Quando Augusto Neves é origem de uma
tempestade num copo de água
Como vimos no meu artigo precedente, “Quando a problemática de S. Vicente está no centro da actualidade
cabo-verdiana”, Hermes Silva Santos, deputado do
PAICV por S. Vicente, reagiu com clarividência e sentido de responsabilidade
política aos dados sobre o desemprego em S. Vicente, fenómeno que constitui a
ponta do iceberg de uma difícil situação socioeconómica. Seguiram-se as
declarações corajosas de Augusto Neves, e todo este cocktail causou celeuma no
regime e fricção em alguma classe política, que preferem tapar a realidade com o manto diáfano da hipocrisia e
atirar o lixo para debaixo do tapete, sempre que conveniente.
Convém, no
entanto, lembrar que a atitude do autarca de S. Vicente não é inédita no
historial das relações políticas entre a Câmara de S. Vicente e os governos
centrais. Vem na continuidade de posições de idêntico cariz tomadas nas últimas
décadas pelos seus antecessores, sempre que entenderam que os direitos
legítimos da sua ilha estavam ameaçados e a população prejudicada. Quem se
limita à análise casuística dos acontecimentos políticos pensa que tudo isto não
passa de revivalismo político suscitado pela diferença político-partidária
entre a Câmara e o Governo, mas é óbvia a simplicidade dessa visão, que só pode
ser partilhada por aqueles que não conhecem a história desta ilha e a idiossincrasia
do seu povo.
Com efeito, e
como é do domínio público, o partido do governo recebeu mal as críticas de
Augusto Neves, com o desconforto a acentuar-se ainda mais com a posição
anteriormente assumida por Hermes Silva Santos. A reacção imediata terá sido
tentar silenciar qualquer veleidade de efervescência interna criada pelo
avolumar de vozes dissidentes ou menos manietadas de militantes locais do
PAICV, com receio de que o debate sobre a situação de S. Vicente ou sobre a regionalização
possa desencadear uma dinâmica perturbadora da linha ortodoxa e centralista do
partido. É que, para o
partido, torna-se suspeito tudo o que saia da retórica estafada e do discurso
circular com que se procura justificar a realidade calamitosa da ilha de S.
Vicente. O discurso oficial é, com efeito, sempre monocórdico, e o objecto da
culpabilização invariável na identificação dos visados. Ou é a herança do
passado colonial, ou é a incompetência das equipas que têm liderado a gestão do
município, ou são os efeitos da crise internacional.
Porém, salta à vista, mesmo dos mais distraídos, que a responsabilização
dos autarcas não teria lugar se eles pertencessem à família política do partido
do governo, do mesmo modo que é inegável que a crise internacional, a ser de
algum modo responsável, não explica a particularidade gravosa dos níveis de
desemprego na ilha, que estão muito acima da média do país. O que é intolerável
é um governo que está à frente do país há 13 anos consecutivamente pretender
limpar-se de responsabilidades próprias quando sabe muito bem que as grandes
decisões políticas na área económica não competem às câmaras municipais, ao contrário
do que poderia ser num estado descentralizado e regionalizado. Mas terá o governo
esquecido que ainda não regionalizou Cabo Verde e nem sequer quer abrir um
debate?! Na realidade, se S. Vicente fosse uma região os poderes da ilha constituiriam
num momento destes o bode expiatório perfeito. Quer se trate de Portugal, da
França, dos E.U.A., ou de Cabo Verde, os falhanços ou os êxitos das políticas macroeconómicas
(o desemprego é um indicador importante das políticas macro-económicas) são em
larguíssima medida da responsabilidade quase exclusiva dos governos centrais e muito
menos dos governos regionais (neste caso particular as políticas regionais
podem ter efeitos atenuadores), das câmaras, das cidades-capitais ou das
principais cidades, uma vez que eles estão, em geral, privados das principais
competências e dos instrumentos de políticas globais ou macroeconómicas. Aqui
nesta matéria, não há voltas a dar, nem magias que valham. E Cabo Verde, um
país ultra-centralizado e de regime político dirigista, é que está longe de
constituir uma excepção a essa regra. Mas este é o país paradisíaco para quem
governa, onde os poderes podem imputar, à vontade e a seu bel-prazer, às
câmaras da oposição o ónus das desgraças (ou melhor sacudir a água do capote) e
nunca os benefícios dos êxitos.
Perante a inesperada reacção dos próceres do partido e também do
governo, desresponsabilizando-se das suas políticas, atribuir à edilidade de S.
Vicente toda a culpa pelo estado deplorável da ilha, só pode mexer com a
capacidade de encaixe do mais cordato cidadão. Mas em Cabo Verde esta prática
tende a ser corrente, pois, hélas, como diz o ditado, “em terra de cegos o
zarolho é rei”.
As reacções da linha dura do partido tentaram contradizer a posição assumida pelo seu camarada, o deputado Hermes Silva Santos, e surpreenderam muito no tom e no modo utilizados nas diatribes
destiladas contra Augusto Neves, de uma agressividade inconcebível, quando o
mínimo que deles se esperava seria uma postura de “low profile”, tendo em conta
que a situação de S. Vicente não se resolve deitando mais gasolina para a
fogueira. Mas não, em vez de apaziguamento e sincero esforço de concertação em
busca de soluções, primaram pela arrogância e pela agressividade próprias do “modus
faciendi” do estado totalitário, demonstrando que o ADN formatador do antigo
partido único continua intacto, aparentemente imune a qualquer reciclagem e
influência dos tempos. É de acreditar que os políticos do PAICV que vieram a
terreiro defender a sua dama foram orientados nesse sentido por um regime que
se sente acossado pela realidade e cada vez mais incapaz de reconhecer o
falhanço das suas políticas. É certo que o centralismo tem os seus fervorosos
adeptos naqueles que abdicam da liberdade da sua consciência a troco de tachos
e sinecuras ou que se comportam como cordeirinhos na expectativa de uma carreira
futura à sombra da árvore do partido. E é por isso que quando os cordelinhos do
poder central não são capazes de obstar a tentativas de concertação
interpartidária com incidência local para a resolução dos problemas de S.
Vicente, soa o alarme no centro do poder e mobilizam-se emissários para o
ressarcimento da afronta à voz única do partido.
Contudo, a
atitude do deputado Hermes Silva Santos, se outras virtudes não tivesse, veio
demonstrar que a chama da consciência cívica mindelense não se apagou completamente.
A todo o momento, a fogueira do inconformismo e da insatisfação pode atear-se e
atingir proporções incontroláveis, porque se a resignação foi uma sina em
tempos longínquos da nossa história, convém não esquecer que foi na ilha de S.
Vicente que se arvorou a bandeira que haveria de conduzir o território à
liberdade. Chegou o momento em que os representantes políticos de S. Vicente,
todos eles, e independentemente da sua filiação partidária, têm de cerrar
fileiras em torno dos problemas da sua ilha, não permitindo que os seus actos
tenham como única lógica a estratégia empedernida de um poder central e
centralizado. A margem de liberdade de consciência que um deputado se permite
tem de ser caucionada pelo próprio antes da sua sujeição a qualquer directório
superior, porque se não for assim perverte-se a virtude mais sublime que
enforma a democracia como regime político: representar de corpo e alma quem nos
confiou o seu voto.
Tudo isto nos
ocorre trazer a público porque as análises feitas pelos responsáveis do PAICV
relativamente à situação económica de S. Vicente espelham o mundo surreal em
que se vive hoje em Cabo Verde, onde a desconstrução ou a denegação do real e da
verdade e dos factos é um exercício operado de ânimo leve e sem pudor. Dá a ideia
de que Cabo Verde vive numa 4ª dimensão do real, ou mesmo no irreal, onde a
mentira, a meia-verdade e os possíveis laivos de verdade se interpenetram para
dar lugar à “verdade oficial”. Vive-se num quadro de dissolução de valores, em
que a responsabilidade e a irresponsabilidade são as faces da mesma moeda de
troca social, e o cinismo e a hipocrisia são os fermentos do caldo azedo de uma
nova realidade, a do “homo politicus” cabo-verdiano, realidade que mata de
morte matada a esperança que sempre alimentámos de ver um homem cabo-verdiano
renascido de um passado de dor e sofrimento. Um homem capaz de compreender que
os artifícios e malefícios da política feita arte de viver de alguns em vez de
arte de bem servir, não podem ter assento numa terra como a nossa.
Infelizmente,
os aspectos negativos da herança do partido único, que tomou o poder e nele se
instalou, permanecem intactos e resistentes a qualquer mudança ou propósito de
verdadeira renovação. Os tiques de autoritarismo e os sinais de controlo das
vontades permanecem os mesmos do passado, e os vícios acumulados pela usura do
poder crescem de dia para dia, de tal modo que o partido do poder não esconde o
rosto do niilismo ético que o caracteriza nem disfarça a sua vocação natural
para o autoritarismo. Cada ser humano tem as suas próprias convicções
ideológicas, que são a pedra e o reboco do arsenal do político profissional, mas
elas, as convicções, só constituem um valor positivo e instrumental se não forem
sonegadas ou abafadas por lógicas de controlo político que se divorciam do
espírito de servir a comunidade que é a sua única razão de ser. Ora, tanto o
presidente Augusto Neves como o deputado Hermes Silva Santos (numa primeira
abordagem) agiram segundo os ditames da sua consciência e no pleno uso da sua
liberdade de opinião, mas tanto bastou para que fossem olhados de soslaio e
criticados pelos seus directórios partidários. Eis algo que nos deve fazer
reflectir para arrepiar caminho a tempo de resgatar a nossa democracia das
garras perigosas que a ameaçam.
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