DA VISITA A ROTERDÃO DO MOVIMENTO PRO-REGIONALIZAÇÃO
O maior
risco que um cidadão pode correr é não se comprometer com nada, só proferir frases
genéricas ou calar-se. Esta a razão por ter optado por ser cidadão
interveniente e de alma aberta da sociedade civil. Isso levará o Poder a
considerar-me suspeito? Certamente que sim, porque ainda não se descobriu a
fórmula de se ser insuspeito e empenhado ao mesmo tempo.
A nossa
deslocação a Roterdão – minha, do José Fortes Lopes, Luiz Silva e Filomena
Vieira, estes indo de Paris – deveu-se ao convite da nossa gente na Holanda ao
ter conhecimento do lançamento do livro, Cabo Verde – Os Caminhos da Regionalização, em Lisboa, Cabo Verde e França.
Fomos recebidos
e tratados principescamente, sob a batuta de Pedro Soares (Piduca) e esposa,
coordenadores da comissão de recepção e organização do evento. A estadia de
três dias foi magistralmente programada e pudemos contactar pessoas e visitar
os locais emblemáticos da nossa emigração, incluindo o primeiro hotel
cabo-verdiano em Roterdão do lendário Constantino, que acolhia e apoiava os
emigrantes recém-chegados. O hotel virou ponto de encontro e convívio de alguns
emigrantes, após a venda da sede da Associação
Comunitária, cujo produto de venda contribuiu, mais o do antigo consulado e
verba do governo, para a aquisição de um moderno edifício que alberga o novo
Consulado, também visitado por nós, estando ausente o cônsul. Infelizmente o
amplo salão no r/c, que se previa vir a substituir a Associação, raramente funciona, a não ser com artistas de visita e
entidades oficiais; as amplas instalações da cave, com capacidade para 400
pessoas, continuam fechadas, quando, com algum investimento por parte da nossa
comunidade, que esta aceita e já propôs, poderia ser um local de reunião
periódica, permitindo uma melhor articulação entre a nossa comunidade e o
Consulado, um tanto amuados nos últimos tempos.
O lançamento
de Os Caminhos da Regionalização foi um
sucesso que ultrapassou todas as espectativas. Sala, gratuitamente cedida por
uma organização holandesa da terceira idade – quando poderia e deveria ser o
Consulado a fazê-lo –, cheia, havendo pessoas em pé, no fundo da grande sala. A
apresentação do livro, sintética e objectiva, foi feita pela professora Anita
Faria. A seguir José Fortes Lopes proferiu algumas considerações sobre o móbil
da nossa visita, Luiz Silva e eu próprio tecemos algumas considerações sobre o
livro Ês Ca Ta Cdi!, que ofereci ao Movimento (40 exemplares). Tanto o
debate como a sessão de autógrafos decorreram com grande participação e
interesse da assembleia constituída por elementos de todos os partidos
políticos nacionais, na maior harmonia e correcção, onde pudemos esclarecer dúvidas
e equívocos e anotar sugestões para desejadas visitas. Posteriormente, fomos
entrevistados, a título benévolo, pela Rádio
Voz de Cabo Verde, pertencendo ao patrício, da velha guarda de emigrantes, Luís
Fortes Lopes (Luís Caratê).
A
solidariedade entre os patrícios era (mantendo-se ainda a bom nível)
impressionante, bem como a integração na sociedade holandesa, mas sempre
ligados à terra natal pela cultura, música, língua, visitas periódicas a Cabo
Verde (não obstante os preços proibitivos das passagens aéreas da TACV e TAP) e
investimentos, mau grado as dificuldades e incompreensões encontradas na
própria pátria, ao nível da alfândega, serviços públicos, câmaras e bancos, de
que nem os turistas estrangeiros se queixam. A Avenida da Holanda, no Mindelo, construções nesta cidade e noutras
ilhas e o boom da construção civil,
desde o início dessa profícua emigração para a Holanda, foram o produto dos
investimentos da diáspora, e muito mais teria sido feito se prevalecesse outra prática
oficial face aos emigrantes, os quais mereciam e merecem melhor compreensão,
simpatia, cooperação, valorização da sua condição de emigrante numa
discriminação positiva e mais facilidades na captação das suas economias.
Chegou a
haver, na Holanda, 62 associações as mais diversas, bares, restaurantes, doze
clubes de futebol e uma federação, estes últimos animados por vários patrícios,
destacando-se Pedro Soares. Havia torneios de futebol em que participavam
clubes de patrícios vindos da Bélgica e França. A vivência da nossa comunidade,
como nos conta Anita Faria, aproveita os mesmos pretextos de Cabo Verde de
outrora: casamentos, baptizados, festas nos meses dos Santos Populares,
carnaval (em Julho, por causa do frio e chuva), passeios e picnics para outras
regiões do país, noitadas com estórias, cachupadas e outros manjares da nossa
boa culinária e doçaria, jogos diversos, tudo na maior harmonia e com o orgulho
típico de se sentirem cabo-verdianos.
Infelizmente,
desapareceram as associações, os bares, restaurantes e os clubes de futebol, e
o convívio de outrora vai-se esfumando por falta de local de reunião e certo
grau de desinteresse dos jovens da segunda geração, que não empunharam o
testemunho dos pais e vão perdendo a ligação com Cabo Verde, integrando-se no
ambiente e cultura holandeses dadas as facilidades e solicitações da vida
moderna. Pergunta-se: que faz o Consulado para colmatar essas brechas, recriar
condições de convívio e de revitalização da cultura e apego da nossa comunidade?
Do que fomos informados, quase nada – o mesmo acontecendo noutros países -,
quando há espaços e meios para tal e isso dever ser a sua função principal.
Mesmo que os meios sejam limitados - temos entre vinte a vinte cinco mil
patrícios na Holanda!; se o Consulado se abrisse aos emigrantes, fazendo tábua
rasa das preferências ou orientação partidárias dos emigrantes (o que seria boa
política por o Consulado não dever preocupar-se com posições partidárias), estes
poderiam, perfeitamente, contribuir para o arranjo, por exemplo, da cave do
Consulado. Nós convivemos com gente da UCID, MpD, PAICV e independentes sem
preconceitos nem atritos, ouvimos e falámos amenamente com todos, ouvindo elogios,
críticas e sugestões. Do diálogo é que pode brotar a luz. Outrossim, é bom ter
presente que o MpD nasceu do ventre do PAIGC, bem como a UCID, porque no início
éramos todos do PAIGC, e foi a riola
da unidade Guiné-Cabo Verde, que nunca ninguém conseguiu explicar adequadamente,
que agiu como calo encravado em sapato apertado, levando à criação da UCID na
diáspora.
Quem quiser
entender essa luta e os problemas da emigração, que leia as entrevistas de Luiz
Silva (conheci e acompanhei-o, logo após a independência, através da sua persistente
luta a favor da emigração no jornal Terra
Nova), José Cabral, Felismina Mendes, Onésimo Silveira, Primeiro-Ministro, entre
outros, na edição especial, VOZES DAS ILHAS, da Reforma do Estado, excelente iniciativa do governo. Entrevistas muito
bem conduzidas por Vicente Lopes - jornalista que contraria a pecha nacional de
jornalismo passivo e reverente -, que constituem documentos importantes a ter
em conta para a reforma do Estado e a regionalização. Não só ler, reflectir
detidamente nas diferentes opiniões de gente simples mas sensata, honesta e
experiente da vida, como o agricultor de Santo Antão, e de intelectuais,
políticos e artistas com saber de experiência feito.
Os nossos
emigrantes, de uma maneira geral, queixam-se da má receptividade e tratamento inadequado
a nível de embaixadas e consulados, e nem se dão conta da existência e utilidade
do recém-criado Ministério das Comunidades.
A meritocracia badalada, jamais praticada, é substituída pelo clientelismo
partidário, conforme o partido que ocupa o Governo. Há governantes e
funcionários sem terem exercido uma profissão e nunca trabalharam a sério na
vida: alguns fizeram carreira nas juventudes partidárias, onde se treinaram a
falar sem nada dizer, exceptuando banalidades, meias verdades e algumas mentiras
de permeio, partindo, depois de aligeirarem a língua na oratória, para postos
de direcção nas autarquias, parlamento, embaixadas e governo, sem sensibilidade
social, nem nenhum conhecimento dos problemas reais e dos interesses das
populações e dos emigrantes. O desenvolvimento da função pública moderna exige,
cada vez mais, um corpo de trabalhadores especializados, preparados para a sua
tarefa profissional, constituindo um corpo de funcionários de carreira em
oposição a funcionários “políticos”. Os “políticos” poderão ser substituídos,
quando se muda o regime, mas não os de carreira que garantirão a continuidade,
a eficácia e eficiência da administração.
A entrevista
do nosso Primeiro-Ministro em Vozes das
Ilhas surpreendeu-me pela positiva, dado que tenta esclarecer várias
questões, desfazer equívocos e reconhece ter mudado de opinião nalgumas
questões; aponta caminhos, aceita algumas críticas, embora informe estarem em
vias de resolução questões ainda não solucionadas. É pena não ter esclarecido
um rol de questões pertinentes dirigidas há ao Governo, à medida que eram
postas, o que teria prevenido indisposições e agressividades, que reconhece ter
havido, perfeitamente evitáveis, porque, como escrevi, convencemo-nos de que ês ca ta cdi! (estão-se nas tintas), sendo ês (eles) os governantes. Quando
não se obtém resposta a uma pergunta, proposta ou crítica, a consequência para
quem a faz é uma manifestação de mal-estar traduzida em irritação ou violência.
Mesmo que não se tenha uma resposta, um simples ´recebi a sua proposta ou
crítica e estamos a estudá-la´, é suficiente e cunho de comunicação civilizada
e de respeito pelo participante no diálogo e na gestão da coisa pública, que o
Poder costuma pedir. Afinal, quanto à descentralização e regionalização, nós,
do Movimento para a Regionalização de
Cabo Verde, parecemos não estar muito longe do que pensa, agora, o
Primeiro-Ministro, não sendo de afastar a eventualidade de ser mais uma manobra
dilatória para a regionalização. Obviamente que esta é empresa que levará o seu
tempo, podendo começar numa ilha a título de ensaio piloto. Há mais de 4 anos
que o nosso Movimento vem fornecendo
dados e propostas sobre a descentralização e regionalização, alguns contidos no
livro referido acima; já na década de noventa, Onésimo Silveira lançara uma
pedrada no charco da política utilizando funda regionalista, e somente
recentemente, após inúmeras evasivas do Governo e dos partidos políticos, se
aceita a possibilidade do estudo da regionalização, que, afinal, mais não é do
que uma forma de descentralização que todos aceitam embora o Governo teime em
domesticá-la partidariamente. Pensamos que só mobilizando as regiões (ilhas ou
grupos de ilhas afins) e as suas forças vivas é que se consegue desenvolver o
nosso país. É o que pretende a descentralização/regionalização para combater o
centralismo e a burocracia do Estado que tornam difícil qualquer tentativa para
dinamizar a situação.
Praza ao bom
Deus de todas as religiões que a razoabilidade e compreensão do nosso
Primeiro-Ministro, Dr. José Maria Neves, não seja também por estar de mala
feita para sair do Governo e da Direcção do Partido, não se obrigando, por
isso, a cumprir aquilo que acha razoável e justo.
Lisboa, Novembro de 2014 Arsénio Fermino de
Pina
(Pediatra e sócio honorário da Adeco)