sábado, 28 de setembro de 2013

Quando Cabo Verde e o PAICV/MpD estão numa encruzilhada de mudanças num mundo em crise e em transformação
Neste texto embora se faça menção frequente ao PAICV, partido no poder, é fácil extrapolar para o MpD alguns aspectos deste ensaio (caso venha ao poder, o que poderá acontecer num futuro próximo), pelo que as referências são extensíveis a este partido.
Ocorreu nos finais do mês de Julho o debate tido como o mais esperado do país − ‘O Estado da Nação’ (1) − que a Semana online de 31 Julho 2013 caracterizou como tendo dividido a classe política em duas visões distintas, uma reflectindo uma situação nacional catastrófica e outra um país confiante no futuro. Todavia, é com muita perplexidade que se assistiu a esse evento, que, simulando um ritual de democracia, foi mais um show para povo ver, destinado, como já se suspeitava, a não debater coisa alguma de real consistência, tudo isso passando-se num país onde a vontade de olhar para os verdadeiros problemas é corrompida pela ânsia de atingir ou conservar o poder a todo o custo. É um país que parece ter-se transformado numa terra de indiferentes, dotado de uma elite faz-de-conta, que nunca ‘ta Cdi’ a qualquer contributo da cidadania, um país, enfim, onde dificilmente pode ocorrer um debate sério sobre matérias que são de importância candente para o futuro, sobretudo quando se tem em conta um mundo em crise e em transformação. Assim, promover um debate com essa pretendida envolvência só pode ser entendido como um acto de encenação ou de puro folclore político. Como é possível debater o Estado da Nação quando o partido no poder, o mentor e principal sustentáculo do regime, tem manifestado um autismo total em relação à sociedade civil, recusando debater as verdadeiras questões da actualidade e cruciais para o futuro do país, tais como o fim do Centralismo, a Descentralização, a Reforma do Estado, a Regionalização e o aprofundamento da Democracia? De notar que nenhum contencioso com a sociedade civil até hoje foi à concertação ou teve desfecho consensual ou favorável.
Cabo Verde vive hoje num mundo aberto e em constante mutação (crises, oportunidades, desafios), onde os processos se desencadeiam praticamente ao mesmo ritmo em que circula a informação.
A crise económica veio relativizar a importância dos estados soberanos e desvalorizar os trunfos com que antes blindavam a sua economia, provando que mesmo os EUA e a EU não estão imunes a uma possível desclassificação nos seus actuais ranking mundiais. Nuvens cinzentas continuam a pairar no horizonte da economia mundial, antecipando profundas mudanças de paradigma político-económico mundial para as próximas décadas. Novos países emergentes irromperam na cena internacional manifestando pujança e dinamismo surpreendentes, e associando práticas económicas e comerciais agressivas (salários baixos, dumping nos preços dos produtos exportados), o que desestabilizou por completo os alicerces tradicionais da economia mundial, gerando sérias dificuldades de readaptação aos países industrializados.
O impacto das novas tecnologias de comunicação veio tornar o mundo mais próximo e mais igualitário no acesso às inovações. A circulação instantânea de capitais, pessoas e bens a nível planetário, os problemas ambientais e energéticos, a crise financeira global, tornaram-se desafios do séc. XXI. Nenhuma sociedade ou país estará ao abrigo das transformações que, para o bem ou para o mal, irão ocorrer no seu seio. Grandes nações, incluindo os EUA, enfrentam desafios no tocante à sustentabilidade das suas dívidas e dos seus sistemas de protecção social. A sustentabilidade do estado social nos países da EU acarreta endividamento crescente, um problema complexo e sem solução fácil à vista. Para complicar a situação, a crise energética e o encarecimento das matérias-primas criam pressões cada vez maiores nos recursos naturais e eventualmente uma ruptura climática à escala planetária. Grandes blocos económicos, financeiros, industriais e políticos tanto se formam como se poderão desfazer em função da evolução das políticas económicas. As crises serão oportunidades para uns e desgraça para outros.
Muitas nações estão a preparar-se para os desafios do futuro flexibilizando a sua economia (com custos sociais enormes) e adoptando sistemas político-administrativos e económicos que possam dotá-las de vantagens competitivas. Este é o novo paradigma da economia mundial no qual Cabo Verde vai ter que se inserir, queira ou não queira, o que constitui um desafio ingente para um país com vulnerabilidades congénitas. O fecho económico, cultural, linguístico ou político de um país só pode significar problemas irresolúveis a longo prazo. Daí que espanta que àquelas vulnerabilidades se pretenda acrescer ainda um problema linguístico de trazer por casa.
Os recentes discursos do presidente do PAICV, José Maria Neves, têm sido reveladores da evolução do pensamento do actual do regime em matéria económica (2), destoando ou mesmo contrastando com o tom eufórico de há alguns anos, o que denota uma maior consciencialização sobre a complexidade dos problemas que enfrenta Cabo Verde num mundo contemporâneo em plena transformação. As declarações recentes entram como uma luva na mão do principal partido da oposição, o MpD, e de vários sectores críticos da actual situação socioeconómica do país, ao ponto de o PAICV em termos de política económica parecer ter ocupado o centro (perigosamente para o principal partido da oposição) do espectro político cabo-verdiano. No último documento estratégico sobre a acção externa, o regime defende uma nova fase, consistindo em "redinamizar fortemente" a acção externa no domínio económico, passando Cabo Verde de receptor passivo da ajuda externa para atractor de investimento externo, mercê de uma plena e activa inserção competitiva do país no mercado mundial e da expansão e diversificação dos parceiros no mercado mundial. Para isso pretende dar um salto, provocar rupturas (?!) para mobilizar todos os actores, estatais, da sociedade civil e do sector privado, construir parcerias e criar mais oportunidades para que o sector privado possa assumir efectivamente o seu papel de motor da economia e para que Cabo Verde possa "redinamizar fortemente" a acção externa no domínio económico. JMN reconhece que o país não tem outra escolha senão inserir-se na economia mundial. Temos aqui na pessoa do PM ‘uma autêntica oposição’ às políticas do governo do PAICV aplicadas nos últimos 10 anos!? Mas Cabo Verde não podia ser excepção, e não podia estar blindado aos estilhaços da crise mundial, tendo em conta sua total dependência do exterior.
Esta revolução conceptual operada no discurso do poder foi, todavia, temperada ou complementada, dias depois, com uma visão voluntarista do desenvolvimento, defendendo-se a necessidade de “mais défice” e “mais endividamento”, como condição para prosseguir o desenvolvimento de Cabo Verde, em ordem a que se transforme num país moderno, competitivo, mais justo e de oportunidades para todos. E como exemplo apontou as barragens inauguradas (todas construídas em Santiago), os portos, os aeroportos, as estradas asfaltadas, etc., na linha da demagogia da pseudo política desenvolvimentista do PAICV. Assim, num curto espaço de tempo conseguiu o governo agradar a gregos e troianos, mas baralhando o seu anterior discurso de rigor associado às reformas estruturais impostas pelo FMI e várias organizações Internacionais e o Banco de Cabo Verde.
O PM encena assim uma visão voluntarista do desenvolvimento, mas politicamente incorrecta para os partidários da ortodoxia económica. JMN pretende continuar com a fuga à frente na sua ‘soit disant’ agenda de transformação de Cabo Verde, que tem sido um exercício de utopia pura, convencido que reproduzir betão em larga escala no país contribui para algum desenvolvimento. De notar que esta política de transformação de JMN tem sido amplamente denunciada pelos regionalistas, que acusam o regime de pretender desequilibrar Cabo Verde, criando um único pólo e acentuando o centralismo político e económico em benefício exclusivo da capital Praia e da ilha de Santiago.
Mesmo dando de barato ‘o amor infinito’ do PM por Cabo Verde, é questão para perguntar-lhe qual é o seu projecto ou verdadeiro conceito estratégico para este seu sonhado Cabo Verde, que o impele a continuar a endividar um país de fracos recursos e sem alavancas económicas. Como pensa pagar os encargos e a dívida acumulada? Que tipo de economia estes investimentos gerarão? Acredita, Sr. PM, que poderá levar à frente um projecto revolucionário do ponto de vista económico, na ausência de qualquer diálogo ou discussão com a oposição, com parceiros sociais e económicos e a sociedade civil? Será que esta política novo-riquista de betão e asfalto, que em muitos casos substitui levianamente o Velho pelo Novo (como as demolições e obras de fachada que tem provocado uma descaracterização acelerada e acentuada do centro histórico da cidade do Mindelo), será prosseguida impunemente, continuando a desrespeitar, ao bel-prazer do regime, valores patrimoniais materiais e imateriais das ilhas e do país?
Ok, não questiono a legitimidade da sua aspiração por um país mais justo e de oportunidades para todos, mas este Projecto “Casa para Todos”, com um nome pomposo, tirado do vocabulário socialista, cheira à demagogia, pois não se vislumbra a criação de um estado assistencial e providência, num país pobre que ainda não tem onde cair morto. Mas esquece que em vez de prometer casa para todos, melhor seria criar condições económicas para que todos tenham trabalho e uma vida condigna que lhes permita aceder à propriedade.
Ok, para barragens, portos, aeroportos, estradas asfaltadas ‘ao gosto do freguês’ em todas as ilhas, mas onde está a visão de ‘Conjunto’ destes investimentos para o desenvolvimento de Cabo Verde, a garantia do retorno dos investimentos, as exportações geradas? Como e com quê prevê pagar a factura acumulada? Já pensou na hipótese de falência técnica de Cabo Verde devido a estas políticas, com aconteceu em Portugal e na Grécia?
Este é o busílis da questão, a menos que o governo de Cabo Verde aposte singelo contra dobrado que as nações ricas continuarão a injectar dinheiro a fundo perdido na nossa economia, caucionando de ânimo leve a existência de um estado pouco mais que falhado, mas com custos ou riscos que só a ignorância ou a má consciência podem negligenciar. As lições de Portugal, Grécia e vários outros países que se endividaram por suposta boa causa, mas irresponsavelmente, devem ser objecto de ponderada reflexão em Cabo Verde. É preciso saber que uma política de endividamento e défice excessivo nos mercados financeiros internacionais é extremamente perigosa para a soberania de qualquer país. Acima de certa percentagem do PIB (riqueza total produzida por um país num ano) as dívidas tornam-se impagáveis, a menos que se proceda a um ‘Hair Cuts’ (perdão parcial ou total da divida), opção que só pode ser conseguida com o apoio de grandes nações e instituições, mas sempre com condições draconianas anexadas, porque os investidores privados não gostam de perder dinheiro. Para além disso, é preciso estar consciente de que o contexto mundial mudou drasticamente desde 2008, pelo que o Cabo Verde actual e do futuro não podem continuar a reger-se sob a batuta de políticas voluntaristas ou repentistas, muitas vezes ditadas pelo caderno eleitoral, mas sim por critérios de racionalidade nos investimentos reprodutivos e na concepção de planos de desenvolvimento regional que rompam definitivamente com os ciclos pobreza e estagnação do país. O povo cabo-verdiano deveria estar consciente dos perigos de uma política aventureira baseada exclusivamente no endividamento se nenhum projecto consistente lhe estiver subjacente. O recurso a empréstimos sistemáticos nos mercados internacionais é sempre uma moeda de duas faces, se é certo e sabido que doravante os cabo-verdianos terão de pagar eles mesmos os custos da sua soberania, não sendo bom conselheiro fazer vista grossa ao ónus de um endividamento irresponsável. Tanto mais que cada dia vamos percebendo melhor a lógica que comanda os desígnios dos mercados financeiros mundiais, o lucro e a especulação.  
Os alarmes do FMI surgem assim como consequência das políticas de défice e endividamento em curso e servem para lembrar que estas opções têm limites e custos. Com efeito, a dívida pública nos últimos anos atingiu níveis perigosos (95% para os mais optimistas ou acima dos 100% do PIB), tendo em conta as dívidas das empresas do Estado. O estado de vulnerabilidade de Cabo Verde está, assim, claramente patente. Por outro lado, segundo a revista inglesa “Economist Intelligence Unit” (3), a alta volatilidade dos "fluxos de turismo e a dependência excessiva de Cabo Verde neste único sector vai deixar a economia excessivamente vulnerável a choques externos negativos. Por outro lado, a inexistência de dados oficiais do PIB publicados a partir de 2010 tem impedido uma avaliação precisa do desempenho económico recente de Cabo Verde.
Segundo Humberto Cardoso (4) deputado MPD “Isso já era previsível e o governo não se preparou. E agora diz que foi a crise que nos caiu sobre a cabeça. A verdade é que o país não se libertou da dependência extrema, da ajuda externa. Todo o tempo de transição devia servir para isso mesmo, fazer a transição. Mas o governo não a fez. Limitou-se a surfar sobre o que existia, foi ganhando eleições no processo e não fez o que devia ter feito, e que era óbvio, como o MpD insistiu durante todos estes anos. Pelo contrário, deixaram morrer a indústria, desbaratam o turismo, as novas opções que poderiam surgir em termos de tecnologia e inovação ficam só em discursos, arruinaram a praça financeira e perderam-se oportunidades sistematicamente por causa de uma postura conservadora de fazer o papel de bom aluno para o exterior, conseguir fluxos de capitais e geri-los cá dentro num quadro de manutenção do poder”. Conclui ”Os governos do PAICV quando colocados perante o dilema desenvolver ou controlar, preferem controlar’. Embora tenha razões de sobra para esta afirmação, não acredito que esta atitude seja o apanágio exclusivo deste partido. Todavia a análise profunda que Humberto Cardoso faz da situação de Cabo Verde deve merecer atenção e tido em conta na procura de soluções para os problemas do país.
Persiste assim sempre a dúvida se haverá alguma visão integradora e coerente, ou seja um verdadeiro projecto nesta agenda de Transformação de Cabo Verde, cara a JMN e ao regime. É caso para levantar então a questão, na medida em que se anuncia que a cidade da Praia passará a ter o maior Porto do País, segundo informação avançada pela Administração da Enapor da Praia. Esta ideia nunca tinha passado pela cabeça de nenhum governante, nem antes nem depois da independência. A verdadeira motivação do publicitado Urbi et Orbi Cluster do Mar para S. Vicente fica assim desmascarada e apanhada flagrantemente em contradição: um pretexto para avançar com o dito maior porto de Cabo Verde na Praia, retirando o tapete ao Porto Grande (sobre esta matéria ler a entrevista de Amiro Faria (4) no Expresso da Ilhas “O Porto Grande é um potencial de facturação que não está a ser aproveitado”), despindo Pedro para vestir Paulo, não obstante as condições de agitação marítima naquele porto não serem favoráveis a uma tal pretensão?! Afinal, há sempre dinheiros para investir na Praia, o que dá argumentos aos que acusam este regime de querer construir uma República de Santiago! É preciso analisar todos estes sinais e saber como é que as elites mexem os cordelinhos nesta aventura centralista. Mas onde param os responsáveis, designadamente deputados por S. Vicente (na lua?), quando temos aqui claramente uma política contraditória ao publicitado Cluster do Mar. Não será o papel desta gente levantar dúvidas, interpelar e contrariar projectos que aparentemente vão contra o interesse da ilha por que foram eleitos?
Tendo em conta o contexto internacional e as diferentes pressões internas a que o regime vai estar sujeito, conclui-se que Cabo Verde e o PAICV/MpD estão hoje numa encruzilhada de mudanças. O PAICV, estando forçado a governar economicamente no centro, coloca-se perante vários dilemas, e fica confrontado com a necessidade de proceder à modernização do partido, tornando-o mais aberto à sociedade e ao diálogo, incentivando reformas ‘progressistas’ no país. Caso contrário, aprofundará o seu caciquismo, estilo mugabista, precipitando Cabo Verde para uma dessas democracias de tipo africano, com um sistema político atrofiado e uma economia dominada por uma clientela partidária ao serviço exclusivo de interesses de uma pseudo-elite clientelar. As aspirações políticas de JMN, fundadas num suposto desígnio redentor do PAICV, mediante a promessa de uma longa duração do regime do seu partido, para além de 2030, denunciam claramente uma tentação de hegemonia irredutível. Quanto ao MpD, não obstante ter pessoas brilhantes, tem sido uma oposição apagada, sem ideias, sem discurso, que só faz oposição durante os períodos eleitorais. É uma oposição expectante, esperando que o poder lhe caia nos regaços com o mínimo esforço. Mas este partido estará em sérias dificuldades se o PAICV tiver tempo de se reorganizar e ocupar definitivamente o centro ideológico do país. Mas nada disso pode ser garantido se o povo cabo-verdiano assumir a consciência de que é ele o verdadeiro suporte das dinâmicas sociais e políticas do seu país. Até porque a imprevisibilidade e a mutabilidade são marcas de um paradigma tão verdadeiro nos fenómenos do comportamento humano como nas transformações vertiginosas do mundo actual. 
(2) -http://www.alfa.cv/anacao/index.php/economia/5326-cupula-do-paicv-preocupado-com-situacao-socio-economica
(3) -http://caboverdedirecto.com/index.php?option=com_content&view=article&id=3024:crise-tensoes-sociais-podem-incendiar-o-pais&catid=13&Itemid=102
(4) -http://www.expressodasilhas.sapo.cv/exclusivo/item/37198-os-governos-do-paicv-quando-colocados-perante-o-dilema-desenvolver-ou-controlar-preferem-controlar

PS: Ao fechar este artigo fui informado que o governo noticiou ter encomendado um estudo sobre Regionalização que não está ainda concluído, uma vez que o prazo inicialmente dado à equipa encarregada da tarefa teve que ser alargado devido à necessidade de acolher, a posteriori, algumas novas preocupações inventariadas pelo executivo!?. Embora não conhecendo os contornos desta iniciativa o Movimento aguarda com algumas expectativas os resultados deste estudo e os próximos passos do governo. 

sábado, 27 de julho de 2013


Porquê S. Vicente sempre esteve no epicentro de mudanças em Cabo Verde?

Neste artigo tentarei explicar as razões que levam os mindelenses a protagonizar a batalha da Regionalização. Reconheço que, hoje em dia e na actual conjuntura, falar de S. Vicente é problemático, quase um tabu, desencadeia paixões, tal é sensibilidade à flor da pele relativamente a esta questão. A ilha está no centro da contenda do centralismo e da problemática da Regionalização, a ponto de o assunto se ter tornado matéria politicamente quente despoletando acesas discussões no parlamento. Hoje é facilmente conotado como bairrista, separatista, inimigo do povo etc, visto com desconfiança por uma certa elite no poder, quem ousa levantar alguma questão sobre o estado da ilha e os problemas do centralismo. Existe uma corrente em Cabo Verde que se esforça por banalizar a ilha, transformá-la numa qualquer realidade insular do país, e relegar a sua cidade para o nível de uma qualquer cidade periférica de Cabo Verde. Mas S. Vicente não é uma ilha qualquer e a sua cidade não é uma qualquer e exige o direito à diferença.

Este trabalho pretende ser um subsídio à história da ilha, de modo a melhor enquadrar e perceber o sentido do combate que nos anima hoje em prol da Regionalização, cientes de que qualquer solução positiva para S. Vicente será benéfica para as outras ilhas e proveitosa para o conjunto de Cabo Verde. S. Vicente aposta na Regionalização como uma saída para o atoleiro em que se encontra.

É inegável que S. Vicente tornou-se, mais uma vez, no epicentro da contestação democrática em Cabo Verde. Desta vez, o actual sistema centralista cabo-verdiano está na mira, posta causa pelos efeitos desastrosos que vem provocando no ecossistema social e económico de uma ilha tão importante para Cabo Verde como S. Vicente. Temos hoje um partido, PAICV, isolado e agarrado à ideia do centralismo a todo o custo, como sendo a trave mestra do regime cabo-verdiano e tem ignorado todos e incessantes apelos de vários quadrantes da sociedade civil e política ao diálogo sobre a questão da Regionalização. Num momento em que se comemora o 38º aniversário da independência de Cabo Verde e se começa a escrever a história do país, nunca é demais lembrar ao PAIGC, que alega ser o libertador Cabo Verde do jugo do colonialismo português, que foi precisamente através de S. Vicente e graças à ilha, ao esforço zeloso da sua população, que este partido entrou timidamente em Cabo Verde para depois se instalar confortavelmente no poder. Nunca se pode esquecer as grandes manifestações no Mindelo em favor da Independência e de apoio ao PAIGC, assim como o episódio da tomada da Rádio Barlavento em Novembro de 1974, logo re-baptizada como Rádio Voz de S. Vicente. Nunca é demais lembrar que estes episódios, hoje subvalorizados senão ignorados pela ideologia fundamentalista dominate actualmente naquele partido, por contrariarem algumas teses atinentes ao seu presumido messianismo histórico, constituíram páginas importantes da história de Cabo Verde, com consequências determinantes para o nosso destino colectivo. A população mindelense ‘em peso?’ defendeu afincadamente a ocupação da Rádio Barlavento, permitindo que ela passasse definitivamente para o campo do PAIGC, um elemento fundamental e chave para irradiar a propaganda deste partido para todo o país, na medida em que a população era ou pouco instruída ou semi-analfabeta. Todavia, se a tomada da rádio foi, na aparência, um acto espontâneo e inscrito num momento de exaltação, seria ingénuo ignorar que ela foi teleguiada e não tinha outro propósito senão matar à nascença a pluralidade democrática e eliminar a hipótese de qualquer debate sobre os destinos de Cabo Verde ou o regime a implantar no pós-independência. Finalmente, passados alguns anos, a Rádio Voz de S. Vicente acabou por ser extinta, engolida pela Rádio Nacional, criada para ser um órgão de propaganda centralizado do novo regime, uma das primeiras manifestações de centralismo e antecâmara da morte anunciada da cultura e da intelectualidade mindelenses. A partir daí, S. Vicente começou a funcionar em monocórdio e a afundar-se culturalmente, processo acelerado pelo êxodo das elites sociais que não aceitaram uma convivência malsã com o novo regime político, onde se inclui claridosos, opositores ou detractores do antigo regime. Nada aqui a contestar quanto à luta vitoriosa do PAIGC na Guiné-Bissau sob a égide de Amilcar Cabral. É claro que estamos todos de acordo que sem os movimentos de libertação e as suas lutas desencadeadas nos três teatros de operações, o regime salazarista-caetanista não teria caído e a independência das ex-colónias portuguesas seria certamente postergada para um ‘timing’ diferente. Isto é claro como água, facto reconhecido à época pelos responsáveis políticos e militares portugueses, ou não constituísse a situação das colónias a causa principal da Revolução de 25 de Abril. De resto, se tanto a historiografia portuguesa como a universal hoje o consagram, que mais se poderia dizer?

Mas o papel decisivo da luta pela independência em terreno cabo-verdiano no pós-25 de Abril tem sido por demais menosprezado e negligenciado por uma elite que perfilha uma leitura messiânica da história de Cabo Verde, por sinal a mesma que se nos opõe hoje na luta pela Regionalização, por considerar-se dona da verdade e portadora de uma legitimidade histórica inquestionável. Foi pois a partir de S. Vicente que o PAIGC se implantou e ganhou um forte impulso político para se disseminar para o resto país, não obstante a oposição inicial a este partido que desde logo despontou do Cabo Verde profundo, mal se evidenciaram os primeiros sinais da sua tendência totalitária e da sua pretensão hegemónica. Nada mais falso seria falar de um levantamento popular generalizado em Cabo Verde contra o domínio colonial português, como convém a algumas teses. O PAIGC foi inclusivamente recebido inicialmente com alguma desconfiança em 1974-1975 pela população mais sofrida de Cabo Verde, em nome da qual invocava o penhor da sua luta nas matas da Guiné. Contudo, se a alusão a levantamento popular concita algum significado, isso poderá ter acontecido na ‘privilegiada’ ilha de S. Vicente. Numa visão marxista, a ilha seria a única a ter condições em Cabo Verde para sustentar uma revolução socialista em Cabo Verde, mas paradoxalmente poderia ser a primeira a cair no campo da contra-revolução e ameaçar um futuro poder marxista, por reverso do mesmo determinismo histórico.

Esta dialéctica foi logo cedo percebida pelos então líderes do PAIGC e futuros dirigentes de Cabo Verde, que prontamente se refugiram na Praia, e com eles toda a nova elite, acolitando-se na sede do antigo governo colonial, onde trataram de arrumar a seu bel-prazer os salvados deixados pelos portugueses e urdir as estratégias da nova dominação política e consolidação do poder. Esta seria a génese do fenómeno do centralismo de que sofre Cabo Verde, um grave defeito de concepção inicial com a assinatura indelével do PAIGC e a colaboração activa de muitos mindelenses.

A população mindelense sentiu-se assim desde cedo abandonada, traída, vilipendiada no fundo da sua alma. Com justa razão, porque a ilha, através das suas elites sociais, e no decurso da sua história contemporânea, foi sempre a voz que se fez ouvir para reclamar mais autonomia da colónia aos poderes centrais de Lisboa, nomeadamente durante o regime ditatorial de Salazar. Foi a elite social polarizada em S. Vicente que inspirou e estribou a acção do deputado Adriano Duarte Silva quando exigiu maior atenção para com os problemas da colónia e a não aplicação do estatuto de indigenato e outros estatutos humilhantes e vexatórios para a sua população. Os registos das suas intervenções de 1930 até à data da sua morte atestam isso mesmo e ficam para a história como testemunho de quem, corajosamente, não se calou perante o arbítrio (ver os registos dos discursos na AN(1)). E foi o mesmo que teve a coragem de reclamar o estatuto de adjacência em vez de colónia, para isso batendo até ao fim da sua vida. Paradoxalmente, Adriano Duarte Silva morreu (1961) numa altura em que Amilcar Cabral, seu aluno no Liceu Gil Eanes, já defendia com armas na mão outro poema, a independência das colónias africanas portuguesas, tornando caduca qualquer outra hipótese de estatuto favorável para Cabo Verde no quadro português e contribuindo para o crepúsculo de um império colonial de quinhentos anos.

Não é possível perceber a história de S. Vicente, e a geral de Cabo Verde, sem a interligar com a história da expansão do império britânico no Séc. XIX em África. É pois o Porto Grande e a configuração geográfica particular de S. Vicente que mais atraíram os britânicos. De resto, não é exagero afirmar que ilha de S. Vicente é de certa maneira uma criação britânica, à qual se juntaram portugueses e cabo-verdianos, com a sua economia a nascer assim na dependência directa do sistema britânico. A ilha e a cidade foram desenhadas para serem um entreposto britânico, para o abastecimento das suas embarcações, assim como para as comunicações transatlânticas. Nela se instalaram inúmeros britânicos e a ela confluíram populações oriundas de vários pontos do arquipélago e de todos os estratos sociais, atraídas pelo ‘boom económico’ da ilha, com foros de um desafio que vinha quebrar a pastosa monotonia em que o território se encontrava mergulhado. A população, bem ou mal, convivia com estes novos “colonos” europeus, nas companhias carvoeiras, nas oficinas, nos serviços, no desporto, nas festas, etc, e a elite mindelense acabou por adoptar hábitos britânicos, como o chá das 16 horas e a confecção do famoso “english puding”, o bolo escuro britânico para as grandes cerimónias. Todavia, a glória e as desgraças desta ilha-cidade estariam intimamente ligadas à evolução e ao destino do Porto Grande após a partida dos britânicos. Muito se reclamou pela construção de um cais acostável para aumentar a competitividade da ilha. A sua construção viria a concretizar-se, sim, mas tardiamente. Graças à tenacidade e à pugnacidade de Adriano Duarte Silva, que lutou durante décadas (anos 50 e 60 do século passado) com unhas e dentes para convencer o regime de Lisboa da necessidade urgente da obra para o futuro da ilha, o regime teve de ceder. Este projecto de toda uma vida veio a concluir-se no mesmo ano da sua morte. Mas, hélas, os britânicos estavam de partida e os espanhóis e os franceses investiam em força, respectivamente, nas Canárias e em Dakar, desclassificando irremediavelmente essa obra, que foi por assim dizer um nado-morto: o Porto Grande estava condenado à morte súbita, sem perspectivas no mundo novo que se desabrochava e em que Portugal se isolava cada vez mais. Mesmo assim, o Porto Grande e o seu cais viriam a preencher um papel importante no arquipélago, dando maior amplitude de condições ao trânsito e movimento de pessoas, bens e mercadorias essenciais dentro do e para o arquipélago, servindo assim a sua população e constituindo a porta de Cabo Verde para o mundo, o caminho para o exílio ou para a emigração.

S. Vicente gozou assim de um certo estatuto especial no quadro do império português, que não era dádiva nenhuma da metrópole, como alguns afirmam, mas uma conquista ganha pelo suor dos seus habitantes e viabilizada pelos índices de civilização nela atingidos, devido à sua abertura ao mundo, numa clara afirmação do seu espírito inconformista e empreendedor. É precisamente este contexto, valorizado por uma franca e profícua abertura à diáspora, que permitiu constituir, para a época, uma elite bastante evoluída, bem formada e informada de tudo o que se passava no mundo. Numa altura em que a antiga metrópole se fechava, congelada no tempo pelo peso da ditadura e do imobilismo social e político, a cidade do Mindelo, não obstante a exiguidade do território e do meio, e os índices de pobreza endémica na ilha, levava avanço nalguns aspectos, fruto da forte influência britânica, nomeadamente no que concerne à adopção de posturas de modernidade, consubstanciadas numa maior abertura de espírito e numa convivência pautada por uma interiorização dos valores da liberdade, pouco comum quer no arquipélago quer no império. É assim que a ilha possuía sindicatos, grémios, associações, clubes, rádios privadas, livrarias, bibliotecas, bares, pubs, como em qualquer das grandes cidades no mundo. Não é por acaso que foi nesta ilha que, em 1936, nasceu o Movimento Claridoso (Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Jorge Barbosa e outros), cujos elementos desafiaram dissimuladamente ou encobertamente o autoritarismo de Lisboa e corporizaram a resistência intelectual da ilha. Por isso, muitos questionam hoje se Amilcar Cabral não terá começado a forjar a sua consciencialização política na ilha e inspirado a sua luta contra o domínio português no ambiente intelectual da ilha de S. Vicente e do seu Liceu dos anos 40. Não foi por acaso que, em 2007, o então presidente Pedro Pires afirmou, por ocasião de um simpósio internacional sobre o primeiro centenário do nascimento do principal fundador do Movimento Claridoso, Baltasar Lopes da Silva, que o movimento “revolucionou a cultura cabo-verdiana em meados do século passado e que ele deve ser repensado como um valor nacional e também universal”.

O 25 de Abril de 1974 desencadeou em S. Vicente uma onda de liberdade, alegria, optimismo e esperança e confiança no futuro, fazendo com que as suas gentes acreditassem finalmente num futuro melhor ante a perspectiva que se abria para a concretização das reivindicações que outrora os seus filhos mais ditosos embandeiraram no palco político do império. A juventude, essencialmente a estudantil, saiu à rua e no ambiente festivo e de liberdade impulsionou toda uma população sedenta de liberdade e meteu-a nos carris de um movimento revolucionário. Este movimento espontâneo cedo se transformou num movimento para a causa da independência, e foi, por assim dizer, a caução interna que o PAIGC precisava para sair da clandestinidade e do seu apagamento no arquipélago, culminando na tomada da Rádio Barlavento em Novembro de 1974 e na ascensão de Cabo Verde à Independência em 5/7/1975.

Pelas suas características históricas e sociais, S. Vicente foi assim a ilha que, dentro do território, mais lutou e contribuiu para a independência, mas, por estranho paradoxo, o início da decadência da ilha coincide com a inauguração de Cabo Verde como país independente, quando as legítimas expectativas apontariam para o inverso, em consonância com os valores de liberdade e ânsia de progresso que foram sempre acalentados pela sua população. É pois com muita mágoa e desencanto que hoje assistimos, impotentes, ao descalabro da ilha.

Temos uma cidade, Mindelo, passados 40 anos da independência, paradoxalmente, transformada numa sombra do seu passado, em plena estagnação socioeconómica, a ver navios a passar pelo seu Porto Grande sem nunca atracarem, sempre desviados para outros portos. Voltamos a ver com revolta um filme ‘déjà-vu’, um filme deprimente: jovens desempregados ou desocupados, andrajosos, velhos pedintes, meninas vendendo favores errando pelas ruas da cidade, sem perspetivas de futuro. Por outro lado, temos no interior da ilha focos de criminalidade organizada e insegurança galopante. A ilha passou desde a independência por um lento processo de desclassificação política, sofreu uma enorme erosão socioeconómica, a sua elite foi dispersa pelo país e pelo mundo. O cenário de abandono e de vazio é flagrante, ultrajante e intolerável. Ao invés, a ascensão da sua rival Santiago parece inexorável e desproporcionada, e a todos os títulos insultuosa, contrariando os princípios de equidade territorial e de solidariedade nacional que deviam ser apanágio de um estado de direito e democrático. Mas não, fruto da proximidade do aparelho central do Estado e do privilégio de investimentos avultados, tudo se faz para que ganhe foros de verosimilhança a figura da “República de Santiago”, e, como se não bastasse, com a descarada conivência e vassalagem da elite mindelense, que trocou a sua ilha natal por aquela onde se concentrou o poder e tilinta o sino de regalias e benefícios pessoais imperdíveis. Esta atitude é incompreensível e afronta a memória dos dignos filhos que S. Vicente já teve e que jamais trocariam a sua honra por um prato de lentilhas.

Assim pouca sobra do sonho de 1975, pelo menos dos muitos que participaram neste grande movimentos cívicos e políticos nesta data. O desânimo e a decepção tomaram conta da população da ilha, hoje abandonada à sua sorte por aqueles que aqui tiveram guarida ou através dela se projectaram em Cabo Verde e no mundo. A verdade é que passado o curto momento de euforia da independência, os principais filhos da terra fugiram quase todos para a Praia para viverem debaixo da sombra das bananeiras e hoje abrigam-se nas fundações e institutos criados no centro do poder, onde se reciclam as ajudas e se distribuem benesses. Muitas promessas floriram em 1975 mas nunca cumpridas, vãs promessas que o vento levou, os revolucionários envelheceram ou se acomodaram. Cantaram-se canções revolucionárias em que se prometia transformar os campos secos do interior da ilha em campos verdejantes com levadas a correr água e cheios de fartura. Longe vão essas promessas, e hoje a seca continua irredutível no interior da ilha, e ante a indiferença dos homens as últimas plantas secaram e as águas das chuvas continuam a jorrar para o mar adentro, sem se perspectivar uma única barragem a ser construída na ilha para ressarcir a sua sede de água e verdura. De fora não vem nada, e com o “cabá vapor, cabá carvon” os filhos da ilha, longe dos centros de decisão e dos circuitos de influências, são as vítimas mais visíveis do centralismo político e do ‘fundamentalismo’, não têm emprego, são discriminados ou preteridos no acesso ao emprego, às bolsas de estudo e aos cargos, e são as estatísticas que o dizem com chocante e irrefutável verdade. Outros dirão que a ilha foi usada para que alguns atingissem o seu próprio objectivo pessoal. A melhor imagem que se pode dar da ilha é a de uma pessoa que está a segurar um saco vazio, cujo precioso conteúdo foi levado sub-repticiamente, sem o dono se aperceber, mas ainda convencido que saco contem qualquer coisa. Estamos pois perante uma ‘revolução traída’. Portanto, a triste conclusão é que o empenho dos filhos de S. Vicente em prol da independência nacional foi pago com a moeda da ingratidão, embora, como atrás foi dito, uma boa elite mindelense singrasse e ganhasse bem a sua vida junto ao poder, almejando até cargos políticos e económicos cimeiros no país. Nem Judas cometeria traição mais odiosa. E hoje sabemos que entre os ferrenhos inimigos da Regionalização e a corte de indiferentes para com a sorte da ilha de S. Vicente e sua cidade, contam mindelenses bem instalados no poder e na vida da Praia.

Em 2010, um grupo de cidadãos mindelenses maioritariamente da diáspora, preocupados com o estado de decadência e o destino da sua ilha natal, subscreveram a um apelo em prol de S. Vicente e decidiram publicar um “Manifesto para um S. Vicente Melhor” (2), alertando para a situação da ilha e a sua constante degradação, questionando se o actual modelo sociopolítico e económico em vigor em Cabo Verde não seria responsável pelo seu actual estado. Exortávamos o poder central a implementar políticas tendentes a inverter a situação, mediante investimentos urgentes, e a empreender uma reflexão tendente a uma profunda reforma do actual sistema político-administrativo, já que é ele a fonte de todos os bloqueios em Cabo Verde. Esse manifesto, assim como todas as demais petições e outras da sociedade civil, foi recebido com a total indiferença ou o desdém de costume, não sendo digno de resposta, sequer de uma acusação de recepção, o que revela o verdadeiro carácter da democracia cabo-verdiana, que numa frase o companheiro Arsénio de Pina resume em ‘Esh Ca ta Ta Cdi’, para caracterizar um país em diálogo de surdos e mudos. Como reacção ao despautério de uma continuada indiferença, em Novembro de 2012 foi lançado o Manifesto do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde (3).

 E S. Vicente renascerá das suas cinzas!!!

Nota: Ao terminar este texto recebi a notícia da inauguração de mais um elefante branco desta agenda de transformação deste regime, a nova Delegacia de Saúde de São Vicente na cidade do Mindelo (divulgada no último instante para não despertar manifestações), este mamaracho ‘kitch’ de betão e vidro construído em cima das cinzas da vivenda onde residia o Dr. Adriano Duarte Silva. Onésimo Silveira (4) veio a público afirmar que foi uma “afrontosa agressão” à memória deste nobre mindelense e “precursor da cabo-verdianidade”, sob o pretexto de erguer nesse espaço um serviço indispensável para a saúde dos mindelenses, argumento de um cinismo político, vergonhoso e indigno, mais um acto perpetrado por forças fundamentalistas, num conluio de ignorância e fanatismo políticos. Não podia deixar aqui de exprimir aqui a minha revolta e o meu veemente protesto contra uma acção que foi para mim um acerto de contas político, tanto mais grave que neste acto de puro de vandalismo não se poupou a demolição de uma das mais belas peças do património arquitectónico da cidade (feito cobardemente na calada da noite para não provocar manifestações e oposição), uma das poucas obra-primas no puro estilo colonial da cidade. Shame on you Mr 1º Ministro, continue assim a demolir o património histórico de Cabo Verde para a sua glória.

(1)               ADRIANO DUARTE SILVA Legislaturas: IV, V, VI, VII.


(2) http://www.petitiononline.com/mmscent/petition.html


sábado, 29 de junho de 2013


HOMENAGEM  EM ROTERDAO AO CLARINETISTA DJOSINHA DE BERNARDA
 
 « Oh Rei! Não dê o visto para a Pasargada àquele que não pôs as mãos na construção do Templo. »
                                                                         (Osvaldo Alcântara, heterónimo poético de Baltasar Lopes)
 

Djosinha de Bernarda, menino do Monte Sossego, ali nasceu a 9 de Maio de 1940. Naquele tempo  o Monte Sossego estava separado da cidade por uma enorme chã, sem iluminação, com dois cemitérios  (inglês e americano) e um “esteirado” para criket no meio da chã. Uma grande parte da história de São Vicente perdeu-se com a eliminação dos dois cemitérios, onde foram edificadas casas sobre os sepulcros  de  figuras importantes da construção económica e cultural da  cidade do Mindelo. O medo da noite e dos gongons também deixou as suas estórias no caminho de Monte Sossego,  lembradas nas coladeras do Manuel d’Novas e Frank Cavaquim.  Monte Sossego teve também excelentes atletas que marcaram o desporto Mindelense, mas também cantores e compositores de mornas que davam um colorido musical aos fins de semana. Uma das mais lindas mornas dedicada a uma menininha de Monte Sossego, interpretada por Bana, conheceu o mundo. Trata-se da morna Lutchinha da autoria de Albano de Wilson, actualmente a residir  no Rio de Janeiro, morna essa dedicada à sua mulher. Havia muita dignidade no relacionamento das pessoas e uma certa nobreza herdada da convicência diária  com os ingleses no desporto e nas companhias de carvão, que também formaram grandes quadros técnicos em sectores de máquinas e outros ofícios. Este é o retrato de Monte Sossego daquele tempo, antes que alguns apostólos da nossa emigração descobrissem o «caminho marítimo» para Holanda, onde Djosinha de Bernarda viria a desempenhar um papel importante. 
 


 
 
 
 
 
Órfão aos seis anos de idade, a madrinha de Djosinha, Nha Bernarda, conhecida figura do Pelourinho de Verdura, acolheu o afilhado, a quem deu uma extremosa educação e tratou com muita amizade e carinho maternais. A função de compadre ou comadre era na época tomada com muita responsabilidade e, em caso de perda dos pais, eram os padrinhos que assumiam, com dignidade, a educação do afilhado. Djosinha passa assim do Monte Sossego para Ribeira Bote, onde fez a escola primária, aprendeu carpintaria e estudou música (bateria e clarinete) no Conservatório do Mindelo, com o professor José Alves Reis. Mas foi  o cinema que lhe transmitiu o gosto das viagens e aventuras pelo Mundo, fazendo-o sonhar com novos mundos e novas civilizações, onde o homem não seria julgado pela sua cor ou classe social, mas sim pelo seu talento. A morte dos cinemas de Mindelo (Eden Park e Miramar) foi uma ferida aberta no seu peito que nunca se cicatrizou.
Muito cedo começou a ganhar a vida como carpinteiro e nos fins de semana dedicava-se à música ao lado do grande músico Luis Morais, seu amigo-irmão de infância no Monte Sossego e, mais tarde, em casa de Nha Bernarda. Participava também nos grupos sociais e carnavalescos (como o Lombiano) e jogava futebol no Mindelense, seu club de coração, que sempre ajudou da diáspora, pagando  religosamente as suas quotas bem como fornecendo material desportivo.Quando um grupo de marinheiros do Porto Grande resolveu lançar um desafio político à potência colonial, através da emigração para Holanda, para se opôr ao caminho de São Tomé, a madrinha, Nha Bernarda, decidiu em 1962 financiar a sua viagem para a Holanda. Deixava atrás o ambiente festivo e turbulesco do Mindelo, com as suas festas e bailes de fim de semana, as célebres discusões de futebol e outras coisas da Praça Estrela. Depois de dois ou três anos na marinha mercante holandesa,  percorrendo o mundo  e em contacto diário com culturas e civilizações  diferentes que, dia a dia, muito enriqueceram a sua caboverdianidade, Djosinha interessou-se de novo pela música, estudando os novos compositores latino-americanos. Viajou pelo Brasil, onde frequentou vários cursos de formação profissional e instalou-se finalmente em Roterdão com um projecto de solidariedade no intuito de apoiar a emigração para a Holanda de amigos e familiares. É nesta persectiva que ele faz vir de Dakar Luís Morais e alguns dos seus companheiros sem, no entanto, ainda sonhar com a criação do conjunto “A Voz de Cabo Verde”.
Roterdão  recebia diariamente emigrantes caboverdianos de todas as ilhas e de todas as comunicdades cabo-verdianas espalhadas pelo mundo. E é neste aspecto  que os emigrantes mindelenses na Holanda, com os seus hotéis e conhecimentos do mundo, do mar e dos portos e com as suas caixas de solidariedade (que  quotizavam para casos de doença ou ajudavam os recém chegados, sem distinção de ilha ou região),  tiveram um papel fundamental na criação das estruturas para servir a emigração nesse país, bem como na transformação social, económica e cultural de Cabo Verde. Em nenhuma ilha, em nenhum vale ou ribeira de todas as ilhas, de Santo Antão à Brava, é possivel ignorar-se a presença da emigração caboverdiana para a Holanda.
A ida para a Holanda, a partir dos princípios dos anos sessenta, de grandes músicos e desportistas fez também ali aparecer grupos musicais e equipas desportivas. Djosinha de Bernarda estava em tudo, como antigo jogador de futebol do Club Sportivo Mindelense e como músico reconhecido na praça. O primeiro disco long-play de música caboverdiana teve como título “Os Caboverdianos na Holanda” e foi editado pela Casa Silva, que mais tarde se transformou em Morabeza Records. Djosonha também participou na formação do Conjunto A Voz de Cabo Verde, tanto a nível musical como financeiro, mas as responsabilidades familiares impediram-no de prosseguir uma carreira musical profissional.
Além disso, contribuiu para a formação do movimento associativo em Roterdão com destaque para as actividades culturais, onde esteve sempre activo e de forma benévola. E quando ia de férias a Cabo Verde era o grande animador das noites cabo-verdianas no bar  Calypso, pertencente a Ofélia Ramos,  e um dinâmico impulsionador do futebol no Club Sportivo Mindelense. Dizia-me sentir-se frustrado por não ter participado no disco “Mindelense! Mindelense!”, editado em  Paris pelos desportistas mindelenses em França. O mesmo disse um outro grande Mindelense, Bana.
Após a Independência quis fixar-se com a família em Cabo Verde. Mas o regresso prepara-se a longo prazo e em consertação com a família. Por outro lado, a Nação tem de ter uma política de reintegração dos seus emigrantes  o que ainda hoje está por fazer. Não poderia assegurar a educação dos filhos e a experiência de uma vivência num país democrático como a Holanda entrava em choque com o sistema de partido único. Para além disso, existia e existe ainda uma corrente de opinião anti-emigrante na pequena burguesia e, em especial, no seio dos funcionários públicos que afasta o emigrante da sua terra.Via com uma certa frustração o declínio da cidade do Porto Grande ao nível económico e cultural devido  ao egoísmo e ao silêncio comprometido dos nossos políticos e intelectuais, que só se preocupam com o seu bem estar, ignorando totalmente as aspirações do povo que tanto apostou nas lutas pela Independência e democracia. E, por isso, cedo aderiu à UCID e ao movimento para a Regionalização, na esperança de trazer um novo renascimento económico e cultural para  Cabo Verde e, em especial, para Mindelo e o seu Porto Grande.
É que os emigrantes, na sua maioria originários do mundo rural, consideram indispensável uma política coerente de investimentos que possibilite ao sector primário uma progressiva adaptação aos condicionalismos impostos pelo crescimento industrial. Em que medida se deve considerar válido o contributo dos emigrantes, vindos do meio rural, no desenvolvimento regional para a integração dos rurais (emigrantes) nas respectivas? Quais os meios a serem utilizados e como os utilizar? Ao proporem o desenvolvimento harmónico de Cabo Verde como objectivo a ter em vista nas áreas deprimidas ou ignoradas do país,  os emigrantes   associam-se imediatamente à ideia de Regionalização.  Pôr termo, através  de uma nova política económica e cultural  para o sector primário, ao despovoamento de certas zonas rurais, principalmente das ilhas agrícolas de onde partem os emigrantes (Santiago, Santo Antão, São Nicolau  e Fogo), vítimas do centralismo do Estado, constitui um dos  fundamentos da nossa luta para uma Regionalização humana e solidária.

Outra questão inquietante: como continuar Cabo Verde na emigração se não existe um projecto cultural para as diásporas  caboverdianas dispersas pelo mundo?  Será que não corremos o perigo de sermos assimilados e desparecer como Nação no mundo? Isto tem sido uma exigência em reuniôes e congressos dos emigrantes, mas infelizmente este sonho maior do emigrante continua por se realizar. Como diz Paulino Vieira, a tocatina não nos leva a nenhum lugar e por isso precisamos de uma política cultural para a emigração, graças ao ensino as línguas dos países da nossa emigração nos liceus e escolas técnicas, de centros culturais dos países de emigração nas várias ilhas de onde partem os emigrantes. Mas também necessitamos de centros culturais caboverdianos na diáspora, dirigidos por pessoas nomeadas por mérito e de formação de quadros para o movimento associativo que ultrapasse os limites da nossa solidariedade humana, imbuída  de novas práticas de associativismo baseadas na cultura e no desenvolvimento econónico de Cabo Verde.
Mas embora militante  da  UCID na clandestinidade, Djosinha regressava à terra de dois em dois anos com o seu clarinette para animar as noites caboverdianas, as festas de amigos e até os enterros,  sempre de forma benévola, mas também para abraçar os velhos amigos da Praça Estrela e do Mindelense.
Há mais de dez anos foi vítima de um primeiro ataque cardíaco e o médico recomendara-lhe que consultasse anualmente. Recuperado, retomou a sua participação nas noites culturais e esteve sempre presente nos enterros na Holanda e mesmo em França. Sentiu profundamente a morte de Luis Morais. A mulher e os amigos nunca o informaram da morte  de Manuel d’Novas, seu amigo e companheiro no Lombiano e nas noites caboverdianas na diáspora e em Cabo Verde.
Nos últimos tempos levava uma vida muito sã na companhia da mulher, Maria Alina, e dos filhos.  À noite frequentava a Casa Racionlista Cristã, presidida por Vitorino Chantre, figura importante da diáspora mindelense em Roterdão que, para além de professor de várias gerações da diáspora caboverdiana nessa cidade, tem sabido prodigar conselhos valerosos aos nossos emigrantes.
Em tempos, muito longe de imaginar a sua morte, um grupo de amigos criou uma comissão para lhe prestar uma justa homenagem em Roterdão e Paris. Mas veio a ser supreendido por um novo ataque cardíaco que revelou que a sua saúde estava bastante debilitada e que se houvesse mais uma outra crise cardíaca não escaparia da lei da morte. E foi o que aconteceu no dia  28 de Outubro de 2012 numa tarde de sol outonal em sua casa em Roterdão.Homem de duas pátrias, Cabo Verde e Holanda e como  racionalista cristão, nunca se preocupou com o lugar onde devia ser depositado o seu corpo após a morte. Para muitos amigos ele merecia um enterro nacional, não só como figura da cultura cabo-verdiana,  mas também como militante da emigração para a Holanda, tendo marcado a história de Cabo Verde em todas as suas lutas. Assim, foi uma decisão da família realizar o seu enterro em Roterdão, onde viveu quase cinquenta anos, deixando o seu nome marcado na história da comunidade caboverdiana de Roterdão.
Após o enterro, um grupo  constituído por Pedro Soares, Gilberto Andrade, Constantino Delgado, Sérgio Barros,  Gregório (Tchogoy), Marciano Teixeira (Dindim), João Morais, Calu de Monte Sossego, Zenaida Soares e Rolanda Correia constituiu  uma comissão organizadora  para se homenagear o amigo e o homem de cultura Djosinha de Bernarda, homenagem essa que teve lugar nos dias 9 de Maio (dia do seu aniversário) e 11 de Maio de 2013 em Roterdão. No acto muito concorrido, estiveram presentes amigos vindos de Portugal, Estados Unidos, França, Suécia e de outros países da Europa.  Nessa ocasião, na qualidade de amigo e compadre apresentei a sua biografia e Vitorino Chantre, representante do Centro Redentor do Brasil na Europa e amigo pessoal de Djosinha e familia, dissertou sobre o tema da amizade. Testemunharam também Orlando Medina e Baltasar Barros, vindos dos Estados Unidos, Quintino, vindo de Portugal, Xala Almeida, exímio do cavaquim e das noites caboverdianas, vindo da Suécia, e amigos residentes em Roterdão, como Pedro Soares (Piduca), Maguy Figueira, entre outros.  A parte musical foi muito participativa  com destaque para os cantores Nhô Balta, Jacqueline Fortes,   Xala, Luís Fortes,  Silvestre da Cruz, São Matos, Nelo do Fogo, Arlinda e Dudu, acompanhados por Xala, Zézinho, Quiqui (prodígio  do violino e da trompete), António Violão e João Morais.

 
 

Uma frase de grande profundidade marcou os presentes: cada um deve viver de forma a merecer um grande enterro,  seguido de uma   justa homenagem. É que a morte de um emigrante  interroga-nos profundamente sobre a nossa condição  exilar: morrer fora da terra em busca de Cabo Verde, como dizia Baltasar Lopes, ou seja daquele Cabo Verde que sonhamos construir com catchupa para todos, dignidade para todos acima de tudo e solidariedade fraternal entre os caboverdianos.  E a morte de alguém é sempre  uma oportunidade para  pensararmos na nossa caminhada e sentir a frustração de vir a morrer longe da nossa terra com o espelho de Cabo Verde à frente.
De entre os presentes nesta homenagem a Djosinha, muitos faziam parte do contingente que há mais de cinquenta anos, partiu foragido do Porto Grande ou em barcos portugueses, como o Quanza, atravessando os Pirenéus sob a vigilância da polícia portuguesa (PIDE), com a missão de libertar Cabo Verde das “as secas”, do caminho de São Tomé e da colonização portuguesa. Comemora-se tudo em Cabo Verde e ainda não houve ninguém que se tenha lembrado deste cinquentenário ou de condecorar os fundadores da comunidade caboverdiana de Roterdão, que tudo fizeram  para que essa emigração assumisse o seu dever histórico para com Cabo Verde e fosse admirada e respeitada na Holanda e no Mundo.
Djosinha foi mais um combatente da Pátria no meio do mar, no verdadeiro sentido do termo, aquele que tudo lhe deu e nada dela esperou. Regionalista  convicto, avesso a todas as manifestações bairristas, ali estavam patrícios de todas as ilhas a tesmtemunharem o seu respeito e a amizade por ele.A família agradeceu a organização e os presentes pelo sucesso da iniciativa. A organização promete anualmente realizar uma homenagem com actividades desportivas e culturais num espaço maior, onde se possa acolher a maioria dos amigos do Djosinha de Bernarda.

 


Luiz Silva

Roterdão e Paris, Junho de 2013

sábado, 15 de junho de 2013


Quando Augusto Neves é origem de uma tempestade num copo de água
 

Como vimos no meu artigo precedente, “Quando a problemática de S. Vicente está no centro da actualidade cabo-verdiana”, Hermes Silva Santos, deputado do PAICV por S. Vicente, reagiu com clarividência e sentido de responsabilidade política aos dados sobre o desemprego em S. Vicente, fenómeno que constitui a ponta do iceberg de uma difícil situação socioeconómica. Seguiram-se as declarações corajosas de Augusto Neves, e todo este cocktail causou celeuma no regime e fricção em alguma classe política, que preferem tapar a realidade com o manto diáfano da hipocrisia e atirar o lixo para debaixo do tapete, sempre que conveniente.

Convém, no entanto, lembrar que a atitude do autarca de S. Vicente não é inédita no historial das relações políticas entre a Câmara de S. Vicente e os governos centrais. Vem na continuidade de posições de idêntico cariz tomadas nas últimas décadas pelos seus antecessores, sempre que entenderam que os direitos legítimos da sua ilha estavam ameaçados e a população prejudicada. Quem se limita à análise casuística dos acontecimentos políticos pensa que tudo isto não passa de revivalismo político suscitado pela diferença político-partidária entre a Câmara e o Governo, mas é óbvia a simplicidade dessa visão, que só pode ser partilhada por aqueles que não conhecem a história desta ilha e a idiossincrasia do seu povo.

Com efeito, e como é do domínio público, o partido do governo recebeu mal as críticas de Augusto Neves, com o desconforto a acentuar-se ainda mais com a posição anteriormente assumida por Hermes Silva Santos. A reacção imediata terá sido tentar silenciar qualquer veleidade de efervescência interna criada pelo avolumar de vozes dissidentes ou menos manietadas de militantes locais do PAICV, com receio de que o debate sobre a situação de S. Vicente ou sobre a regionalização possa desencadear uma dinâmica perturbadora da linha ortodoxa e centralista do partido. É que, para o partido, torna-se suspeito tudo o que saia da retórica estafada e do discurso circular com que se procura justificar a realidade calamitosa da ilha de S. Vicente. O discurso oficial é, com efeito, sempre monocórdico, e o objecto da culpabilização invariável na identificação dos visados. Ou é a herança do passado colonial, ou é a incompetência das equipas que têm liderado a gestão do município, ou são os efeitos da crise internacional.

Porém, salta à vista, mesmo dos mais distraídos, que a responsabilização dos autarcas não teria lugar se eles pertencessem à família política do partido do governo, do mesmo modo que é inegável que a crise internacional, a ser de algum modo responsável, não explica a particularidade gravosa dos níveis de desemprego na ilha, que estão muito acima da média do país. O que é intolerável é um governo que está à frente do país há 13 anos consecutivamente pretender limpar-se de responsabilidades próprias quando sabe muito bem que as grandes decisões políticas na área económica não competem às câmaras municipais, ao contrário do que poderia ser num estado descentralizado e regionalizado. Mas terá o governo esquecido que ainda não regionalizou Cabo Verde e nem sequer quer abrir um debate?! Na realidade, se S. Vicente fosse uma região os poderes da ilha constituiriam num momento destes o bode expiatório perfeito. Quer se trate de Portugal, da França, dos E.U.A., ou de Cabo Verde, os falhanços ou os êxitos das políticas macroeconómicas (o desemprego é um indicador importante das políticas macro-económicas) são em larguíssima medida da responsabilidade quase exclusiva dos governos centrais e muito menos dos governos regionais (neste caso particular as políticas regionais podem ter efeitos atenuadores), das câmaras, das cidades-capitais ou das principais cidades, uma vez que eles estão, em geral, privados das principais competências e dos instrumentos de políticas globais ou macroeconómicas. Aqui nesta matéria, não há voltas a dar, nem magias que valham. E Cabo Verde, um país ultra-centralizado e de regime político dirigista, é que está longe de constituir uma excepção a essa regra. Mas este é o país paradisíaco para quem governa, onde os poderes podem imputar, à vontade e a seu bel-prazer, às câmaras da oposição o ónus das desgraças (ou melhor sacudir a água do capote) e nunca os benefícios dos êxitos.

Perante a inesperada reacção dos próceres do partido e também do governo, desresponsabilizando-se das suas políticas, atribuir à edilidade de S. Vicente toda a culpa pelo estado deplorável da ilha, só pode mexer com a capacidade de encaixe do mais cordato cidadão. Mas em Cabo Verde esta prática tende a ser corrente, pois, hélas, como diz o ditado, “em terra de cegos o zarolho é rei”.

As reacções da linha dura do partido tentaram contradizer a posição assumida pelo seu camarada, o deputado Hermes Silva Santos, e surpreenderam muito no tom e no modo utilizados nas diatribes destiladas contra Augusto Neves, de uma agressividade inconcebível, quando o mínimo que deles se esperava seria uma postura de “low profile”, tendo em conta que a situação de S. Vicente não se resolve deitando mais gasolina para a fogueira. Mas não, em vez de apaziguamento e sincero esforço de concertação em busca de soluções, primaram pela arrogância e pela agressividade próprias do “modus faciendi” do estado totalitário, demonstrando que o ADN formatador do antigo partido único continua intacto, aparentemente imune a qualquer reciclagem e influência dos tempos. É de acreditar que os políticos do PAICV que vieram a terreiro defender a sua dama foram orientados nesse sentido por um regime que se sente acossado pela realidade e cada vez mais incapaz de reconhecer o falhanço das suas políticas. É certo que o centralismo tem os seus fervorosos adeptos naqueles que abdicam da liberdade da sua consciência a troco de tachos e sinecuras ou que se comportam como cordeirinhos na expectativa de uma carreira futura à sombra da árvore do partido. E é por isso que quando os cordelinhos do poder central não são capazes de obstar a tentativas de concertação interpartidária com incidência local para a resolução dos problemas de S. Vicente, soa o alarme no centro do poder e mobilizam-se emissários para o ressarcimento da afronta à voz única do partido.

Contudo, a atitude do deputado Hermes Silva Santos, se outras virtudes não tivesse, veio demonstrar que a chama da consciência cívica mindelense não se apagou completamente. A todo o momento, a fogueira do inconformismo e da insatisfação pode atear-se e atingir proporções incontroláveis, porque se a resignação foi uma sina em tempos longínquos da nossa história, convém não esquecer que foi na ilha de S. Vicente que se arvorou a bandeira que haveria de conduzir o território à liberdade. Chegou o momento em que os representantes políticos de S. Vicente, todos eles, e independentemente da sua filiação partidária, têm de cerrar fileiras em torno dos problemas da sua ilha, não permitindo que os seus actos tenham como única lógica a estratégia empedernida de um poder central e centralizado. A margem de liberdade de consciência que um deputado se permite tem de ser caucionada pelo próprio antes da sua sujeição a qualquer directório superior, porque se não for assim perverte-se a virtude mais sublime que enforma a democracia como regime político: representar de corpo e alma quem nos confiou o seu voto. 

Tudo isto nos ocorre trazer a público porque as análises feitas pelos responsáveis do PAICV relativamente à situação económica de S. Vicente espelham o mundo surreal em que se vive hoje em Cabo Verde, onde a desconstrução ou a denegação do real e da verdade e dos factos é um exercício operado de ânimo leve e sem pudor. Dá a ideia de que Cabo Verde vive numa 4ª dimensão do real, ou mesmo no irreal, onde a mentira, a meia-verdade e os possíveis laivos de verdade se interpenetram para dar lugar à “verdade oficial”. Vive-se num quadro de dissolução de valores, em que a responsabilidade e a irresponsabilidade são as faces da mesma moeda de troca social, e o cinismo e a hipocrisia são os fermentos do caldo azedo de uma nova realidade, a do “homo politicus” cabo-verdiano, realidade que mata de morte matada a esperança que sempre alimentámos de ver um homem cabo-verdiano renascido de um passado de dor e sofrimento. Um homem capaz de compreender que os artifícios e malefícios da política feita arte de viver de alguns em vez de arte de bem servir, não podem ter assento numa terra como a nossa.

Infelizmente, os aspectos negativos da herança do partido único, que tomou o poder e nele se instalou, permanecem intactos e resistentes a qualquer mudança ou propósito de verdadeira renovação. Os tiques de autoritarismo e os sinais de controlo das vontades permanecem os mesmos do passado, e os vícios acumulados pela usura do poder crescem de dia para dia, de tal modo que o partido do poder não esconde o rosto do niilismo ético que o caracteriza nem disfarça a sua vocação natural para o autoritarismo. Cada ser humano tem as suas próprias convicções ideológicas, que são a pedra e o reboco do arsenal do político profissional, mas elas, as convicções, só constituem um valor positivo e instrumental se não forem sonegadas ou abafadas por lógicas de controlo político que se divorciam do espírito de servir a comunidade que é a sua única razão de ser. Ora, tanto o presidente Augusto Neves como o deputado Hermes Silva Santos (numa primeira abordagem) agiram segundo os ditames da sua consciência e no pleno uso da sua liberdade de opinião, mas tanto bastou para que fossem olhados de soslaio e criticados pelos seus directórios partidários. Eis algo que nos deve fazer reflectir para arrepiar caminho a tempo de resgatar a nossa democracia das garras perigosas que a ameaçam.