder regional,
transformar a vida das suas populações.
A Igreja Católica costuma lavrar o
terreno da vida comunitária na sua ânsia de lavrar os espíritos. Perscruta a
lógica e o sentido da evolução das comunidades humanas, e ajusta a sua acção pastoral
em proporção com o crescimento das populações e o grau do seu desenvolvimento
social. Foi assim que a Igreja percebeu que tinha de aumentar o número de
paróquias na ilha de S. Vicente e criar a Diocese do Mindelo, demonstrando
assim que era imperioso estar à altura do redimensionamento da ilha e do
aumento da complexidade dos seus problemas sociais e espirituais. Deste modo,
na sua percepção da realidade, está a transmitir ao poder civil, de modo discreto
e sem alarde, sinais claros de que a organização político-administrativa da
ilha carece de se adaptar aos tempos actuais, de acordo com os pergaminhos a
que a comunidade mindelense fez jus ao longo da sua história.
Está nesta altura em preparação um
projecto de lei para a regionalização do país, a submeter à Assembleia
Nacional. Desconhecemos a amplitude e os contornos daquilo que, a nosso ver, deveria
ser precedido de uma reforma do Estado tão profunda e alargada que obrigasse a
rever e ajustar os alicerces e as estruturas do poder, tanto a nível central
como local, em conformidade com os objectivos do novo nível de poder local. Não
empreender uma reforma generalizada do Estado para acolher a regionalização, é
recusar que esta terá fortes implicações de ordem estrutural, genética e
operacional. Não ter esta percepção é pressupor irrelevante a nova estirpe de
poder local, é pensar que ele não passará de uma excrescência no organismo do
país.
Mas não, a regionalização deveria implicar
o redimensionamento do Estado central, adequando-o à nova realidade
político-organizativa do país, para libertar recursos para a governação
regional. Um outro objecto da reforma, e não menos importante, deverá visar a
quadrícula municipal, conformando-a com a nova concepção do poder local e
articulando-a de acordo com as exigências e contingências do novo paradigma.
Haverá certamente municípios a extinguir, já que a existência de muitos não
resistirá a um exigente critério de avaliação, se se colocar na balança os
custos do seu funcionamento e a sua importância no ordenamento e gestão do
território. Logo, importará questionar a viabilidade e a necessidade de
municípios rurais que foram criados apenas para satisfazer clientelas
políticas, ao mesmo tempo que será curial encarar a criação de municípios onde
se justificam. É sem dúvida o caso de S. Vicente, onde se impõe estudar e perspectivar
a criação de dois municípios nas regiões de Salamansa, Baía das Gatas e S.
Pedro, com ou sem contiguidade com a área urbana ou periférica da cidade do
Mindelo. E será provavelmente o caso de Santa Maria na ilha do Sal.
Porém, por todas as razões aduzidas, o
caso de S. Vicente é de manifesta singularidade e suscita premência na sua
resolução, porque é a ilha na sua globalidade que se vê constrangida, limitada
e prejudicada, exactamente por uma condição – uni-municipalidade − capaz de a
diferenciar negativamente no plano nacional, contrariando flagrantemente o
estatuto que é inerente às suas prerrogativas de facto e de direito. Não faz
qualquer sentido que uma configuração autárquica desajustada possa representar
um handicap para S. Vicente quando
for arquitectada a estrutura de poder regional, tanto mais que se trata da
segunda ilha do país.
Assim, impõe-se repensar o Estado, em
toda a sua dimensão, desde o centro à periferia, e introduzir no país lógicas
de correcção e solidariedade territorial em que se cure dos valores materiais
mas também dos elementos anímicos que inaugurem um novo imaginário político,
relançando o progresso geral.
Abril
de 2017
Pelo
Grupo de Reflexão da Diáspora, e por ordem alfabética:
Adriano
Miranda Lima
Arsénio
Fermino de Pina
Carlos
Adriano Soulé
José
Fortes Lopes
Luiz
Andrade Silva
Valdemar
Pereira