sábado, 15 de junho de 2013


Quando Augusto Neves é origem de uma tempestade num copo de água
 

Como vimos no meu artigo precedente, “Quando a problemática de S. Vicente está no centro da actualidade cabo-verdiana”, Hermes Silva Santos, deputado do PAICV por S. Vicente, reagiu com clarividência e sentido de responsabilidade política aos dados sobre o desemprego em S. Vicente, fenómeno que constitui a ponta do iceberg de uma difícil situação socioeconómica. Seguiram-se as declarações corajosas de Augusto Neves, e todo este cocktail causou celeuma no regime e fricção em alguma classe política, que preferem tapar a realidade com o manto diáfano da hipocrisia e atirar o lixo para debaixo do tapete, sempre que conveniente.

Convém, no entanto, lembrar que a atitude do autarca de S. Vicente não é inédita no historial das relações políticas entre a Câmara de S. Vicente e os governos centrais. Vem na continuidade de posições de idêntico cariz tomadas nas últimas décadas pelos seus antecessores, sempre que entenderam que os direitos legítimos da sua ilha estavam ameaçados e a população prejudicada. Quem se limita à análise casuística dos acontecimentos políticos pensa que tudo isto não passa de revivalismo político suscitado pela diferença político-partidária entre a Câmara e o Governo, mas é óbvia a simplicidade dessa visão, que só pode ser partilhada por aqueles que não conhecem a história desta ilha e a idiossincrasia do seu povo.

Com efeito, e como é do domínio público, o partido do governo recebeu mal as críticas de Augusto Neves, com o desconforto a acentuar-se ainda mais com a posição anteriormente assumida por Hermes Silva Santos. A reacção imediata terá sido tentar silenciar qualquer veleidade de efervescência interna criada pelo avolumar de vozes dissidentes ou menos manietadas de militantes locais do PAICV, com receio de que o debate sobre a situação de S. Vicente ou sobre a regionalização possa desencadear uma dinâmica perturbadora da linha ortodoxa e centralista do partido. É que, para o partido, torna-se suspeito tudo o que saia da retórica estafada e do discurso circular com que se procura justificar a realidade calamitosa da ilha de S. Vicente. O discurso oficial é, com efeito, sempre monocórdico, e o objecto da culpabilização invariável na identificação dos visados. Ou é a herança do passado colonial, ou é a incompetência das equipas que têm liderado a gestão do município, ou são os efeitos da crise internacional.

Porém, salta à vista, mesmo dos mais distraídos, que a responsabilização dos autarcas não teria lugar se eles pertencessem à família política do partido do governo, do mesmo modo que é inegável que a crise internacional, a ser de algum modo responsável, não explica a particularidade gravosa dos níveis de desemprego na ilha, que estão muito acima da média do país. O que é intolerável é um governo que está à frente do país há 13 anos consecutivamente pretender limpar-se de responsabilidades próprias quando sabe muito bem que as grandes decisões políticas na área económica não competem às câmaras municipais, ao contrário do que poderia ser num estado descentralizado e regionalizado. Mas terá o governo esquecido que ainda não regionalizou Cabo Verde e nem sequer quer abrir um debate?! Na realidade, se S. Vicente fosse uma região os poderes da ilha constituiriam num momento destes o bode expiatório perfeito. Quer se trate de Portugal, da França, dos E.U.A., ou de Cabo Verde, os falhanços ou os êxitos das políticas macroeconómicas (o desemprego é um indicador importante das políticas macro-económicas) são em larguíssima medida da responsabilidade quase exclusiva dos governos centrais e muito menos dos governos regionais (neste caso particular as políticas regionais podem ter efeitos atenuadores), das câmaras, das cidades-capitais ou das principais cidades, uma vez que eles estão, em geral, privados das principais competências e dos instrumentos de políticas globais ou macroeconómicas. Aqui nesta matéria, não há voltas a dar, nem magias que valham. E Cabo Verde, um país ultra-centralizado e de regime político dirigista, é que está longe de constituir uma excepção a essa regra. Mas este é o país paradisíaco para quem governa, onde os poderes podem imputar, à vontade e a seu bel-prazer, às câmaras da oposição o ónus das desgraças (ou melhor sacudir a água do capote) e nunca os benefícios dos êxitos.

Perante a inesperada reacção dos próceres do partido e também do governo, desresponsabilizando-se das suas políticas, atribuir à edilidade de S. Vicente toda a culpa pelo estado deplorável da ilha, só pode mexer com a capacidade de encaixe do mais cordato cidadão. Mas em Cabo Verde esta prática tende a ser corrente, pois, hélas, como diz o ditado, “em terra de cegos o zarolho é rei”.

As reacções da linha dura do partido tentaram contradizer a posição assumida pelo seu camarada, o deputado Hermes Silva Santos, e surpreenderam muito no tom e no modo utilizados nas diatribes destiladas contra Augusto Neves, de uma agressividade inconcebível, quando o mínimo que deles se esperava seria uma postura de “low profile”, tendo em conta que a situação de S. Vicente não se resolve deitando mais gasolina para a fogueira. Mas não, em vez de apaziguamento e sincero esforço de concertação em busca de soluções, primaram pela arrogância e pela agressividade próprias do “modus faciendi” do estado totalitário, demonstrando que o ADN formatador do antigo partido único continua intacto, aparentemente imune a qualquer reciclagem e influência dos tempos. É de acreditar que os políticos do PAICV que vieram a terreiro defender a sua dama foram orientados nesse sentido por um regime que se sente acossado pela realidade e cada vez mais incapaz de reconhecer o falhanço das suas políticas. É certo que o centralismo tem os seus fervorosos adeptos naqueles que abdicam da liberdade da sua consciência a troco de tachos e sinecuras ou que se comportam como cordeirinhos na expectativa de uma carreira futura à sombra da árvore do partido. E é por isso que quando os cordelinhos do poder central não são capazes de obstar a tentativas de concertação interpartidária com incidência local para a resolução dos problemas de S. Vicente, soa o alarme no centro do poder e mobilizam-se emissários para o ressarcimento da afronta à voz única do partido.

Contudo, a atitude do deputado Hermes Silva Santos, se outras virtudes não tivesse, veio demonstrar que a chama da consciência cívica mindelense não se apagou completamente. A todo o momento, a fogueira do inconformismo e da insatisfação pode atear-se e atingir proporções incontroláveis, porque se a resignação foi uma sina em tempos longínquos da nossa história, convém não esquecer que foi na ilha de S. Vicente que se arvorou a bandeira que haveria de conduzir o território à liberdade. Chegou o momento em que os representantes políticos de S. Vicente, todos eles, e independentemente da sua filiação partidária, têm de cerrar fileiras em torno dos problemas da sua ilha, não permitindo que os seus actos tenham como única lógica a estratégia empedernida de um poder central e centralizado. A margem de liberdade de consciência que um deputado se permite tem de ser caucionada pelo próprio antes da sua sujeição a qualquer directório superior, porque se não for assim perverte-se a virtude mais sublime que enforma a democracia como regime político: representar de corpo e alma quem nos confiou o seu voto. 

Tudo isto nos ocorre trazer a público porque as análises feitas pelos responsáveis do PAICV relativamente à situação económica de S. Vicente espelham o mundo surreal em que se vive hoje em Cabo Verde, onde a desconstrução ou a denegação do real e da verdade e dos factos é um exercício operado de ânimo leve e sem pudor. Dá a ideia de que Cabo Verde vive numa 4ª dimensão do real, ou mesmo no irreal, onde a mentira, a meia-verdade e os possíveis laivos de verdade se interpenetram para dar lugar à “verdade oficial”. Vive-se num quadro de dissolução de valores, em que a responsabilidade e a irresponsabilidade são as faces da mesma moeda de troca social, e o cinismo e a hipocrisia são os fermentos do caldo azedo de uma nova realidade, a do “homo politicus” cabo-verdiano, realidade que mata de morte matada a esperança que sempre alimentámos de ver um homem cabo-verdiano renascido de um passado de dor e sofrimento. Um homem capaz de compreender que os artifícios e malefícios da política feita arte de viver de alguns em vez de arte de bem servir, não podem ter assento numa terra como a nossa.

Infelizmente, os aspectos negativos da herança do partido único, que tomou o poder e nele se instalou, permanecem intactos e resistentes a qualquer mudança ou propósito de verdadeira renovação. Os tiques de autoritarismo e os sinais de controlo das vontades permanecem os mesmos do passado, e os vícios acumulados pela usura do poder crescem de dia para dia, de tal modo que o partido do poder não esconde o rosto do niilismo ético que o caracteriza nem disfarça a sua vocação natural para o autoritarismo. Cada ser humano tem as suas próprias convicções ideológicas, que são a pedra e o reboco do arsenal do político profissional, mas elas, as convicções, só constituem um valor positivo e instrumental se não forem sonegadas ou abafadas por lógicas de controlo político que se divorciam do espírito de servir a comunidade que é a sua única razão de ser. Ora, tanto o presidente Augusto Neves como o deputado Hermes Silva Santos (numa primeira abordagem) agiram segundo os ditames da sua consciência e no pleno uso da sua liberdade de opinião, mas tanto bastou para que fossem olhados de soslaio e criticados pelos seus directórios partidários. Eis algo que nos deve fazer reflectir para arrepiar caminho a tempo de resgatar a nossa democracia das garras perigosas que a ameaçam.    

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