HOMENAGEM EM ROTERDAO AO CLARINETISTA DJOSINHA DE
BERNARDA
« Oh Rei! Não dê o visto para a Pasargada àquele que não pôs as mãos
na construção do Templo. »
(Osvaldo Alcântara, heterónimo poético de Baltasar Lopes)
Djosinha de Bernarda, menino do Monte Sossego, ali nasceu a 9 de Maio de
1940. Naquele tempo o Monte Sossego estava separado da cidade por uma
enorme chã, sem iluminação, com dois cemitérios (inglês e americano) e um
“esteirado” para criket no meio da chã. Uma grande parte da história de São Vicente perdeu-se com
a eliminação dos dois cemitérios, onde foram edificadas casas sobre os
sepulcros de figuras importantes da construção económica e cultural
da cidade do Mindelo. O medo da noite e dos gongons também deixou as suas
estórias no caminho de Monte Sossego, lembradas nas coladeras do Manuel
d’Novas e Frank Cavaquim. Monte Sossego teve também excelentes atletas
que marcaram o desporto Mindelense, mas também cantores e compositores de
mornas que davam um colorido musical aos fins de semana. Uma das mais lindas
mornas dedicada a uma menininha de Monte Sossego, interpretada por Bana,
conheceu o mundo. Trata-se da morna Lutchinha da autoria de Albano de Wilson, actualmente
a residir no Rio de Janeiro, morna essa dedicada à sua mulher. Havia
muita dignidade no relacionamento das pessoas e uma certa nobreza herdada da
convicência diária com os ingleses no desporto e nas companhias de
carvão, que também formaram grandes quadros técnicos em sectores de máquinas e
outros ofícios. Este é o retrato de Monte Sossego daquele tempo, antes que
alguns apostólos da nossa emigração descobrissem o «caminho marítimo» para
Holanda, onde Djosinha de Bernarda viria a desempenhar um papel importante.
Órfão aos seis anos de idade, a madrinha de Djosinha, Nha Bernarda, conhecida figura do Pelourinho de Verdura, acolheu o afilhado, a quem deu uma extremosa educação e tratou com muita amizade e carinho maternais. A função de compadre ou comadre era na época tomada com muita responsabilidade e, em caso de perda dos pais, eram os padrinhos que assumiam, com dignidade, a educação do afilhado. Djosinha passa assim do Monte Sossego para Ribeira Bote, onde fez a escola primária, aprendeu carpintaria e estudou música (bateria e clarinete) no Conservatório do Mindelo, com o professor José Alves Reis. Mas foi o cinema que lhe transmitiu o gosto das viagens e aventuras pelo Mundo, fazendo-o sonhar com novos mundos e novas civilizações, onde o homem não seria julgado pela sua cor ou classe social, mas sim pelo seu talento. A morte dos cinemas de Mindelo (Eden Park e Miramar) foi uma ferida aberta no seu peito que nunca se cicatrizou.
Muito cedo começou a ganhar a vida como carpinteiro e nos fins de semana
dedicava-se à música ao lado do grande músico Luis Morais, seu amigo-irmão de infância
no Monte Sossego e, mais tarde, em casa de Nha Bernarda. Participava também nos
grupos sociais e carnavalescos (como o Lombiano) e jogava futebol no
Mindelense, seu club de coração, que sempre ajudou da diáspora, pagando religosamente as suas quotas bem como fornecendo
material desportivo.Quando um grupo de marinheiros do Porto Grande resolveu lançar um desafio
político à potência colonial, através da emigração para Holanda, para se opôr
ao caminho de São Tomé, a madrinha, Nha Bernarda, decidiu em 1962 financiar a
sua viagem para a Holanda. Deixava atrás o ambiente festivo e turbulesco do
Mindelo, com as suas festas e bailes de fim de semana, as célebres discusões de
futebol e outras coisas da Praça Estrela. Depois de dois ou três anos na marinha mercante holandesa, percorrendo o mundo e em contacto diário com culturas e civilizações diferentes que, dia a dia, muito enriqueceram
a sua caboverdianidade, Djosinha interessou-se de novo pela música, estudando
os novos compositores latino-americanos. Viajou pelo Brasil, onde frequentou vários
cursos de formação profissional e instalou-se finalmente em Roterdão com um
projecto de solidariedade no intuito de apoiar a emigração para a Holanda de
amigos e familiares. É nesta persectiva que ele faz vir de Dakar Luís Morais e alguns
dos seus companheiros sem, no entanto, ainda sonhar com a criação do conjunto “A
Voz de Cabo Verde”.
Roterdão recebia diariamente emigrantes
caboverdianos de todas as ilhas e de todas as comunicdades cabo-verdianas espalhadas
pelo mundo. E é neste aspecto que os
emigrantes mindelenses na Holanda, com os seus hotéis e conhecimentos do mundo,
do mar e dos portos e com as suas caixas de solidariedade (que quotizavam para casos de doença ou ajudavam
os recém chegados, sem distinção de ilha ou região), tiveram um papel fundamental na criação das
estruturas para servir a emigração nesse país, bem como na transformação
social, económica e cultural de Cabo Verde. Em nenhuma ilha, em nenhum vale ou
ribeira de todas as ilhas, de Santo Antão à Brava, é possivel ignorar-se a
presença da emigração caboverdiana para a Holanda.
A ida para a Holanda, a partir dos princípios dos anos sessenta, de grandes
músicos e desportistas fez também ali aparecer grupos musicais e equipas
desportivas. Djosinha de Bernarda estava em tudo, como antigo jogador de
futebol do Club Sportivo Mindelense e como músico reconhecido na praça. O
primeiro disco long-play de música caboverdiana teve como título “Os
Caboverdianos na Holanda” e foi editado pela Casa Silva, que mais tarde se
transformou em Morabeza Records. Djosonha também participou na formação do
Conjunto A Voz de Cabo Verde, tanto a nível musical como financeiro, mas as
responsabilidades familiares impediram-no de prosseguir uma carreira musical
profissional.
Além disso, contribuiu para a formação do movimento associativo em Roterdão
com destaque para as actividades culturais, onde esteve sempre activo e de
forma benévola. E quando ia de férias a Cabo Verde era o grande animador
das noites cabo-verdianas no bar Calypso,
pertencente a Ofélia Ramos, e um dinâmico
impulsionador do futebol no Club Sportivo Mindelense. Dizia-me sentir-se
frustrado por não ter participado no disco “Mindelense! Mindelense!”, editado
em Paris pelos desportistas mindelenses
em França. O mesmo disse um outro grande Mindelense, Bana.Após a Independência quis fixar-se com a família em Cabo Verde. Mas o regresso prepara-se a longo prazo e em consertação com a família. Por outro lado, a Nação tem de ter uma política de reintegração dos seus emigrantes o que ainda hoje está por fazer. Não poderia assegurar a educação dos filhos e a experiência de uma vivência num país democrático como a Holanda entrava em choque com o sistema de partido único. Para além disso, existia e existe ainda uma corrente de opinião anti-emigrante na pequena burguesia e, em especial, no seio dos funcionários públicos que afasta o emigrante da sua terra.Via com uma certa frustração o declínio da cidade do Porto Grande ao nível económico e cultural devido ao egoísmo e ao silêncio comprometido dos nossos políticos e intelectuais, que só se preocupam com o seu bem estar, ignorando totalmente as aspirações do povo que tanto apostou nas lutas pela Independência e democracia. E, por isso, cedo aderiu à UCID e ao movimento para a Regionalização, na esperança de trazer um novo renascimento económico e cultural para Cabo Verde e, em especial, para Mindelo e o seu Porto Grande.
É que os emigrantes, na sua maioria originários do mundo rural, consideram indispensável uma política coerente de investimentos que possibilite ao sector primário uma progressiva adaptação aos condicionalismos impostos pelo crescimento industrial. Em que medida se deve considerar válido o contributo dos emigrantes, vindos do meio rural, no desenvolvimento regional para a integração dos rurais (emigrantes) nas respectivas? Quais os meios a serem utilizados e como os utilizar? Ao proporem o desenvolvimento harmónico de Cabo Verde como objectivo a ter em vista nas áreas deprimidas ou ignoradas do país, os emigrantes associam-se imediatamente à ideia de Regionalização. Pôr termo, através de uma nova política económica e cultural para o sector primário, ao despovoamento de certas zonas rurais, principalmente das ilhas agrícolas de onde partem os emigrantes (Santiago, Santo Antão, São Nicolau e Fogo), vítimas do centralismo do Estado, constitui um dos fundamentos da nossa luta para uma Regionalização humana e solidária.
Outra questão inquietante: como continuar Cabo Verde na emigração se não
existe um projecto cultural para as diásporas
caboverdianas dispersas pelo mundo?
Será que não corremos o perigo de sermos assimilados e desparecer como
Nação no mundo? Isto tem sido uma exigência em reuniôes e congressos dos
emigrantes, mas infelizmente este sonho maior do emigrante continua por se
realizar. Como diz Paulino Vieira, a tocatina não nos leva a nenhum lugar e por
isso precisamos de uma política cultural para a emigração, graças ao ensino as
línguas dos países da nossa emigração nos liceus e escolas técnicas, de centros
culturais dos países de emigração nas várias ilhas de onde partem os
emigrantes. Mas também necessitamos de centros culturais caboverdianos na diáspora,
dirigidos por pessoas nomeadas por mérito e de formação de quadros para o
movimento associativo que ultrapasse os limites da nossa solidariedade humana,
imbuída de novas práticas de associativismo
baseadas na cultura e no desenvolvimento econónico de Cabo Verde.
Mas embora militante da UCID na clandestinidade, Djosinha regressava
à terra de dois em dois anos com o seu clarinette para animar as noites
caboverdianas, as festas de amigos e até os enterros, sempre de forma benévola, mas também para
abraçar os velhos amigos da Praça Estrela e do Mindelense.
Há mais de dez anos foi vítima de um primeiro ataque cardíaco e o médico
recomendara-lhe que consultasse anualmente. Recuperado, retomou a sua participação
nas noites culturais e esteve sempre presente nos enterros na Holanda e mesmo
em França. Sentiu profundamente a morte de Luis Morais. A mulher e os amigos nunca
o informaram da morte de Manuel d’Novas,
seu amigo e companheiro no Lombiano e nas noites caboverdianas na diáspora e em
Cabo Verde.
Nos últimos tempos levava uma vida muito sã na companhia da mulher, Maria
Alina, e dos filhos. À noite frequentava
a Casa Racionlista Cristã, presidida por Vitorino Chantre, figura importante da
diáspora mindelense em Roterdão que, para além de professor de várias gerações da
diáspora caboverdiana nessa cidade, tem sabido prodigar conselhos valerosos aos
nossos emigrantes.
Em tempos, muito longe de imaginar a sua morte, um grupo de amigos criou
uma comissão para lhe prestar uma justa homenagem em Roterdão e Paris. Mas veio
a ser supreendido por um novo ataque cardíaco que revelou que a sua saúde
estava bastante debilitada e que se houvesse mais uma outra crise cardíaca não
escaparia da lei da morte. E foi o que aconteceu no dia 28 de Outubro de 2012 numa tarde de sol
outonal em sua casa em Roterdão.Homem de duas pátrias, Cabo Verde e Holanda e como racionalista cristão, nunca se preocupou com
o lugar onde devia ser depositado o seu corpo após a morte. Para muitos amigos
ele merecia um enterro nacional, não só como figura da cultura cabo-verdiana, mas também como militante da emigração para a
Holanda, tendo marcado a história de Cabo Verde em todas as suas lutas. Assim,
foi uma decisão da família realizar o seu enterro em Roterdão, onde viveu quase
cinquenta anos, deixando o seu nome marcado na história da comunidade
caboverdiana de Roterdão.
Após o enterro, um grupo constituído
por Pedro Soares, Gilberto Andrade, Constantino Delgado, Sérgio Barros, Gregório (Tchogoy), Marciano Teixeira
(Dindim), João Morais, Calu de Monte Sossego, Zenaida Soares e Rolanda Correia
constituiu uma comissão
organizadora para se homenagear o amigo
e o homem de cultura Djosinha de Bernarda, homenagem essa que teve lugar nos
dias 9 de Maio (dia do seu aniversário) e 11 de Maio de 2013 em Roterdão. No
acto muito concorrido, estiveram presentes amigos vindos de Portugal, Estados
Unidos, França, Suécia e de outros países da Europa. Nessa ocasião, na qualidade de amigo e
compadre apresentei a sua biografia e Vitorino Chantre, representante do Centro
Redentor do Brasil na Europa e amigo pessoal de Djosinha e familia, dissertou sobre
o tema da amizade. Testemunharam também Orlando Medina e Baltasar Barros,
vindos dos Estados Unidos, Quintino, vindo de Portugal, Xala Almeida, exímio do
cavaquim e das noites caboverdianas, vindo da Suécia, e amigos residentes em Roterdão,
como Pedro Soares (Piduca), Maguy Figueira, entre outros. A parte musical foi muito participativa com destaque para os cantores Nhô Balta,
Jacqueline Fortes, Xala, Luís
Fortes, Silvestre da Cruz, São Matos,
Nelo do Fogo, Arlinda e Dudu, acompanhados por Xala, Zézinho, Quiqui (prodígio
do violino e da trompete), António Violão e João Morais.
Uma frase de grande profundidade marcou os presentes: cada um deve viver de
forma a merecer um grande enterro,
seguido de uma justa
homenagem. É que a morte de
um emigrante interroga-nos profundamente
sobre a nossa condição exilar: morrer fora da terra em busca de Cabo
Verde, como dizia Baltasar Lopes, ou seja daquele Cabo Verde que sonhamos
construir com catchupa para todos, dignidade para todos acima de tudo e
solidariedade fraternal entre os caboverdianos.
E a morte de alguém é sempre uma
oportunidade para pensararmos na nossa
caminhada e sentir a frustração de vir a morrer longe da nossa terra com o
espelho de Cabo Verde à frente.
De entre os presentes nesta homenagem a Djosinha,
muitos faziam parte do contingente que há mais de cinquenta anos, partiu
foragido do Porto Grande ou em barcos portugueses, como o Quanza, atravessando
os Pirenéus sob a vigilância da polícia portuguesa (PIDE), com a missão de
libertar Cabo Verde das “as secas”, do caminho de São Tomé e da colonização
portuguesa. Comemora-se tudo em Cabo Verde e ainda não houve ninguém que se
tenha lembrado deste cinquentenário ou de condecorar os fundadores da
comunidade caboverdiana de Roterdão, que tudo fizeram para que essa
emigração assumisse o seu dever histórico para com Cabo Verde e fosse admirada
e respeitada na Holanda e no Mundo.
Djosinha foi mais um combatente da Pátria no
meio do mar, no verdadeiro sentido do termo, aquele que tudo lhe deu e nada dela
esperou. Regionalista convicto, avesso a todas as manifestações
bairristas, ali estavam patrícios de todas as ilhas a tesmtemunharem o seu
respeito e a amizade por ele.A família agradeceu a organização e os presentes
pelo sucesso da iniciativa. A organização promete anualmente realizar uma
homenagem com actividades desportivas e culturais num espaço maior, onde se possa
acolher a maioria dos amigos do Djosinha de Bernarda.
Uma vez mais nos aparece o Luiz Silva que, sendo o melhor entre nós na matéria, soube falar de um tema candente - injustamente - na nossa terra na medida em que os da Diáspora são vistos como diabinhos quando podiam ser uns activos querubins.
ResponderEliminarA homenagem a esse emigrante que foi Djosa de Bernarda, que podia ser de Monte Sossego ou de Ribeira Bote, é mais que justa pois foi um exemplo estimado pelos seus pares e desconhecido (como não podia deixar de ser) por quem devia na terra onde nasceu e para onde ia amiúde dar a ajuda material e moral, facto que não foi elemento isolado (Sorry, Djosa) porque muitos a fizeram antes, tantos fazem e muitos mais esperam para fazer no dia em que a Diáspora for reconhecida no seu justo valor.
Um Obrigado ao Amigo Luiz por este comentário, outro Obrigado ao blog do nosso Movimento (http://movimentoparaaregionalizaoeautonomias.blogspot.pt/
E, como não há dois sem três, Obrigado ao "nosso irmão" Joaquim Saial ou Djack de Capitania que no seu blog (http://mindelosempre.blogspot.spot/fr) insere um artigo muito interessante também sobre a nossa Diáspora.
Bem Hajam Todos.